O conceito de América Latina nasceu em Paris, de duas fontes distintas. A mais difundida inicialmente veio da política externa de Napoleão III, em meados do século XIX. Quis sua diplomacia justificar, com o conceito, o apoio à instalação de um império no México, sendo nomeado imperador em 1864 o arquiduque austríaco Maximiliano. A tentativa falhou: em 1867 rebeldes mexicanos, liderados por Benito Juarez, depuseram e fuzilaram o pretenso imperador, ao final abandonado por seu mentor francês. Mas o conceito e a palavra ficaram. O continente americano abrigaria pelo menos duas “Américas”: bem ao norte, a anglo-saxônica; ao sul, a latina.
A segunda, que perdurou, foi o sentimento difuso de resistência entre intelectuais à crescente influência dos Estados Unidos ao sul de sua fronteira nacional. Já em 1856, antes, portanto, da trágica aventura de Maximiliano, o jornalista, poeta e diplomata colombiano José María Torres Caicedo escrevia, em Veneza, o poema Las dos Américas (As duas Américas), em que a certa altura se lia:La raza de la América Latina Al frente tiene la sajona raza, Enemiga mortal que ya amenaza Su libertad destruir y su pendón. [A raça da América Latina / Tem a frente a raça saxônia, / Inimiga mortal que já ameaça / Sua liberdade destruir e seu pendão.]
Nesse mesmo ano, o chileno Francisco Bilbao Barquín fez uma conferência em Paris na qual definiu a América Latina incluindo, além da América do Sul, a América Central e o México.
Torres Caicedo viveu em Paris de 1851 até sua morte, em 1889. Em 1875, num ensaio chamado Mis ideas y mis principios, assinalava que desde o ano de 1851 já se usava o qualificativo de “latina” para a América hispânica. E justificava:
Há América anglo-saxônica, dinamarquesa, holandesa etc.; há espanhola, francesa, portuguesa. E a esse grupo, que nome científico lhe dar, senão o de latina? É claro que os americanos-espanhóis não havemos de ser latinos pelo índio, mas pelo espanhol […].
Logo a seguir assinalava que naquele momento, em 1875, o uso da expressão “América Latina” já era generalizado.
Latinos contando ou não com o Brasil?
Ensaístas franceses, como Michel Chevalier (Lettres sur l’Amérique du Nord, 1837) e o padre Emmanuel Domenech (Journal d’un missionaire au Texas et au Méxique, 1846-1852) também se referiram à existência de duas Américas, sendo que o último cunhou a expressão como se referindo à América do Sul, à América Central e ao México, conceito que veio a ser mobilizado pela diplomacia e pela política de Napoleão III em relação à região, justificando um “pan-latinismo” como base de seu pretendido império que fracassou.
Essas fontes mostram que a certidão de batismo da América Latina foi passada em Paris, redigida simultaneamente em espanhol e em francês. Logo de início, o conceito se apresentou não apenas como geopolítico ou geográfico, mas com forte acento cultural. É também verdade que o conceito tinha um claro apelo europeizante, “latino”.
A partir daí houve um processo de “repatriamento” do conceito de América Latina, de aproximá-lo e integrá-lo à região real, com suas contradições e diversidade de fontes culturais, suas várias línguas, contrapondo ou amalgamando, às fontes europeias de diversas extrações, as fontes nativas e africanas e depois de outras migrações.
Em que pesem as seguidas intenções de se proclamar uma unidade dos povos da América Latina, ou uma unidade cultural que não anulasse as diferenças, esse processo foi lento e segue vivo ainda hoje, pois a nova diáspora dos povos da região, sobretudo em direção à América do Norte e à Europa, e as migrações internas cada vez maiores descerram novas fronteiras para o conceito, provando o seu dinamismo.
Embora desde o começo o conceito abrangesse os povos americanos, cujas línguas nacionais tivessem origem latina, o fato é que de início o Brasil ficou de fora.
Os intelectuais brasileiros do século XIX e do começo do século XX, como José Veríssimo e Sérgio Buarque de Holanda, tinham preocupações “americanas” bem visíveis; e os intelectuais do mundo hispano-americano sempre olharam o Brasil com atenção. O ensaísta brasileiro Manuel Bonfim chegou a publicar, em 1905, o livro América Latina: males de origem, em que criticava a ideia corrente de que o atraso dos países do continente derivasse de questões de raça, clima ou mestiçagem, como era comum se acreditar então. Em vez disso, denunciava a exploração das colônias pelas metrópoles como a causa histórica desse atraso.
O crítico uruguaio José Enrique Rodó deu contribuição fundamental em Ariel (1900), que foi objeto de ensaio de Sérgio Buarque, e em El mirador de Próspero (1913) para considerar as diferenças entre a América Latina e a Saxônica. Ainda em Paris, Ventura García Calderón e Hugo Barbagelata dirigiram, de 1912 a 1914, a Revista de América, buscando colaborações em todo o continente americano. O poeta nicaraguense Rubén Darío, autor de “Oda a Roosevelt” (1905), dirigiu o Mundial Magazine e viajou ao Brasil, à Argentina e ao Uruguai atrás de colaboradores. Mas nada disso sedimentou a consciência de que a antiga linha de Tordesilhas fora derrogada. De um lado e de outro, permaneceu por muito tempo a ideia difusa de que o termo “América Latina” se referia à América de fala hispânica.
Consciência literária da latinidade
Por circunstâncias diversas, inclusive políticas, seguidamente os encontros de intelectuais e artistas, em que se afirmava a “unidade” dos povos latino-americanos, realizavam-se fora da América Latina, na França, na Itália, no Canadá ou até mesmo nos Estados Unidos. O ápice desses encontros foi o Congresso de Escritores Latino-Americanos em Gênova, em 1965, quando se criou a 1ª Sociedade de Escritores Latino-Americanos, com Miguel Ángel Asturias e João Guimarães Rosa na sua direção.
Tal quadro só começou a mudar radicalmente a partir da Revolução Cubana de 1959. Seguindo uma política deliberada de integração cultural, a reformulação das atividades da já existente Casa de las Américas em Havana propiciou que gerações de intelectuais já na plenitude de sua maturidade e outros em formação passassem a se encontrar sistematicamente em solo americano. A Casa de las Américas, sob a direção de Haydée Santamaría e de Roberto Fernández Retamar, publicou desde 1965 a revista homônima e instituiu o mais importante prêmio literário da América Latina, que passou a incluir escritores brasileiros, inclusive como uma categoria de seu prêmio anual.
Por outro lado, a sucessão de ditaduras apoiadas por governos dos Estados Unidos consubstanciou entre esses intelectuais a consciência de uma origem e de um destino comuns, nas frentes anti-imperialistas que se formaram a partir de meados do século XX. A literatura e os estudos literários foram parte essencial desse processo, inclusive porque contribuíram de maneira notável para firmar uma perspectiva da diversidade cultural dos países da região, saltando sobre os preconceitos raciais, de gênero, nacionais, e outros.
Desde o século XIX, com a formação das nações independentes em solo americano, e com a derrocada dos impérios português e espanhol no continente, o tráfego de escritores, intelectuais e artistas entre os novos países desenvolveu-se em proporção geométrica, em particular na América de língua espanhola. Também cresceu a presença de intelectuais e artistas, e aí inclusive brasileiros, na Europa, sobretudo na Paris “capital do século”, no dizer de Walter Benjamin.
As constantes viagens tinham os mais variados motivos: a busca da sobrevivência em países (os latino-americanos) onde as instituições da vida intelectual eram frágeis e onde a prática da literatura era mais uma causa pessoal do que uma profissão; as fugas e os exílios provocados pela instabilidade política; a fascinação pela herança europeia e pela riqueza de sua vida intelectual.
De todo modo, foi entre tais viagens e retornos, por vezes trágicos, como o de José Martí, morto na luta pela independência de Cuba em 1895, que se foi forjando uma consciência mais ampla e fundamentada da existência de laços sutis ou evidentes de uma possível unidade cultural latino-americana, apesar das diferenças, na América Latina povoada por índios, mestiços e descendentes de africanos e europeus.
A América hispânica se integrava. São bons exemplos os ensaios de Pedro Henríquez Ureña (1884-1946), amigo do poeta brasileiro Ronald de Carvalho, autor do poema “Toda América”. Nascido na República Dominicana, foi professor e conferencista em sua pátria, em Cuba, no México, nos Estados Unidos e na Argentina, onde morreu. Em 1925, proferiu La utopía de América, na Universidade de La Plata. Nela, falando a partir de sua experiência mexicana, afirmava que a América aspirava à construção de um “homem universal”, que soubesse reconhecer os matizes, as diferenças, a multiplicidade que sedimentavam a unidade em vez da uniformidade, sendo esta última uma característica dos “imperialismos estéreis”.
Em outro ensaio, La colección latinoamericana (1934), assinalava a relativa pujança das bibliotecas latino-americanas nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, diante da precariedade daquelas em solo latino-americano. Demonstrava inclusive conhecer a biblioteca da Universidade Católica da América, em Washington, cujo núcleo principal era a coleção de livros do brasileiro Manuel de Oliveira Lima.
De ambos os lados, o da fala em espanhol e o da fala em português, houve esforços significativos, quase sempre pessoais e assistemáticos, para buscar mútua compreensão e reconhecimento. Poetas brasileiros, como Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, buscaram contatos no Uruguai e no Peru. Bandeira foi nomeado professor de literatura hispano-americana da Faculdade Nacional de Filosofia em 1943 no Rio de Janeiro, e em 1949 publicou o livro Literatura hispano-americana.
Como diretor do Departamento Cultural da União Pan-americana, órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), Érico Veríssimo foi dos primeiros escritores brasileiros a percorrer sistematicamente os países de língua hispânica, escrevendo um clássico da literatura de viagens, México (1956). Também Jorge Amado conheceu quase todos os países hispano-americanos, fazendo conferências e apresentando seus romances. Ambos foram logo traduzidos e publicados nos países vizinhos, assim como em outras partes do mundo; como no Brasil houve o reconhecimento e o interesse por autores como Jorge Luis Borges, Rubén Darío e outros.
Do lado hispânico, intelectuais, como o mexicano Leopoldo Zea, dispuseram-se a percorrer o continente, inclusive o Brasil, desde os anos 1940. O próprio Henríquez Ureña já dedicara em 1935 breve ensaio à literatura coirmã, Las letras brasileñas. Mas quando o crítico uruguaio Alberto Zum Felde publicou, em 1954, seu livro Índice crítico de la literatura hispanoamericana, contribuição fundamental para os estudos literários integradores do continente, o Brasil, como se percebe pelo título, ficou de fora; e a mesma coisa aconteceu em seus estudos sobre a narrativa.
Apesar dos esforços, a tendência geral da reflexão e dos estudos literários na América Latina foi a de se constituir em universos separados. A crítica brasileira erigiu, durante décadas a partir do final do século XIX, estudos sistemáticos sobre a originalidade e a pertença à literatura do Ocidente de suas letras pátrias, que teve ponto alto na geração dos escritores e críticos modernistas depois da Semana de Arte Moderna de 22. Em 1952, pouco antes do livro de Zum Felde, Wilson Martins publicou A crítica literária no Brasil, integrando uma visão histórica dos processos críticos brasileiros. Essa permaneceu a tendência geral no Brasil durante a primeira década do pós-guerra.
Bases teóricas: de Candido a Rama
Em ambos os lados linguísticos predominantes na América Latina já havia uma massa de estudos críticos, históricos, metodológicos (como os de Alfonso Reyes, Augusto Meyer, Lúcia Miguel Pereira) que constituíam sólida base reflexiva para cada um a respeito da organicidade e dos desencontros de seu próprio mundo.
O fulcro da mudança desse estado foi o encontro de dois sistemas de pensamento a partir de 1960. Um foi o desenvolvido pelo crítico Antonio Candido, para analisar e interpretar o nascimento da literatura brasileira a partir do século XVIII com o intuito de construir uma literatura autônoma em relação às europeias, reconhecendo, entretanto, foros de paternidade. Mas era apenas de paternidade: a outra parte vinha das culturas presentes no continente, enraizadas ou que se foram enraizando.
O outro sistema foi o proposto pelo crítico uruguaio Ángel Rama para consolidar a visão de que as criações literárias da América Latina podiam ser lidas dentro das balizas de uma história comum. Dispôs-se a ler, a viajar, a manter correspondência com outros intelectuais, a escrever no sentido não só de apresentar a ideia de uma literatura latino-americana, mas também de provar que havia uma. Essa seria apenas a ponta do iceberg, ou, invertendo a imagem, a semente de raiz de uma identidade cultural definida, portanto, como algo a construir, ao invés de ser resgatado do pretérito.
Rama, a partir dos anos 1960, nos artigos do semanário Marcha de Montevidéu, até sua morte, em 1983, projetava a América Latina para o futuro, abrindo-lhe a perspectiva de ser uma resposta de dimensão secular a todos os processos sucessivos de conquista e dominação, na medida em que pudesse tornar-se um território de liberdade solidária com fundamento numa visão abrangente de suas homologias culturais, apesar de suas diferenças.
Essa determinação e suas implicações indicavam também que a crítica literária via seu eixo central definitivamente deslocado do jornalismo, que inicialmente a caracterizara na América Latina, para as universidades, movimento que já começara a se definir, em termos continentais, a partir da primeira metade do século XX. Entretanto, nem para Candido nem para Rama a dimensão pública da crítica deveria recuar, nem o jornalismo militante deveria ser desprezado como campo e arma do pensamento.
Sistema literário ou manifestação?
A fundamentação de Antonio Candido exposta nas primeiras páginas de Formação da literatura brasileira – momentos decisivos (1959) começava no conceito de sistema literário, oposto ao de manifestação literária. Manifestações literárias eram fenômenos eventuais, característicos dos primeiros séculos da ocupação colonial nas Américas, que atestavam mais seu vínculo com a transplantação ibérica de práticas europeias para a nova paisagem do que uma articulação orgânica entre elas ou com algum projeto de literatura própria nas terras ocupadas. Já um sistema literário se caracteriza por uma articulação orgânica, triangular, entre um corpo de autores, de obras e de leitores (em que se deve incluir a mediação fundamental da crítica).
A relação entre dois polos é mediada pelo terceiro. Assim, a relação entre o corpo de leitores e uma obra é mediada pela imagem que aqueles fazem de seu autor, criando expectativas (que podem ser satisfeitas, deslocadas ou rompidas); da mesma forma, a relação do autor com seus leitores é mediada pelas suas obras. Mas, igualmente, a relação do autor com sua obra é mediada pela imagem de leitor que aquele tem, e que quer atingir ou também recusar. Dessa forma, a relação do autor, imaginária ou não, com seu público, real ou latente, passa a ser também um fator interno das obras literárias (e artísticas de modo geral), determinando as escolhas estéticas.
Além dessa dimensão sincrônica, “espacial”, que num determinado momento articula o triângulo autor–obra–público, num sistema literário, há também uma dimensão diacrônica, “temporal”.
O sistema literário se constitui quando autores de uma geração reconhecem os autores, obras e leituras de outras gerações, em sua própria nação, como sendo de sua própria pertença, isto é, quando se reconhecem herdeiros de uma tradição particular seja para confirmá-la, negá-la, ou ambos simultaneamente e em graus variados. Isso não negava a articulação, as coincidências, as influências recebidas, as intertextualidades com outras literaturas tidas como modelares. Mas afirmava o caráter orgânico e articulado das proposições dos intelectuais que resolveram construir em sua pátria uma literatura segundo a imagem dos modelos europeus de que dispunham, mas ao mesmo tempo dotados de autonomia em relação a eles.
Na consideração de uma literatura nacional, o conceito de sistema envolve também o reconhecimento de instituições de suporte, como academias, o sistema educacional, incluindo o superior, revistas, prêmios, casas editoriais.
À medida que se considera um sistema internacional progressivamente abrangente, o conceito se esgarça. Assim mesmo, há casos de editoras que se projetam pelo continente (sobretudo no caso hispano-americano), revistas e prêmios que abrangem o continente (a revista e o prêmio da Casa de las Américas, de Havana), e há uma demanda crescente pela integração dos sistemas universitários. Mas permanece, sobretudo, a recorrência a um repertório comum de fontes, imagens, metáforas e referências, criando o sentimento e a percepção de um enraizamento, de uma história e de um ritmo comuns e peculiares da vida intelectual.
Segundo a Formação… de Antonio Candido, o sistema literário começara no Brasil com os árcades do século XVIII e se concretizara com as últimas gerações românticas, já na segunda metade do século XIX. O sinal de que a literatura brasileira adquirira plena autoconsciência era o ensaio Instinto de nacionalidade, de Machado de Assis, publicado em 1873, que estabelece os elos e as rupturas entre os escritores brasileiros do século XVIII e os do século XIX.
Conhecendo Candido e sua proposta quando da viagem deste a Montevidéu em 1960, Ángel Rama viu nessa conceituação a chave para elaborar uma visão unitária dos processos literários na América Latina, que respeitasse seu caráter plural e incluísse o Brasil. Publicou vários ensaios, em diferentes e sucessivas versões, sobre o tema.
Alguns dos marcos dessa trajetória são Diez problemas para el novelista latinoamericano, publicado na Revista Casa de las Américas em 1964; La formación de la novela latinoamericana, Canadá, 1973; Medio siglo de narrativa latinoamericana (1922-1972), Itália, nesse mesmo ano; Los procesos de transculturación en la narrativa latinoamericana, Venezuela, 1974; El boom en perspectiva, Colômbia, 1982; e seu livro Transculturación narrativa en América Latina, publicado no México em 1982, em que compila seu pensamento.
O crítico via, primeiro, na América hispânica, uma série de manifestações literárias relativamente isoladas umas das outras, graças à precariedade das instituições culturais, à falta de profissionalização da produção literária, e à grande divisão em muitos países do antigo império espanhol, ao contrário do Brasil, cujo território se mantivera basicamente unificado.
Ressaltava a precocidade da constituição do sistema literário brasileiro, já consolidado na segunda metade do século XIX. Na América hispânica os primeiros sistemas se formaram em torno de Buenos Aires e do México.
Considerava a especificidade do Brasil ao comparar o Movimento Modernista de 1922 e as vanguardas literárias da mesma época, nos países americanos de língua espanhola. Aquele, ainda que em conexão permanente com as vanguardas europeias, se mantivera organicamente autocentrado em torno do público interno, brasileiro, até mesmo por seu “confinamento” à língua portuguesa. Já as vanguardas hispano-americanas mantiveram de modo mais constante a ambição de obter o reconhecimento de suas congêneres e públicos europeus.
A invenção “comum” do futuro
Na primeira metade do século XX houve notável mudança integradora no panorama das letras latino-americanas. A partir de São Paulo e da Semana de Arte Moderna constituiu-se uma vanguarda orgânica em grupos literários pelo país; na América hispânica surgiu uma geração de criadores, sobretudo de poetas (como no Brasil naquele momento), que operaram mudanças “em conjunto”, dando um sentido de simultaneidade à produção literária do México até a Terra do Fogo.
No lado brasileiro, o nome reivindicado foi o de Modernismo; na América hispânica os poetas e artistas denominaram-se vanguardistas. Entre esses, Modernismo já fora o nome do movimento de renovação ao final do século XIX, correspondente ao Parnasianismo e Simbolismo no Brasil. Apesar dos nomes diferentes, tais movimentos de renovação tiveram um ritmo comum, propósitos semelhantes e interfaces estéticas significativas. O embasamento de uma perspectiva comum da literatura latino-americana não anula a percepção das diferenças; mas ressalta a existência de influxos, propósitos e ritmos semelhantes que permitem o esforço comparativo.
Por toda a América Latina a produção literária viu-se sob o domínio do “novo”. Multiplicaram-se as revistas e os manifestos programáticos. Los Nuevos foi nome de revistas em Montevidéu e em Bogotá; no Brasil notabilizaram-se a Revista de Antropofagia, com o Manifesto Antropófago. No México, surgia Contemporâneos; no Peru, Amauta; em Cuba, Avance.
A novidade dos movimentos era que não queriam apenas superar o passado; queriam também superar o presente, projetando-se para o futuro.
Em muitos países, processos rápidos de industrialização e urbanização agitavam as raízes e tradições herdadas do passado. Novas levas de imigrantes reorganizavam os espaços urbanos, rurais e a paisagem cultural. Camadas médias ganhavam espaço e reivindicavam mais; oligarquias tradicionais entravam em crise financeira, enquanto cresciam os poderes de uma nova burguesia industrial e da mercantil; um novo proletariado urbano formava-se, levas de migrantes dirigiam-se a cidades que se tornavam metrópoles agitadas e vetores de modernização, enquanto populações rurais passavam a reivindicar terra e melhores condições de vida.
O processo aberto pela Revolução Mexicana, a partir de 1910, deu visibilidade mundial aos dramas do continente, onde cresceram a visão e o sentimento de que era necessário superar o seu “atraso”, atingindo de vez a “contemporaneidade” com as sociedades avançadas. Progressivamente, essa forma de consciência politizou-se tanto à direita como à esquerda com a ascensão do comunismo na União Soviética, do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha.
Em seu impulso radicalmente inovador, as vanguardas criaram uma dupla tendência na América Latina. Uma, voltou-se para o reconhecimento do público europeu como o público “universal”, “internacional”, cujo modelo era o desejável. A outra, fixou-se em realizar mudanças dentro da moldura da “sua” América Latina, e do “seu” público, ainda que rarefeito e disperso. Essas duas tendências conviveram e entrelaçaram-se; a Europa (Paris) seguia sendo uma referência, como ilustra o caso do brasileiro Oswald de Andrade, ao proclamar ter descoberto o Brasil do alto da Torre Eiffel.
Voltando-se para as marcas de suas heranças culturais, para reavaliá-las ou negá-las, o vanguardismo, afirma Rama, em Medio siglo de narrativa latinoamericana, “não só inventou o futuro como também refez o seu passado”. Essa releitura do passado explicava a ruptura com o presente, com as formas estabelecidas do presente e a busca incessante do “novo”, que, às vezes, estava naquele próprio “passado”, sob a forma de tradições insuspeitas, submersas, como as indígenas e as de origem africana, e até as dos imigrantes mais recentes, em olhares esquecidos ou repudiados, como os das mulheres.
As vanguardas transmitiram como legado para o futuro a valorização da excentricidade, o que continuou ao longo de todo o século XX sob a forma das contínuas redescobertas dos “esquecidos” ou “silenciados”, como os poetas Kilkerry e Sousândrade e o dramaturgo Qorpo-Santo no Brasil, e a valorização nos estudos literários das literaturas populares, como a de cordel, comum no Nordeste brasileiro.
Durante as décadas de 1960 e 1970, no Equador, redescobriu-se a leitura dos textos de Pablo Palacio, na Venezuela os de Julio Garmendia, na Argentina os de Santiago Dabove e Macedonio Fernández, e no Uruguai os de Felisberto Hernández e Alfredo Mario Ferreiro. Valorizaram-se as oralidades; as releituras mais recentes do indigenismo andino exaltavam agora como escolhas estéticas conscientes o que era visto antes como defeito, no sentido de dignificar a cultura popular, como fazem Agustín Cueva e Antonio Cornejo Polar em relação a Huasipungo (1934), do equatoriano Jorge Icaza. Chegou-se até ao enaltecimento das literaturas em línguas indígenas, antes esquecidas.
Regionalismos e revolução narrativa
Conquanto os movimentos vanguardistas a partir dos anos 1920 se notabilizassem primeiro pela poesia, sua releitura do passado abriu espaço para que se questionassem os regionalismos e as formas das narrativas anteriores, marcadamente herdeiras do naturalismo francês. O questionamento provocou uma redefinição desses regionalismos e realismos em toda a América Latina, abrindo caminho para autores que se formaram literariamente antes ou durante a Segunda Guerra Mundial, e que atingiram o apogeu de sua criatividade depois dela e durante a Guerra Fria, realizando uma grande revolução, de dimensões continentais, na “inteligência literária” da América Latina.
É a geração cujos corifeus no plano narrativo Rama identifica como Guimarães Rosa, Juan Rulfo, Augusto Roa Bastos, José María Arguedas e Gabriel García Márquez, mas a que se devem juntar ainda, entre muitos outros, Clarice Lispector, Antonio Callado, Érico Veríssimo, Carlos Fuentes, Miguel Ángel Asturias, Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa, José Lezama Lima, Guillermo Cabrera Infante, além dos muitos poetas, como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Nicolás Guillén, Pablo Neruda, René Depestre.
Na crítica e no ensaio essa é a geração de Rama e de Candido, além de ser também de Afrânio Coutinho, Benedito Nunes, Emir Rodríguez Monegal, Octavio Paz, Arturo Ardao, Noé Jitrik, David Viñas, José Luis Martinez, José Miguel Oviedo e muitos outros. Eram escritores, poetas e críticos de gerações etárias e inclinações estéticas, políticas e culturais muito diferentes. No entanto, tinham em comum o fato de viverem intensamente, já plenamente maduros ou ainda despertando para a maturidade literária, os processos de modernização deflagrados na América Latina depois da Segunda Guerra Mundial e durante a Guerra Fria.
Essa geração, com suas concordâncias e polêmicas, consolidou aquela consciência do “repatriamento” do conceito de uma literatura (e cultura) latino-americana. Renovou todas as artes no pós-Segunda Guerra, e nos cinco continentes. A integração de vários intelectuais latino-americanos com os africanos passou a ser notória, seja através do movimento de descolonização, seja através dos movimentos ligados à ideia da negritude, ou de ambos, pois muitas vezes um se confundia com o outro. Os caribenhos Aimé Césaire, Nancy Morejón, Nicolás Guillén, René Depestre, Edouard Glissant, os brasileiros Abdias do Nascimento, Solano Trindade e os africanos Léopold Sedar Senghor, Agostinho Neto, Samora Machel e Mário de Andrade (o poeta angolano) passaram a criar ou a ser lidos nessa dimensão.
Rama viu nessa geração os transculturadores da literatura latino-americana. Esse conceito de “transculturação” veio da antropologia, do livro Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (1940), de Fernando Ortiz, que o opõe ao de “aculturação”, para analisar os processos de fusão cultural em cenários de desigualdade social.
Pelo conceito de “aculturação”, culturas dominantes e hegemônicas assimilariam, quase sem se modificar, elementos de culturas subalternas e remetidas a uma espécie de “passado da humanidade”.
Pelo de transculturação, as culturas dominantes, ao entrarem em contato com outras culturas, mesmo que subalternas, também se modificam. Resulta desse processo dialético um novo universo cultural, que passa a fazer o papel de uma “nova tradição”, com as contradições que a expressão contém. Ortiz estudou a transculturação como processo inconsciente, involuntário. Ao transpor o conceito para o plano da criação literária, Rama incluiu nele os projetos estéticos, culturais e políticos formulados conscientemente.
Dentro dessa moldura conceitual, viu três movimentos que deram ao processo literário continental um ritmo (per)formativo comum, a que ele chamou de “as três irrupções da modernidade”. O conceito de “modernidade” tornou-se o “demônio particular” das culturas latino-americanas, a sua força inspiradora e ao mesmo tempo o limite que definiu, durante dois séculos, as inclusões e exclusões, as reinvenções do futuro e as remodelações do passado.
A primeira e mais antiga irrupção da modernidade foi a do século XIX, que começou com os processos de independência e de busca de uma autonomia cultural e culminou com o Modernismo hispano-americano (Parnasianismo e Simbolismo no Brasil) na passagem para o século XX.
A segunda irrupção da modernidade foi a das vanguardas, no século XX, que entrelaçava ao desejo de reintegrar-se ao universo europeu o impulso de redescobrir e redefinir a amplitude e as raízes das culturas latino-americanas, cuja expressão mais radical seria o Modernismo brasileiro.
A terceira irrupção da modernidade se deu após a Segunda Guerra Mundial, a da transculturação do romance, que abriu o espaço narrativo para a recuperação das dimensões míticas da memória, das narrativas orais ou imemoriais, perscrutando o imponderável das experiências individuais e as rearticulações coletivas.
É esse o lastro comum de narrativas como Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, Pedro Páramo (1958), de Juan Rulfo, Los ríos profundos (1958), de Arguedas, e Cien años de soledad (1967), de García Márquez, e Yo, el supremo (1974), de Roa Bastos.
Narrativas como essas articularam, no plano da contemporaneidade do romance, uma peculiaridade marcante (ainda que não exclusiva) das culturas e das sociedades latino-americanas, que é a da dramática construção de fronteiras de exclusão para um “passado da humanidade” de tudo aquilo que não faz parte dos sucessivos projetos de modernização (social, não apenas literária ou cultural) liderados pelas classes dominantes, e a recuperação desse “arcaico rejeitado” no plano da memória.
Essas narrativas não se limitavam a perseguir as revoluções ou transformações das formas de narrar para sua atualização, mas eram parte, senão a ponta, da revolução narrativa no pós-guerra.
A narrativa latino-americana chegava à autoconsciência de sua própria contemporaneidade, de seu caráter de vanguarda, dentro de um processo em que se afirmava a sua pertença a processos culturais homólogos e análogos nos diferentes países. Sua ocorrência no plano narrativo denotava sua absorção por um público leitor vasto, cuja base eram as camadas médias ascendentes, e que dariam, no continente, a sustentação ao subsequente boom da literatura latino-americana que atingiria a Europa e os Estados Unidos.
Universidades e comarcas literárias
Paralelamente, houve a criação de novas universidades, no Brasil, e a reforma ou refundação das antigas, como na América hispânica. A dinâmica universitária trouxe uma especialização ao exercício da crítica antes inexistente ou precária. Junto, a vida editorial dinamizou-se com a Sudamericana, a Emecé e a Losada, em Buenos Aires; a José Olympio, a Companhia Editora Nacional e a Livraria do Globo, no Brasil; a Fondo de Cultura Económica no México.
No caso da América hispânica houve um deslocamento do peso editorial para o continente devido à perseguição a editoras, movida pelo regime franquista na Espanha. A ditadura salazarista em Portugal também expulsou escritores e ensaístas portugueses para o Brasil.
Uma das noções mais importantes que acompanhou essa reflexão de Rama é a de comarca, que definia na América Latina a existência de regiões culturais, multilíngues e supranacionais dotadas de relativa homogeneidade ou formas aparentadas de criação artística que se influenciam mutuamente.
Há a comarca pampeana, com parte da Argentina, o Uruguai e o sul do Brasil; há a andina, que se estende do norte da Argentina até a Colômbia e a Venezuela; a caribenha, que abrange a Flórida, o sul dos Estados Unidos e o litoral atlântico da Colômbia e da Venezuela; a Amazônia é outra imensa comarca, assim como a região do Pantanal entre Brasil e Bolívia; há outras comarcas que a América Central abriga, conforme, por exemplo, o substrato maia ou azteca. Ampliando o conceito, atualmente se identifica uma comunidade literária limitada pelo litoral brasileiro e africano.
O conceito de comarca compreende e supera a dicotomia entre o mundo rústico e o urbano, as literaturas dos imigrantes e dos emigrados e as diferentes modalidades de escrita e de gênero. Fazem parte da literatura da comarca pampeana os contos fantásticos de Borges, Cortázar e Adolfo Bioy Casares, a produção de Silvina e Victoria Ocampo e do uruguaio Francisco Espínola; O tempo e o vento de Érico Veríssimo; os contos de Moacyr Scliar ambientados no bairro judeu de Porto Alegre; Las babas del diablo, de Cortázar, ambientado em Paris; ou El sur, do mesmo Borges, entre Buenos Aires e o pampa argentino.
Realismo fantástico
Graças a conceitos como esse é possível começar a observação de tendências supranacionais no interior das literaturas latino-americanas, quando antes a crítica buscava mais sistematicamente apenas a comparação com as culturas europeias ou a norte-americana, por muito tempo tomadas como “matrizes” dos “desdobramentos” deste lado do Atlântico. Em seus trabalhos, Rama delineou algumas dessas tendências, mas a presença de outras também se impôs com o passar do tempo e a virada para o século XXI.
Durante a segunda metade do século XX, desenvolveu-se, na comarca pampeana, uma literatura fantástica ; seguindo caminhos abertos, entre outros, por Edgar Allan Poe, o fantástico situa-se naquele lusco-fusco da consciência em que os critérios da verossimilhança realista são postos em dúvida, mas não rompidos de todo.
O conto “Las babas del diablo”, de Cortázar, que aparentemente é narrado por um morto deitado de costas na ilhota de Saint-Louis, em Paris (e que inspirou o filme Blow up, de Michelangelo Antonioni) é um bom exemplo, pois não possibilita ao leitor definir com precisão a origem da matéria narrada. Borges, Horácio Quiroga e o próprio Cortázar foram mestres no gênero, associado à leitura de um mundo novo em que velhas e antigas formas de vida subsistem, desenhando uma permanente sensação de estranhamento e de impossibilidade de ler os signos à volta.
Tal modo de narrar faz ressoar o sentimento recorrente de uma América Latina permanentemente assolada por processos de modernização copiados do exterior que transformam padrões consagrados em “passados irreconhecíveis”. O gênero teve menos repercussão no Brasil, mas assim mesmo teve cultores, como os escritores Murilo Rubião (O pirotécnico Zacarias, 1974) e J. J. Veiga (A máquina extraviada, 1968).
Em particular no Caribe floresceu a literatura do real maravilhoso, incorporando à narrativa romanesca os mitos e as visões herdeiras das culturas nativas e de origem africana, cujo exemplo clássico é El reino de este mundo, de Alejo Carpentier. Essa característica propiciou a prática de uma prosa exuberante, levando esse autor, inclusive, a formular a ideia de que a herança barroca seria o eixo central e comum das culturas latino-americanas.
Em toda a América Latina floresceu uma narrativa realista crítica , voltada para o crescente processo de urbanização ou para o desenraizamento das populações rústicas de seus territórios de origem.
Herdeiros dos caminhos abertos por escritores da década de 1930, como Graciliano Ramos no Brasil, aí se encontram, em gêneros muito diferentes, que vão da pura ficção ao testemunho pessoal, Ernesto Sábato, José Revueltas, Juan Carlos Onetti, Mario Benedetti, Fernando Alegría, Carlos Fuentes, Rodolfo J. Walsh, Mario Vargas Llosa, Antonio Torres, Roniwalter Jatobá, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, a Clarice Lispector de A hora da estrela, Luís Vilela, Antonio Callado, Dionélio Machado, Érico Veríssimo, Caio Fernando Abreu, Lygia Fagundes Telles, Dalcídio Jurandir, e também o caso muito especial de Maria Carolina de Jesus: mulher e negra, seu livro-testemunho sobre sua vida numa favela, Quarto de despejo, projetou-se mundialmente. Marcou também uma tendência crescente à valorização da literatura diretamente testemunhal.
O romance histórico, revisitando as origens próximas ou remotas das formações culturais no continente, é um gênero constante na América Latina, como no caso dos brasileiros Érico Veríssimo (O tempo e o vento), Luís Antônio de Assis Brasil (Um quarto de légua em quadro) e do paraguaio Roa Bastos (Yo, el supremo). El siglo de las luces, de Alejo Carpentier, pode também ser considerado como tal.
As relações entre literatura e jornalismo deságuam em expressivas obras como as de Vargas Llosa, no Peru, Tomás Eloy Martínez, na Argentina, José Louzeiro, no Brasil; no romance reportagem, como Operación masacre, de Rodolfo Walsh, e Noticias de un secuestro, de García Márquez. Também podem rumar para relatos fragmentários que recuperam e estilhaçam momentos históricos, como em O motor da luz, novela do brasileiro José Almino.
Estilos brutais e populares
Não raro, o advento das ditaduras e as dramáticas desigualdades sociais trouxeram um estilo particularmente brutal para tais narrativas, e também para a poesia e o teatro. Com frequência, como no caso dos brasileiros João Antonio, Luiz Ruffato, Paulo Lins e Ferrèz, abordaram o dramático mundo das marginalidades urbanas. No caso dos hispano-americanos, não faltam obras expressivas de escritores como o porto-riquenho anti-imperialista Pedro Juan Soto, e a geração McOndo, surgida em 1996 com uma coleção de contos, representada por, entre outros, o chileno Alberto Fuguet, que busca compor a vida urbana através do olhar crítico sobre a globalização.
Tais escritores visitaram as marginalidades rústicas, como no conto “Meu tio, o iauaretê”, de Guimarães Rosa, voltado para o extermínio de uma cultura, através da história do caboclo mestiço que acredita tornar-se um jaguar. Ou em Balún Canán da mexicana Rosario Castellanos, que tematiza a problemática dos indígenas. Também nas denúncias de um realismo social característico da comarca andina, como no romance Huasipungo, do equatoriano Jorge Icaza, marca a que também não foge Los rios profundos, do peruano José María Arguedas.
Outros dedicaram-se a satirizar os sistemas sociais e políticos vigentes por meio de textos humorísticos como os brasileiros Millôr Fernandes e Luís Fernando Veríssimo, o guatemalteco-mexicano Augusto Monterroso e o mexicano Jorge Ibargüengoitia.
A literatura popular encontra larga divulgação na América Latina. No Brasil, é conhecida também por literatura de cordel, tendo sido largamente praticada na região Nordeste por inúmeros poetas. Entre os mais conhecidos estão Leandro Gomes de Barros e o poeta popular Patativa do Assaré, “nome de guerra” de Antônio Gonçalves da Silva. A partir das últimas décadas do século XX, com a migração crescente para os centros urbanos, essa literatura ganhou novos espaços, sendo produzida, por exemplo, em São Paulo. No México, onde é herdeira dos pliegos de cordel ou pliegos sueltos da Espanha, ela ganhou contornos políticos com Amparo Ochoa, que cantava a memória da Revolução Mexicana.
Inovações a despeito e contra a crítica
Embora rejeitados por parte da crítica acadêmica como coisa do passado, paroquial e anacrônica, os regionalismos continuaram sendo forças vivas na produção literária, ampliando-se, adaptando-se às novas molduras culturais como se lê na obra do brasileiro Sérgio Faraco.
Com eles, foram atualizadas tendências como as do indigenismo, do criollismo, ou retomados temas que remontam ao indianismo identitário do século XIX, ainda que sob a forma de paródias ou deslocamentos, como no caso de Maíra (1976), de Darcy Ribeiro. Mas aqui é o próprio índio que conduz sua história, dilematicamente colocado entre uma sociedade moderna triunfante que não o aceita e sua cultura cuja dimensão ele mesmo perdeu.
Valoriza-se cada vez mais a literatura que, além de ambientar-se em regiões específicas, trazem à cena as aventuras mais recentes ou históricas dos imigrantes, como no caso de Raduan Nassar (Lavoura arcaica) e Milton Hatoum (Relato de um certo oriente e Dois irmãos).
Nessas modalidades houve um desenvolvimento extraordinário do conto, impulsionado pelas circunstâncias que favorecem as leituras fragmentadas, a mídia impressa, o desenvolvimento das revistas e dos suplementos literários durante algum tempo (1950-1980), apesar de seu declínio posterior. Junto com o conto desenvolveu-se enormemente a crônica, praticada em quase todos os jornais e em todas as regiões como gênero preferencial de leitura diária.
Na criação narrativa, dois polos criativos e extremos se consolidaram, ainda que por vezes tenham convivido num mesmo escritor ou escritora. De um lado, houve escritores que se notabilizaram pela criação de mundos, e de outro aqueles que sobressaíram pela criação de novas linguagens. Entre os primeiros, estão o caso do brasileiro Érico Veríssimo e o do colombiano Gabriel García Márquez, com suas Santa Fé (de O tempo e o vento) e Macondo (de Cien años de soledad) tão presentes e marcadas pela história quanto fictícias e criadas inteiramente pela imaginação.
Entre os segundos, estão os casos da brasileira Clarice Lispector, que desde suas primeiras obras criou linguagens inovadoras para dar conta dos estados de alma de seus personagens, ou do argentino Julio Cortázar, que transformou por vezes seus romances em quebra-cabeças ou modelos para armar.
Não raro a convivência harmoniosa entre as duas linhas de criatividade deram como resultado obras-primas, como no caso de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, cujo sertão é tão brasileiro quanto imaginário e aberto para uma pluralidade de culturas que chegam até a cabala e o Oriente e cuja linguagem é completamente reelaborada à luz de neologismos e arcaísmos. Também é o caso de Los rios profundos, do peruano José María Arguedas, cujos vales andinos são tão reais quanto absolutamente pessoais e cuja linguagem é um espanhol recomposto à luz não só de termos e temas, mas também de uma prosódia vinda do quíchua.
Textos de resistência e reivindicação
Por força das circunstâncias, graças às contínuas ditaduras que se abateram sobre os países da região, com frequência a literatura engajada socialmente tornou-se de resistência, o que abrangeu não só a narrativa, mas também a poesia, o teatro e a música popular.
Em momentos em que o jornalismo estava sob censura, e a história não podia narrar sua própria história, a literatura assumiu o papel de contar o que não devia ser contado . Nesse campo houve um enorme desenvolvimento da memorialística, seja através de romances-testemunho, de memórias, ou de relatos ficcionais, mas claramente ancorados em fatos concretos e bem determinados: Recuerdos de la muerte, de Miguel Bonasso, O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira, A festa, de Ivan Ângelo, ¿Quién mató Rosendo?, de Rodolfo Walsh, Quatro-olhos, de Renato Pompeu, En la cola de la lagarta, de Luisa Valenzuela.
A mesma coisa vale para escritos como Weekend na Guatemala, de Miguel Ángel Asturias, ou La casa de los espíritus, de Isabel Allende. A preocupação com denúncias sociais e políticas e o protesto diante das formas de censura e de autoritarismo em sociedades tão marcadamente desiguais, como as latino-americanas, têm sido uma constante na literatura de todo o continente.
Junto a essa literatura de resistência desenvolveu-se uma de reivindicação, produzida por e para grupos sociais emergentes, como os ligados a etnias (negros, índios, imigrantes) ou a preferências sexuais (gays, lésbicas). Um marco no reconhecimento da escrita feminina ou da consciência feminina na América Latina foi a concessão do primeiro Prêmio Nobel de Literatura para a escritora chilena Gabriela Mistral, em 1945.Mas foi a partir dos anos 1960 que cresceu uma produção literária como forma de reivindicação para a consciência do mundo feminino, e das características próprias de sua expressão. Mesmo autoras, como Clarice Lispector, que não tinham escrito uma obra feminista militante, são relidas dessa forma. A escrita e a crítica de e por mulheres ganhou novo e excepcional relevo, ainda que muitas vezes elas enfrentassem preconceitos. Mas essa literatura teve especial impulso no final do século passado, abarcando todos os gêneros, além da ficção, como o ensaio e a poesia.
Na América Central ganharam relevo obras como as das costa-riquenhas Ana Cristina Rossi (Limón Blues; La loca de Guanduca) e Carmen Naranjo (Hacia tu isla; Camino al medio dia); e a da jamaicana Velma Pollard, que ganhou o prêmio Casa de las Américas em 1992 com seu romance Karl.
Também a escrita de grupos e escritores voltados para a homossexualidade masculina e feminina e a pansexualidade ganhou enorme relevo no continente, não só denunciando preconceitos, ou reivindicando um espaço cultural próprio, mas também perscrutando sua identidade e dialogando com outras.
A produção é vasta e diversificada, abrangendo casos como os da argentina Silvia Molloy (El común olvido, 2001) e do também argentino Néstor Perlongher (Alambres, 1987; Hule, 1989; El cuento de las iluminaciones, 1992); obras da uruguaia Cristina Peri Rossi, como Desastres íntimos (1997) e da cubana Sonia Rivera Valdés que, com Las historias prohibidas de Marta Veneranda, ganhou o prêmio Casa de las Américas em 1997; obras dos cubanos Severo Sarduy e Reinaldo Arenas (Antes que anochezca, 1991) e do brasileiro João Silvério Trevisan (Testamento de Jônatas deixado a David, 1976; e O livro dos avessos, 1992), além da poesia de Ana Cristina César.
Forte reivindicação, herdeira ou crítica dos tempos da negritude, veio dos movimentos que agora se assumem como de afrodescendentes. São manifestações que atingem todos os campos culturais, confundindo-se muitas vezes com outras reivindicações e denúncias de preconceitos, como as relativas à pobreza e à exclusão social na obra de Serge Patient da Guiana Francesa. Desenham-se hoje no marco da busca de um multiculturalismo e de um pós-colonialismo que não exclua as diferenças, mas, ao contrário, sublinhe a sua existência, como nos textos do martinicano Patrick Chamoiseau.
Ainda assim, nessa perspectiva multicultural, valorizam-se também o encontro e a mixagem de diferentes culturas. Esse tipo de literatura viu-se enormemente valorizado com a concessão do Prêmio Nobel, em 1992, ao conjunto da obra do poeta caribenho Derek Walcott, que reivindica tanto a condição/solidão do escritor negro quanto o multiculturalismo de sua ilha natal, Santa Lúcia.
Mais práticas e outros públicos
Durante todo esse tempo houve também uma literatura voltada para o insólito, para os estados impenitentes da alma, o indizível, o nefasto, o nefando, que Rama certa vez chamou de “a pesquisa do lixo”, da decadência e da decrepitude, e que poderíamos nomear também como os estados da podridão. Aí estão parte da obra do chileno José Donoso, também da de Carlos Fuentes, de Salvador Garmendia, de Salvador Elizondo; a este se juntam partes das obras de Rubem Fonseca, de Dalton Trevisan e da Clarice Lispector de A via crucis do corpo.
O mergulho nos estados de alma levou a uma exploração original do erotismo, em que também ganhou grande relevo a escrita da consciência feminina. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969), de Clarice Lispector, foi pioneiro nesse aspecto. Ganharam relevo obras como as da brasileira Hilda Hilst (Poemas malditos, gozosos e devotos, 1984) e da guatemalteca Ana Maria Rodas (Poemas de la izquierda erótica, 1973).
A segunda metade do século XX foi palco de um extraordinário desenvolvimento da literatura dirigida ao público infantil e infantojuvenil. Esse tipo de literatura foi praticado por escritores e escritoras que se destacaram nos gêneros para adultos, como a chilena Gabriela Mistral e o também chileno Antonio Skármeta, autor do famoso romance El cartero de Neruda e de Ardente paciencia. Skármeta ganhou o Prêmio da Paz Gustav Heineman de Literatura Infantil em 2004, na Alemanha.No Brasil, há inúmeros escritores e escritoras no gênero trilhando o caminho aberto pelo extraordinário Monteiro Lobato e pelos personagens do seu antológico Sítio do Pica-pau Amarelo, destacando-se mais recentemente Lygia Bojunga e Ana Maria Machado, que ganharam o prêmio internacional Hans Christian Andersen, da Dinamarca, e desenhistas como Ziraldo. Na Colômbia, o gênero ganhou excepcional desenvolvimento, com as obras premiadas de Pilar Lozano e também as de Leopoldo Berdella e Rubén Vélez, entre as de muitos outros.
Um tema recorrente nesse tipo de literatura na América Latina é a integração dos imaginários de origem europeia e os nativos das Américas, como no caso da boliviana Yolanda Bedregal, e também os de origem africana.
O hoje e os embates das modernidades
Em todos os casos dessas modalidades literárias, sejam elas de reivindicação ou não, se faz presente na consciência dos escritores um esforço de “atualização” da prática literária, como se esta estivesse sempre perseguindo a sua própria contemporaneidade, ou vencendo um atraso, ou ainda recuperando algo que ficou perdido no passado, deixado para trás indevidamente como desatualizado, ou sem futuro.
Se há, portanto, um processo comum aos sucessivos momentos da criação literária na América Latina, ele é o da sucessiva busca ou construção das “modernidades fugidias”. A modernidade aparece como utopia e como condenação; como ideal inclusivo e também exclusivo; de afirmação e de negação; de vislumbre do futuro e de exclusão para o passado de tudo que não caiba em suas sucessivas versões.
A busca da modernidade foi o ideal de integração do presente no futuro, mas também de desintegração das formas tradicionais do passado ou daquelas que simplesmente não convergiam para o ideário dominante. Tamanho foi esse empenho constante de busca da modernidade, ou das modernidades, que muitos críticos hoje consideram esgotado, preferindo aderir às considerações, advindas dos Estados Unidos e da Europa, em torno de uma polêmica pós-modernidade que, num continente tão desigual, do ponto de vista social e cultural, facilitaria a percepção das diferenças apagadas pelos contínuos esforços de novas sínteses hegemônicas.
Aqui cabe um comentário mais específico sobre as formas poéticas na América Latina, porque elas sempre foram associadas de modo imediato a essa busca de atualização da inteligência no continente, e nelas os embates das modernidades, dos “passadismos” por vezes criados por elas, se deu de modo mais constantemente dramático e aberto.
A poesia acompanhou e por vezes liderou os processos de modernização literária na América Latina. O Modernismo hispano-americano, o Parnasianismo e o Simbolismo brasileiros foram movimentos eminentemente poéticos, ainda que tivessem características próprias na prosa, no ensaio e na crônica, revestindo-os por vezes de um preciosismo vocabular e de uma tonalidade poética. Conviveram sem rupturas dramáticas com o avanço das ideias positivistas e com o estilo naturalista na ficção.
Os movimentos de vanguarda e o Modernismo brasileiro do século XX, ainda que tivessem importantes prosadores nas suas fileiras, começaram por inovar nas práticas poéticas. Por um bom tempo o conceito de “vanguarda” permaneceu associado ao de “poesia”; também, em geral através desta e do convívio de artistas em movimentos, manifestos, cafés e na militância política, essas vanguardas do século XX mantiveram estreitas ligações com as artes plásticas, a música, o teatro, e logo descortinaram a importância de uma arte característica do século XX: o cinema.Manifestaram crescente interesse pela psicanálise, pelo marxismo, muitas vezes valorizaram o tom coloquial na escrita e mantiveram ligação estreita, senão orgânica no caso de poetas hispano-americanos, com movimentos europeus que se fizeram internacionais, como o Surrealismo e o Futurismo.
Foram movimentos que ao longo do tempo se dividiram em distintas tendências, e não raro em facções políticas adversárias. No Brasil, por exemplo, a Antropofagia, liderada por Oswald de Andrade e a pintora Tarsila do Amaral, tendeu à esquerda, enquanto o Movimento da Anta, reunindo Plínio Salgado (prosador e líder político do Integralismo) e os poetas Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia, tendeu à direita.
No terceiro impulso modernista, o do pós-Segunda Guerra, os movimentos de vanguarda prosseguiram liderando o debate em torno da poesia e a própria criação poética, com manifestos e rupturas polêmicas, propondo contínuas revisões dos cânones passados e presentes, como no caso da Poesia Noigandres, depois Poesia Concreta, no Brasil, liderada por Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, e a Poesia Práxis, liderada por Mário Chamie.
Também figuras individuais assumiram um papel de relevo coletivo, como foi o caso do chileno Nicanor Parra, quando lançou Poemas y antipoemas, em 1954. Sua “antipoesia”, voltada para o coloquial, o simples, afrontando o rebuscamento dos antigos modernistas de cinquenta anos antes, fugindo das ousadias retóricas dos vanguardistas, evitando o tom épico que por vezes perpassava a poesia de Neruda, chamou a atenção dos jovens e logo deflagrou uma voga de seguidores.
“Tentações” e renovações vanguardistas
Entretanto, se a tendência poética vanguardista tendeu à fragmentação, nem por isso ela deixou de manifestar constantes balizadoras. Num ensaio publicado em 1995, “Las dos tentaciones de la vanguardia”, o crítico argentino Noé Jitrik, reunindo pontos de vista explorados antes por Juan Larrea e Emir Rodríguez Monegal, respectivamente a respeito dos chilenos Vicente Huidobro e Pablo Neruda, caracterizou duas atitudes como balizas do comportamento das vanguardas poéticas.
Larrea conta a fuga de Huidobro, vestido de chofer, no automóvel, levando ou “sequestrando” sua jovem amada Ximena em 1928, através da cordilheira dos Andes até chegar à Europa. Já Monegal conta como Neruda, em 1949, tendo seu mandato de senador pelo Partido Comunista cassado, fugindo da polícia, atravessou a cordilheira a cavalo levando no alforje preciosos originais poéticos. Assinala Jitrik que de cada uma dessas aventuras nasceria um texto seminal para as gerações posteriores: Altazor (1931), de Huidobro, e o Canto general (1950-1951), de Neruda, cujos originais ele contrabandeara em sua fuga pela fronteira.
Jitrik assinala essas atitudes como “tentações” das vanguardas: o gesto espetacular, aparentemente apolítico, absolutamente desafiador, inovador (com o detalhe futurista do automóvel), e o engajamento histórico, profundo, radical, do corpo e da palavra (com o apelo criollista do cavalo).
Os movimentos poéticos de vanguarda mantiveram entrelaçadas essas “tentações” por todo o século XX, dividindo-se entre as inovações contundentes da linguagem e as manifestações revolucionárias ou comprometidas com reformas sociais profundas nas sociedades latino-americanas. Por vezes houve polêmicas acerbas entre líderes dessas “tentações”, como no caso brasileiro entre os “concretos” e os “engajados” (como Ferreira Gullar, que fora “concreto”) nos anos 1960, conforme as situações políticas se radicalizavam.
Mas de modo geral os movimentos de vanguarda, a partir dos anos 1960, foram diminuindo, se diluindo ou integrando movimentos mais amplos em torno ou dentro da publicidade, dos mass media, ou convergindo para a manutenção de posições individuais de relevo, poetas cuja vida e cuja atividade poética, por si só, já eram um verdadeiro “manifesto” referencial para os mais jovens. Em alguns, como no caso do mexicano Octavio Paz, essa mescla chegou a tal ponto que sua atividade poética tornou-se quase ensaística, enquanto seus ensaios carregaram-se mais e mais de ressonâncias poéticas.
Dentro de espectros ideológicos e estéticos muito variados, essa transformação do próprio perfil do poeta em signo de sua palavra acompanhou o trabalho e o destino de Borges e de Neruda, o legado de Gabriela Mistral, de Mário e Oswald de Andrade, de Cecília Meireles e Mário Quintana com suas presenças eivadas de ressonâncias simbolistas, de Leopoldo Marechal, da poesia de Nicanor Parra, de Nicolás Guillén, de Ernesto Cardenal, da poesia de Lezama Lima, de Manuel Bandeira, de Carlos Drummond de Andrade, de Murilo Mendes, de Vinicius de Moraes, de Jorge de Lima, de João Cabral de Melo Neto e de tantas e tantos poetas que atravessaram as vanguardas ou seus tempos de apogeu, como outros antes citados, para se tornarem referências individuais numa posteridade em que declinaram os movimentos coletivos.
Muitos desses poetas passaram a integrar movimentos mais amplos no teatro ou na música popular, como foram os casos, no Brasil, de Vinicius de Moraes em relação à bossa nova ou dos irmãos Campos em relação à Tropicália de Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros.
Na América Latina inteira a canção popular, contrariamente à tradição predominante na Europa, adquiriu status poético igual ao da poesia erudita, nos movimentos amplamente denominados de Nueva Canción, com Eduardo Falú, Jorge Leguizamón na Argentina, Alfredo Zitarrosa e Daniel Viglietti no Uruguai, Violeta Parra e Victor Jara no Chile, Pablo Milanés e Sílvio Rodrigues em Cuba, Chavela Vargas no México, e os já citados autores brasileiros, entre outros, como o letrista Fernando Brant e o compositor Chico Buarque de Holanda.
Houve ainda tendências marcantes de comportamento literário, mas não mais do ponto de vista de uma ação programática comum baseada numa proposta estética definida. Tal foi o caso no Brasil dos anos 1970, já durante a ditadura militar, da Geração do Mimeógrafo, cuja produção foi reunida na antologia 26 poetas hoje (1976), organizada por Heloísa Buarque de Holanda. Liderados por Antônio Carlos de Brito, o Cacaso, com poetas como Ana Cristina César, Chacal, Zulmira Ribeiro Tavares, e outros, o que os identificava era um protesto diante dos critérios pouco inovadores das editoras.
Publicavam e vendiam de mão em mão seus próprios poemas em plaquetas impressas em gráficas de amigos ou próximas de suas casas: valorizavam o tom coloquial; foram poetas “filhos” das grandes inovações da época – a fotocópia e a impressão em off set. Os mass media e a internet provocaram outra inovação na literatura internacional. Também a popularização da edição de livros e periódicos como o Ocas – jornal brasileiro que tem a participação de ex-presidiários residentes em grandes cidades. E a renovação das linguagens em face dos meios de comunicação contemporâneos também marca produções como a do argentino Manuel Puig (Boquitas pintadas).
Presenças em grupo ou coletivas
Os movimentos de vanguarda, ao declinarem, cederam espaço para outros tipos de escritas referenciadas em “presenças coletivas”: a escrita da consciência feminina, dos movimentos negros, de diásporas migrantes ou de imigrantes, dos povos indígenas, que se espalharam por todos os países da América Latina, estabelecendo integrações não só com a Europa e os Estados Unidos, mas também com a África, o Oriente Médio e o Oriente. Mas, de modo geral, essas novas “presenças” trazem a marca forte de perfis individuais, como, no Brasil, são os casos de Adélia Prado em relação à presença feminina e de Manoel de Barros em relação à região do Pantanal.
Na América hispânica, a mesma coisa vale para Ana Maria Rodas, Yolanda Bedregal, Gioconda Belli, da Nicarágua, por exemplo, quanto à presença feminina, e do argentino Manoel J. Castilla, quanto à forte presença de um mundo regional específico, no caso o norte de seu país, mais próximo da comarca andina do que do mundo de Buenos Aires.
Mesmo diluindo-se pouco a pouco em direção ao final do século XX, os movimentos vanguardistas, inclusive o Modernismo brasileiro e seus descendentes, deixaram, numa América Latina tão marcada pelos nacionalismos à direita e à esquerda, um nítido legado internacionalista, herdado de seus congêneres europeus.
Esse legado se fez sentir em todos os recantos de “nuestra” ou da “nossa América” não só como um contato com movimentos de outros continentes ou da América do Norte, mas na própria prática do texto literário. Valorizaram as linguagens inovadoras; a mistura de gêneros; a incorporação de práticas discursivas antes não valorizadas como literárias; lado a lado, o coloquial, o visual e a oralidade na expressão da palavra; por vezes o silêncio expressivo, por vezes a performance oral e corporal conjugadas, dando sentido dramático ao lírico e ao vestígio do épico.
Nesse campo as vanguardas introduziram na literatura, junto com seu reclamo do direito à experimentação, o conceito de que tudo o que não era literário pode passar a sê-lo.
Essa abertura construiu o caminho para inovações individuais; mas na medida em que os movimentos de vanguarda em sentido estrito entravam para a história, e se dissolviam as fronteiras entre os gêneros e também entre os países, ela também pavimentou o caminho para novas reivindicações coletivas.
Na contínua renovação das leituras do passado para romper os limites do presente, práticas literárias acolheram ou voltaram-se para os sistemas marginais ou esquecidos, à margem dos sistemas nacionais canônicos. Os estudos acadêmicos ou para-acadêmicos desempenharam papel fundamental nesse campo, ainda que não exclusivo. Já no passado houvera antologias, compilações e reflexões voltadas para os povos indígenas nas Américas, recolhendo contos, lendas, mitos, fábulas, ritos, narrativas etc. Também houvera todo tipo de aproximação com as literaturas populares, como no México, nos Andes, com os contadores de histórias do pampa e os cantadores do Nordeste brasileiro, por exemplo.
Entretanto, tudo isso mantinha mais ou menos evidente o desejo de se resguardar amostras de culturas e palavras evanescentes, ou condenadas, na expressão de Augusto Roa Bastos (Las culturas condenadas, 1980). Mas o que agora se valorizava era a própria prática nas línguas “esquecidas” pela literatura ou dentro dela. Um dos casos mais evidentes é a existência de uma literatura contemporânea em guarani no Paraguai.
“Ideias fora do lugar” e novos projetos
É certo que o conceito de uma literatura latino-americana, dotada de uma história comum e própria, só se constituiu organicamente, incluindo o Brasil, com os estudos de Ángel Rama depois de seu encontro com a Formação da literatura brasileira – momentos decisivos, de Antonio Candido. Juntos, com ajuda de outros pesquisadores, os dois críticos, enquanto Rama viveu, delinearam dois outros projetos fundamentais.
O primeiro, começado ainda quando Rama estava exilado na Venezuela, foi o da Biblioteca Ayacucho, com apoio do governo venezuelano. Criada em 1974, para comemorar os 150 anos da batalha decisiva pela independência das colônias hispano-americanas que lhe deu o nome, a biblioteca é uma coleção de obras latino-americanas da mais variada espécie, mas com ênfase na literatura e que deveria também dar ênfase proporcional às populações da América Latina. De acordo com o plano inicial, aproximadamente um terço das obras deveria ser brasileiro, levando o público de língua espanhola ao encontro de um universo que corresponde, em área e população, a quase um terço da região. A coleção já conta com mais de uma centena de volumes.
Também imaginaram os dois críticos a criação de uma história da literatura latino-americana, escrita a várias mãos mas orgânica, centrada no discernimento de pontos de contato numa perspectiva abrangente sobre a produção literária da América Latina, e que chegasse ao exame de obras e tendências particulares e concretas. Esse projeto ficou apenas no papel, pois a morte de Rama o interrompeu.
Anos mais tarde, a crítica chilena Ana Pizarro, que chegou a participar das primeiras formulações, realizou, a partir dele, um projeto paralelo, publicado em 1995: América Latina: palavra, literatura e cultura, em três volumes, com 83 ensaios de outros tantos autores, além de prefácios e introduções, sobre os mais variados aspectos históricos e atuais das literaturas da América Latina. Não é uma história orgânica e unificada, mas foi um grande passo nessa direção, até porque, pela primeira vez, numa obra de tal porte, os textos aparecem alternadamente em português e espanhol, conforme a nacionalidade de seus autores.
Desde sua criação e fundamentação, esse conceito de uma literatura latino-americana só fez crescer. Ángel Rama e Antonio Candido tiveram predecessores, mas outros estudiosos trouxeram inúmeras contribuições, por vezes até em aportes críticos aos pontos de vista por eles desenvolvidos, à sedimentação de uma perspectiva latino-americana na leitura das obras aqui produzidas. Mais recentemente acentuou-se a inclinação de se buscar estudos particularizados de momentos precisos, como os das vanguardas, de tendências definidas, como o multiculturalismo, o pós-colonialismo e o hibridismo em certos autores ou regiões e comarcas.
Outros críticos deram contribuições aos estudos de suas literaturas nacionais que se tornaram modelares ou inspiradoras para os estudos literários no continente, como a da interpretação das “ideias fora do lugar”, do crítico Roberto Schwarz, em relação à obra de Machado de Assis.
Ainda outros retomaram as leituras de Candido e Rama, revendo-as, ampliando-as ou mesmo polemizando com elas. Ou aprofundaram os estudos das relações entre autores e obras com os mundos culturais de herança africana e dos povos primevos do continente. Ou então desenvolveram estudos comparados entre as literaturas específicas de determinados países. E alguns desenvolveram já estudos sobre as diásporas latino-americanas em outras paragens, como a dos hispano-americanos, em particular os mexicanos, nos Estados Unidos.
O certo é que houve uma grande pulverização dos estudos críticos e de suas metodologias no continente, sendo muito difícil hoje a elaboração de grandes perspectivas abrangentes.
Não é possível citar todos; mas além de Ana Pizarro e dos já lembrados deve-se mencionar, entre os que começaram a trabalhar ou intensificaram suas atividades a partir dos anos 1970 e 1980, pelo menos, Jorge Schwartz, Raúl Antelo, Saúl Sosnowski, Tomás Eloy Martinez, Mabel Moraña, Maximilien Laroche, Nicolás Rosa, Osvaldo Pelletieri, Agustín Martinez, Adolfo Colombres, Susana Zanetti, Hugo Achugar, Pablo Rocca, Rogelio Rodríguez Coronel, Márgara Russotto, Beatriz Sarlo, Arturo Arías, Walter Mignolo, Jacques Leenhardt, Sylvia Molloy, Serge Gruzinski, Ambrosio Fornet, Josefina Ludmer, Jorge B. Rivera, Jorge Lafforgue, Abril Trigo, Jorge Panesi, Julio Ramos, Pierre Rivas, Mario González, Ana Maria Shua, Josebel Fares, Amarílis Tupiassu, María Del Carmen Bianchi, Sonia Mattalía, Grinor Rojo, Amaryllis Chanady, Wladimir Krysinski, Alfredo Bosi, Carlos Appel, Davi Arrigucci Jr., Flora Süssekind, Wander de Melo Miranda, Roberto Schwarz, Walnice Nogueira Galvão, Teresa Cristófani Barreto, Zilá Bernd, Maria Helena Martins, Tânia Maria Carvalho, Lea Masina, Gilda Neves Bittencourt, Irlemar Chiampi, Bella Jozef, Benedito Nunes, Luiz Costa Lima, Silviano Santiago, Sandra Nitrini, Daniel Balderston, Alberto Moreiras, Beatriz Pastor, Gonzalo Aguilar, Graciela Montaldo, Lígia Chiappini, David Foster, Jean Franco, Berthold Zilly, Jorge Ruffinelli, Álvaro Fernández-Bravo, Sylvia Saítta, João César de Castro Rocha, Roberto Vecchi, Ettore Finazzi-Agró… a lista não tem fim.
A profusão de nomes, que se estende por todo o continente, incluindo os Estados Unidos, o Canadá e também a Europa, mostra que nas últimas décadas a orientação crítica predominante caminhou na direção dos estudos comparados. Também prosperou um gênero ensaístico marcado pela liberdade e criatividade de linguagem, envolvendo crônica e história, em que se tornou mestre e inspirador das novas gerações – o escritor uruguaio Eduardo Galeano.
Conceitos em busca de lugar
Os próprios conceitos de literatura latino-americana e de América Latina, e de seus limites, estão em movimento. Já é tradicional nos estudos latino-americanos, e de longa data, a consideração da literatura dos viajantes europeus ou de outros que percorriam o continente, como parte constituinte, ainda que auxiliar, da identidade latino-americana.
Com o tempo entraram também em consideração a literatura de viagem dos próprios latino-americanos pelo continente ou alhures, e a dos imigrantes recém-chegados a ele. Também floresceu uma literatura dos vários exílios políticos a que foram submetidos escritores e escritoras, ou militantes das mais variadas tendências ideológicas, ou mesmo dos exílios voluntários, que nem por isso eram menos exílios do que os dos outros.
Entretanto, agora há uma literatura das diásporas latino-americanas, produzida para o público que permanece em seus próprios países, mas também voltada para o público dessas diásporas. Apareceu esse tipo de literatura nos cinco continentes, ainda que os casos mais numerosos tenham ocorrido nos Estados Unidos e na Europa. Houve inclusive um reconhecimento internacional na medida em que o escritor Rolando Hinojosa-Smith, nascido na fronteira entre os Estados Unidos e o México, vivendo e escrevendo naquele país, ganhou o prêmio Casa de las Américas.
Essa literatura, potenciada pela internet, volta a pôr em questão a identidade, ou as identidades latino-americanas; os brasileiros em Nova York, por exemplo, não se identificam como “latino-americanos”; os mexicanos, por vezes, querem permanecer mexicanos. Outras vezes, as clivagens ideológicas voltam a desenhar fronteiras culturais intransponíveis, como no caso da maioria dos cubanos exilados nos Estados Unidos, cuja identificação com políticas conservadoras por vezes afastam-nos de outros latino-americanos.
O conceito cultural de América Latina começou ancorado à América hispânica. Absorveu o Brasil; foi absorvendo os povos das “línguas esquecidas”, as contribuições africanas enraizadas de longa data, as dos imigrantes mais recentes. Saltou sobre as fronteiras, alcançando as populações de fala francesa, créole, inglesa, holandesa, sempre sob o signo de um certo acriollamiento das línguas. Com as imigrações recentes, chegou aos Estados Unidos, ao Canadá, à Europa e aos outros continentes.
Já houve encontros de literaturas latino-americanas de que participaram escritores do Québec francófono. Hoje é um conceito mundializado. Por onde viaja, leva com ele o conceito de uma literatura latino-americana empenhada com o jogo das identidades mutantes e abertas do continente. Escritores da América Latina estão nas listas dos grandes best-sellers mundiais, como é o caso do brasileiro Paulo Coelho e da chilena Isabel Allende.
Por onde floresceu, esse conceito levou um ressaibo de perseguição à modernidade. Foi contestado, em seu caráter de herdeiro das tradições sintetizadoras do iluminismo, em favor de um conceito de pós-modernidade que resgatasse de modo mais constante a percepção das diferenças. Entretanto, ele – o conceito – e ela – a literatura latino-americana – permanecem herdeiros desse impulso em busca dos ideais de uma modernidade não mais a imitar, mas a construir sob o signo do enraizamento, do resgate dos esquecimentos e da palavra dos condenados da terra.
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