Nicarágua
Nicarágua

Nicarágua

Mônica Rodrigues (texto de atualização do verbete, 2006-2015)

Nome oficial

República de Nicarágua

Localização

América Central. Banhada a leste pelo mar do Caribe e pelo oceano Atlântico, e a oeste pelo oceano Pacífico. Faz fronteira ao norte com Honduras e, ao sul, com a Costa Rica.

Estado e Governo¹

República presidencialista

Idiomas¹

Espanhol (oficial); misquito, mestiço da costanha caribenha, outras. Na costa atlântica fala-se o inglês e outras línguas indígenas (2005)

Moeda¹

Córdoba

Capital¹

Manágua
(951 mil hab. em 2014)

Superfície¹

130.370 km²

População²

5.822.209 hab. (2010)

Densidade demográfica²

45 hab./km² (2010)

Distribuição
da população³

Urbana (57,26%) e
rural (42,74%) (2010)

Analfabetismo⁴

15,5% (2009)

Composição étnica¹

Mestiços de ameríndios e brancos (69%), brancos (17%), negros (9%), ameríndios (5%)

Religiões¹

Católica romana (58,5%), protestante (23,2%), testemunha de Jeová (0,9%), outras (1,6%), nenhuma (17,5%) (2005)

PIB (a preços constantes de 2010)

US$ 10,37 bilhões (2013)

PIB per capita (a preços constantes de 2010)

US$ 1.709,8 (2013)

Dívida externa pública

US$ 4,72 bilhões (2013)

IDH⁵

0,614 (2013)

IDH no mundo
e na AL

132° e 30°

Eleições¹

Presidente eleito por sufrágio universal a cada 5 anos. Legislativo unicameral composto pela Assembleia Nacional de 92 membros, eleitos por sufrágio universal a cada 5 anos. O Ministério é nomeado pelo Presidente.

Fontes:
¹ CIA. World Factobook
² ONU. World Population Prospects: The 2012 Revision Database
³ ONU. World Urbanization Prospects, the 2014 Revision
⁴  CEPALSTAT
⁵  ONU/PNUD. Human Development Report, 2014

Pequeno país da América Central, a Nicarágua possui uma população de pouco mais de 5,8 milhões de habitantes distribuídos em seus 130 mil km² de extensão. Partilha com os demais países centro-americanos uma vida política agitada, marcada por invasões estrangeiras, guerras civis, ditaduras e revoluções. O idioma oficial é o espanhol, mas falam-se também o inglês crioulo na costa do Caribe, o misquito na parte norte, o sumo na região setentrional fronteiriça a Honduras, e outras línguas em processo de extinção, como o garífuna e o rama, no centro do país. Os católicos correspondem a cerca de 60% da população e 15% pertencem a diversas denominações evangélicas.

A Nicarágua tornou-se independente da Coroa espanhola em 1821 e começou sua vida republicana como Estado soberano em 1838. Subordinada ao mercado mundial, desde a colonização espanhola até os dias atuais, manteve-se sob uma economia dependente e exportadora de matérias-primas – causa de seu empobrecimento secular. No início do século XXI, parte de suas divisas deveu-se às remessas enviadas por emigrantes, dos quais cerca de 20% migraram para a vizinha Costa Rica e os Estados Unidos.

Produto da Revolução Sandinista (1979-1990), de orientação nacionalista e popular, a economia nicaraguense depende de pequenos produtores ou trabalhadores autônomos. Uma economia popular, portanto, que concorre em condições desfavoráveis com os empresários nacionais e com as grandes corporações transnacionais. A partir da derrota eleitoral da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), em 1990, e da restauração conservadora, a política econômica de sucessivos governos impôs uma orientação neoliberal à economia e à sociedade nicaraguense, debilitando progressivamente os alicerces do Estado-nação.

Em meio a essa contradição, por um lado a vida política nacional mostra diversos níveis de resistência, tanto por parte dos setores populares como dos pequenos e médios produtores – resistência que inclui posições convergentes das principais forças majoritárias do país (a FSLN e o Partido Liberal Constitucionalista) contra o governo conservador, que representa na Nicarágua os interesses do governo de Washington.

Por outro lado, com raízes na existência de uma nascente economia popular e na presença beligerante dos movimentos sociais, iniciou-se um debate sobre o fortalecimento dos governos municipais, em busca de uma democracia participativa que complemente e compense as limitações da democracia representativa.

A antiga Catedral de Manágua, na cidade de Manágua, capital da Nicarágua (David Polo/Creative Commons)

Dos aborígines à colonização

A história política da Nicarágua foi, constantemente, uma sequência de conquista e colonização, ditaduras militares, intervenções estrangeiras neocoloniais e imperiais, revoluções políticas e sociais, guerras civis e pactos de governabilidade.

Desde a invasão espanhola até os dias atuais, os recursos naturais e humanos do território vêm sendo saqueados e dizimados sob formas de exploração extrativas e depredadoras, em favor de interesses econômicos estrangeiros.

Segundo as últimas investigações antropológicas, as primeiras ondas de grupos nômades na Nicarágua – dos quais se encontraram figuras humanas gravadas em pedra – remontam até 8 mil anos antes da era cristã. Eram caçadores, pescadores e coletores silvestres. Existem evidências de verdadeiros assentamentos dedicados, entre outras atividades, ao cultivo do milho no período de 4000 a.C. a 1550 d.C., data da conquista pelos espanhóis.

Assinalam-se duas origens para esses assentamentos, uma proveniente do sul da América, correspondente a grupos misquitos, sumos e ramas, e outra oriunda do norte da América, composta pelos grupos chorotegas e nicaráguas. Os primeiros estabeleceram-se no litoral caribenho ou atlântico nicaraguense, enquanto os outros instalaram-se ao redor dos lagos e vulcões situados perto do oceano Pacífico. Nenhum desses grupos alcançou o grau de integração das comunidades peruanas ou mexicanas.

A organização social dessas comunidades baseava-se no que se conhece como modo de produção tributário, uma espécie de comunalismo agrário, no qual a terra pertencia à comunidade, mas sua posse era exercida pelas diferentes famílias, destinando-se um tributo às autoridades.

A Nicarágua foi ocupada por Cristóvão Colombo no ano de 1502, durante sua quarta e última viagem à América. A conquista iniciou-se vinte anos depois, a partir do descobrimento do oceano Pacífico pelos espanhóis. As principais riquezas cobiçadas pelos mercadores espanhóis foram o ouro, a prata e os escravos indígenas que eram enviados às minas do Peru ou destinados ao trabalho para os encomenderos.

Os nativos nicaraguenses sofreram a extinção demográfica produzida pela conquista, particularmente devido a epidemias como a varíola e a gripe, além da insuportável exploração escravista. Sabe-se que, dos 500 mil indígenas que habitavam a Nicarágua, em pouco mais de 50 anos restavam apenas cerca de 15 mil.

O sistema de exploração de minas e cultivos de matérias-primas organizou-se mediante uma série de instituições chamadas de reduções, encomiendas e repartimientos, pelas quais eram encaminhados indígenas, terras e tributos às autoridades espanholas.

A Igreja Católica desempenhou um papel importante na conquista e na colonização por meio da evangelização ou conversão forçada dos indígenas ao cristianismo católico medieval espanhol. É conhecida a divisão do trabalho da Igreja Católica na conquista e colonização da Nicarágua. Enquanto uns, os inquisidores, apoiavam as autoridades militares e civis no tocante ao trabalho escravo e servil dos indígenas, outros preocupavam-se e criticavam tais autoridades por colocar os nativos em perigo de extinção, recomendando então a vinda de escravos negros da África.

Ao final da conquista, empreendida no século XVI, a Nicarágua foi colonizada principalmente pelos espanhóis. No entanto, houve na região uma presença significativa de franceses, ingleses e norte-americanos, sob diferentes modalidades, tais como protetorados ou territórios anexados pela Grã-Bretanha ou enclaves econômicos em mãos de companhias dos Estados Unidos. Um vestígio dessa presença é a mestiçagem da população e o sincretismo religioso, que deram origem a estratificações de caráter étnico, bem como a fanáticos comportamentos socioculturais marcados pelo sectarismo e dogmatismo.

Quando decresceu a produção de ouro, os conquistadores dedicaram-se à exploração agrícola, principalmente ao cultivo do cacau e do anil (planta corante). Ao mesmo tempo, ocuparam-se da pecuária para exportar animais vivos ou para obter carne, bem como da exploração do couro. Registrou-se também a construção de estaleiros e barcos que eram utilizados para a exportação de escravos ao Peru. Paralelamente à construção das embarcações, exploravam-se a madeira e o breu, retirados de extensos pinhais. A população indígena fornecia a mão de obra aos proprietários das terras e dedicava-se a produzir produtos alimentícios de subsistência.

A Reserva Natural do Vulcão Mombacho, área preservada da Nicarágua (Wikimedia Commons)

Independência: ditaduras e pactos

O monopólio colonial espanhol começou a debilitar-se no século XVIII, como resultado da concorrência entre os países europeus e os do norte da América, particularmente os Estados Unidos. A erosão da exclusividade comercial espanhola teve início com o contrabando e as incursões de piratas, bucaneiros ou corsários, a serviço dos países europeus, e prosseguiu com a penetração de forças mercenárias provenientes dos Estados Unidos.

O golpe mais importante na hegemonia espanhola ocorreu em meados do século XVIII, quando a Grã-Bretanha decidiu ocupar uma parte do território nicaraguense do Caribe, por meio de forças invasoras enviadas da Jamaica. A ocupação inglesa do território misquito durou até o final do século XIX, sendo substituída por forças norte-americanas e, finalmente, pelo governo da Nicarágua.

A partir da ruptura colonial (1821), o país forjou sua vida política em meio a cruéis vicissitudes. Primeiro, tornou-se independente da Espanha, vinculando-se ao império mexicano e à Federação Centro-Americana liderada pela Guatemala. Depois, em 1838, alcançou sua independência política total.

Internamente, a incapacidade dos grupos dominantes para impor sua hegemonia ao restante da sociedade nicaraguense levou-os a provar diversas vezes o exercício ditatorial do governo. Eram situações pouco duradouras, uma vez que os opositores as neutralizavam, recorrendo ao que levianamente chamavam de “revolução”. Na verdade, não passavam de levantes nas casernas, que acabavam em pacto na mesa de negociação da classe política dominante, na maior parte dos casos com a presença de forças internacionais.

A primeira guerra civil ocorreu em 1824. A partir de então, começaram as intervenções, as ditaduras e os pactos. Em 1838, foi promulgada a primeira Constituição do país e sobreveio o acordo entre os monarquistas (sustentados ideologicamente pela tradição colonial e pela hierarquia católica) e os republicanos (estimulados pelas ideias liberais recém-chegadas da Europa). Os monarquistas eram identificados como granadinos, conservadores e católicos, defensores dos interesses da oligarquia rural e comercial, enquanto os republicanos eram leoneses, liberais e intelectuais, defensores dos interesses dos produtores ou empresários em geral.

O atraso da formação do Estado-nação ocorreu devido à incapacidade das classes dominantes nicaraguenses de manter a população coesa – fruto tanto da inexistência de uma verdadeira classe nacional como da presença, solicitada internamente, de forças estrangeiras interessadas na divisão do país. Foi assim que, em meados do século XIX, estimulou-se a chegada de empresas norte-americanas e de forças militares mercenárias, provenientes dos Estados Unidos, sob a alegação de que o nascente Estado nicaraguense tinha necessidade de proteger-se dos governos europeus.

Na década de 1850, a empresa American Atlantic and Pacific Ship Canal Company, de propriedade do norte-americano Cornelius Vanderbilt, obteve a concessão de construção e posse exclusiva de um canal na Nicarágua. Enquanto o canal não era construído, outra empresa de Vanderbilt, a Acessory Transit Company (Companhia de Trânsito), ganhou direitos exclusivos de uso de rotas terrestres e fluviais pelo território nicaraguense, o que lhe permitiu oferecer aos americanos um serviço relativamente barato de traslado de passageiros entre Nova York, na costa leste dos Estados Unidos, e São Francisco, na Califórnia (costa oeste).

Na mesma época, um aventureiro chamado William Walker chegou à Nicarágua, proclamou-se presidente da República, estabeleceu a escravidão e pretendeu converter o país em mais um Estado da União Americana. As duas forças políticas tradicionais nicaraguenses, legitimistas e democráticas, foram excluídas dessa vez dos benefícios da ocupação e decidiram firmar o chamado Pacto Providencial. Com o apoio dos demais países centro-americanos, os nicaraguenses conseguiram expulsar os mercenários norte-americanos, que fugiram do país, deixando Granada, a cidade-sede da oligarquia, em chamas.

A partir de então, conservadores e liberais sucederam-se periodicamente no poder, sem que um deles alcançasse uma verdadeira hegemonia sobre o outro. A síndrome da intervenção solicitada pelos dois partidos seria a tônica da vida política nacional até os dias atuais.

Os conservadores, grupo oligárquico que gozava de hegemonia na cidade de Granada, governaram entre 1858 e 1893. A democracia estabelecida por eles girava em torno de um setor muito limitado de cidadãos, no estilo das cidades-Estado da Grécia antiga. Em 1874, de 250 mil habitantes, menos de mil cidadãos puderam exercer o voto para eleger o presidente da República – cargo que nessa ocasião recaiu em um dos representantes da oligarquia granadina chamado Pedro Joaquín Chamorro Alfaro.

Os famosos “30 anos conservadores” iniciaram-se com a cafeicultura e com a modernização da infraestrutura do país, sob uma ofensiva contra os camponeses das comunidades indígenas, para se apossar de suas terras e obrigá-los a trabalhar nas incipientes fazendas de café. Em 1881, deu-se o levante das comunidades indígenas de Matagalpa, no norte do país, sufocado brutalmente pelo governo nacional.

A Catedral de León, na Nicarágua, declara em 2011 Patrimônio da Humanidade pela UNESCO (Brassmaster/Wikimedia Commons)

A luta pela libertação nacional

No final do século XIX e começo do século XX, no auge da produção cafeeira, a Nicarágua tentou empreender sua revolução liberal, representada e simbolizada como o afastamento da oligarquia conservadora. Paradoxalmente, teve início no seio do próprio partido conservador, quando um de seus presidentes, de orientação liberal, expulsou os jesuítas. Essa revolução começou em 1893, encabeçada por José Santos Zelaya, aristocrata que havia estudado na Europa. No primeiro ano, decretou-se a separação entre o Estado e a Igreja, eliminaram-se os dízimos e as primícias, confiscaram-se as terras das igrejas, instituíram-se o matrimônio civil, o divórcio, a liberdade de culto e a educação gratuita. Boa parte das terras foi privatizada em um processo acompanhado pela decretação de leis que sujeitavam os camponeses ou a trabalhar nas fazendas ou a se alistar no exército. Concederam-se facilidades fiscais e alfandegárias aos empresários privados, nacionais e estrangeiros, beneficiando-os também com monopólios de produção – aguardente, tabaco e pólvora – e serviços públicos – água, telefone, energia elétrica, ferrovias e bancos, entre outros. Também os artesãos receberam alguns incentivos, como facilidades de acesso à educação técnica e apoio para a organização de cooperativas.

Zelaya incorporou a região de La Mosquitia, que funcionava como um reino apadrinhado pela Coroa britânica. Seu governo também tentou libertar-se da tutela norte-americana, buscando empréstimos nos países europeus para construir o famoso canal interoceânico. Foi o suficiente para que os conservadores, apoiados pelos Estados Unidos, iniciassem um levante armado forçando o presidente Zelaya a renunciar em 1909. Assim terminou o primeiro esforço de uma burguesia nascente para instaurar um Estado-nação independente na Nicarágua.

Três condições faltaram à burguesia nacional para constituir um Estado-nação: força suficiente para subordinar economicamente o restante da sociedade; autonomia necessária para tornar-se independente no mercado mundial; e capacidade para estabelecer um verdadeiro pacto social com a população trabalhadora e consumidora, sempre sujeita à demagogia e ao empobrecimento.

A história contemporânea do país tem como protagonistas três grandes forças: em primeiro lugar, a oligarquia conservadora, apenas subsistente; em segundo, uma latente burguesia liberal, que teve sua melhor época durante a ditadura somozista e, por fim, um projeto nacionalista de orientação popular, iniciado em meados do século XX, com a luta anti-imperialista do general Sandino, que continuou nas décadas finais do mesmo século com uma revolução empreendida pela Frente Sandinista de Libertação Nacional.

Desde a independência do domínio da Espanha, a subordinação aos interesses de Washington fez-se presente entre as famílias conservadoras, provenientes do mundo criollo espanhol, e os grupos liberais, surgidos da intelectualidade religiosa e dos notáveis mais influenciados pela modernidade nos padrões do século XIX.

Durante o século XX, após a derrubada do regime liberal de Zelaya, um setor do liberalismo radicalizou-se e apareceram as figuras de Benjamín Zeledón e Augusto César Sandino, surgidas no seio dos grupos liberais – ambos declarados opositores tanto à intervenção ianque como aos grupos liberais e conservadores, que desde essa época aceitaram, fomentaram e proclamaram o apadrinhamento dos interesses norte-americanos.

Sandino abandonou o liberalismo, desencadeou uma guerra de guerrilhas e conseguiu a desocupação do território nacional pelas tropas dos Estados Unidos. Os ianques abandonaram militarmente a Nicarágua, mas ocuparam sua economia e instauraram a ditadura da família Somoza.

O primeiro Somoza, que permaneceu no poder durante grande parte do século XX, assassinou Sandino, subordinou a oligarquia conservadora e assentou as bases do capitalismo nacional na Nicarágua.

No final do século XX, o sandinismo ressurgiu com o triunfo de uma revolução novamente sob a bandeira da libertação nacional e da justiça social, mas assediada por uma combinação de forças liberais e conservadoras, apadrinhadas novamente pelo imperialismo ianque.

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O general Augusto César Sandino, ao centro, no México (NARA)

A natureza da oligarquia

Em análises de classes, é comum contrapor ao povo, ou às camadas subordinadas, a classe burguesa ou dominante, encarregada de controlar a economia capitalista. No entanto, no caso da Nicarágua, assim como em outros países latino-americanos subordinados ao mercado mundial e às condições de capitalismo reprimido e dependente, tal procedimento não corresponderia à realidade se não se incluísse a oligarquia como um setor dominante, tanto em relação ao povo como ao restante da sociedade nicaraguense, entre eles os produtores e empresários. É por esse motivo que se faz necessário analisar a natureza do conceito de oligarquia, bem como sua expressão na história e na estrutura econômica, social e política da Nicarágua.

A oligarquia nicaraguense, particularmente em sua expressão conservadora, governou o país cerca de 150 anos. Excetuaram-se alguns breves momentos: o período de 1893 a 1909, durante a revolução liberal de Zelaya; depois, o de 1934 a 1979, tempos da ditadura liberal somozista; e, por fim, entre 1979 e 1990, época da Revolução Sandinista. Por “oligarquia” entenda-se um grupo de famílias que governam um país, baseado nos privilégios políticos, econômicos e culturais acumulados por seus antepassados.

Do ponto de vista político, até o século XIX, a oligarquia controlou os partidos políticos, os grupos armados e os cargos presidenciais. Durante esse período, não se conseguiu uma organização nacional que colocasse sob um só comando os destinos do país. O poder mantinha-se fragmentado entre grupos e subgrupos familiares, que disputavam a presidência em meio a intrigas governamentais, diplomáticas e militares. Os caudilhos que governavam o país faziam-no como se cuidassem de uma grande fazenda, supondo que a população fosse o equivalente multiplicado dos peões de suas próprias terras e que os funcionários de seu governo tivessem de manter a mesma lealdade que exigiam de seus administradores ou capatazes.

Historicamente, essas famílias sempre recorreram a dois grandes aliados, que funcionavam como recursos extraordinários de poder e, ao mesmo tempo, como amea­ças à sua evolução e ao seu desenvolvimento: de um lado, as forças mercenárias estrangeiras (espanholas, inglesas, meso-americanas ou norte-americanas) e, de outro, as massas populares. Quando uma das famílias era desalojada do governo, armavam-se seus peões ou convocavam-se levas de combatentes para lutar contra a outra família, que a havia despojado de um dos principais recursos patrimoniais. Se a força fosse insuficiente, recorria-se à intervenção dos marines e do governo norte-americano, oferecendo bens nacionais em troca dos favores para afastar seus adversários políticos.

O primeiro expediente histórico a mostrar o drama de nascimento que essas famílias carregaram durante mais de um século e que as caracterizou como casta dependente ocorreu em meados do século XIX, quando as famílias granadinas tentaram desenvolver-se comercialmente sob o amparo da Companhia de Trânsito do coronel norte-americano Vanderbilt. Nesse momento, uma força interventora do aventureiro norte-americano William Walker, com o consentimento de famílias liberais e conservadoras, frustrou a ascensão dos comerciantes granadinos. Desapareceu a Companhia de Trânsito, o aventureiro foi fuzilado por forças centro-americanas e a oligarquia do país mergulhou em seu atraso e provincianismo habituais. Historiadores conservadores costumam contornar esse lado provinciano da oligarquia referindo-se à época de ouro denominada “os 30 anos da república conservadora”, ostentando como trunfo a ausência de guerras civis, o que realmente foi uma façanha para o país, superada apenas pelos 45 anos de “paz” da ditadura somozista.

Entre 1909 e 1933, as famílias provincianas da oligarquia continuaram no processo de mútua derrubada, alternando-se nas revoluções locais, com o apoio dos marines ianques, para o afastamento do adversário. Nesse período, as forças norte-americanas tomaram conta da administração e apoderaram-se de todos os recursos econômicos possíveis (minas, terras, ferrovias, alfândegas, banco nacional, serviços de segurança etc.). Essa época é chamada de segundo governo conservador, apesar da ocupação militar dos Estados Unidos.

Entre 1927 e 1934, o general de origem liberal Augusto César Sandino combateu as forças militares de ocupação e a oligarquia liberal-conservadora e iniciou o primeiro movimento sandinista na Nicarágua. Nasceu assim uma terceira força, diferente dos liberais e conservadores, travando uma batalha desigual contra a oligarquia e o imperialismo norte-americano. Sandino incorporou à sua maneira o patriotismo e a dignidade nacional de Benjamín Zeledón, a bandeira social dos anarcossindicalistas mexicanos, origem da bandeira rubro-negra, as ideias comunistas do salvadorenho Farabundo Martí e a espiritualidade das doutrinas da comunidade universal, em que o indo-hispanismo indígena, mestiço ou camponês encontram seu lugar na história contemporânea.

Nesses momentos, a oligarquia mostrou um de seus traços mais característicos: o entreguismo aos interesses do governo e das companhias dos Estados Unidos, frustrando com isso tanto os desejos de libertação e justiça social do povo nicaraguense como a passagem da oligarquia do país ao status de uma verdadeira burguesia nacional.

Após o assassinato de Sandino, ocorrido em fevereiro de 1934, a Nicarágua viveu sob uma ditadura militar apadrinhada pelo governo dos Estados Unidos até o dia 19 de julho de 1979, época em que triunfou a Revolução Sandinista. Foram 45 anos de esforços militares que moldaram a cultura política nacional, resistindo ao sandinismo e tentando erradicá-lo.

A ditadura somozista (1934-1979)

Anastasio Somoza García foi um funcionário de companhias norte-americanas ou controladas pelo governo dos Estados Uni­dos durante a ocupação militar desse país, na primeira década do século XX. Pos­teriormente, converteu-se em um fiel mi­­litar a serviço do poder de Washington, no perío­do em que o governo norte-americano, pressionado pelo patriotismo do general Sandino, decidiu descartar o exército da Nicarágua e estabelecer em seu lugar uma Guarda Nacional, cujo comando foi confiado a Somoza. O êxito da família Somoza nasceu, pois, vinculado ao controle do exército nacional e à lealdade aos interesses do governo dos Estados Unidos.

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O ditador Anastasio Somoza Garcia, em 1936 (Reprodução)
A primeira tarefa de Somoza foi assassinar Sandino e criar condições para estabilizar o país no tocante aos conflitos tradicionais entre conservadores e liberais. Com isso, preparou o caminho para converter-se em presidente da Nicarágua. Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo de Somoza proclamou-se aliado dos Estados Unidos e declarou guerra à Alemanha de Hitler, conseguindo assim não apenas assegurar a benevolência dos norte-americanos, mas também confiscar as propriedades dos alemães na Nicarágua e iniciar facilmente sua fortuna. À época, tal atitude foi considerada progressista, se comparada com a posição da oligarquia conservadora, que preferia se alinhar explicitamente com o Eixo Franco, Hitler e Mussolini.

Amparados na enganosa credibilidade da democracia eleitoral, Somoza e seus familiares conseguiram se manter no poder durante 45 anos, praticamente de 1934 até 1979. Com a dinastia somozista, o imperialismo norte-americano fortaleceu sua hegemonia na região do Caribe. A Nicarágua serviu de base para a invasão da Guatemala de Jacobo Arbenz Guzmán, em 1954, e da Baía dos Porcos, em Cuba, em 1961.

Ao longo desses anos, a família Somoza (Anastasio Somoza García, Anastasio Somoza Debayle, Luis Somoza Debayle e Anastasio Somoza Portocarrero) não apenas controlou o exército, o partido liberal, o governo e os demais poderes do Estado, mas também tornou-se a família mais rica e poderosa do país. O partido conservador, grupamento da oligarquia, teve de resignar-se e pactuar com os Somoza, aceitando 40% dos cargos nas instituições públicas, embora a oligarquia conservadora jamais estivesse satisfeita com tal subordinação, já que considerava Somoza um arrivista estranho às famílias de estirpe tradicional.

Nesses círculos, tal era a importância conferida ao patrimônio simbólico do sobrenome, dos ancestrais e da linhagem, que, mesmo casando com mulheres da aristocracia nicaraguense (Debayle e Portocarrero), os membros da família Somoza sempre foram considerados pelas oligarquias como plebeus, gente do povo, novos-ricos ou arrivistas sociais e, portanto, sem direitos a desfrutar de qualquer prestígio, apesar da riqueza e do poder político e militar da família na Nicarágua e com uma descendência educada em colégios e academias norte-americanas de grande prestígio internacional, estreitamente vinculada à hierarquia católica. Para resguardar seus privilégios virtuais, esses grupos concediam-se a prerrogativa de permitir ou não o acesso dos ricos aos “clubes da sociedade”, aos desfiles a cavalo, aos palcos nas festas do patronato, às corridas, às eleições de rainha do carnaval, à organização das festas públicas etc. Muitos ricos liberais, entre os quais os Somoza, queixavam-se de que as famílias aristocráticas não os deixavam entrar no círculo dos que se consideravam como famílias high life ou da alta sociedade.

Na segunda metade do século XX, a oligarquia conservadora começou a questionar a hegemonia liberal somozista na política e na economia do país, e se empenhou em afastar Somoza, sem muito êxito, inclusive envolvendo pessoalmente seus principais líderes em levantes armados. Nasceu assim uma oposição permanente contra a ditadura somozista, cujo principal líder foi um jornal-partido chamado El Diario La Prensa, à frente do qual estavam algumas famílias conservadoras, entre elas a de Pedro Chamorro.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a família Somoza incursionou agressivamente pelos negócios agroindustriais e agroexportadores mais importantes do país, ameaçando inclusive o monopólio da produção açucareira, controlado até então pela família Pellas, originária de Granada. Nesse período, os Estados Unidos bloquearam o comércio de açúcar com a Cuba revolucionária, redistribuíram a cota cubana entre seus aliados da América Central e iniciaram o plano de reativação burguesa latino-americana com a Aliança para o Progresso, cujo objetivo era sufocar a insurgência na região.

Entre 1960 e 1970, a crise econômica gerada pelo intercâmbio comercial empurrava o país para uma política de endividamento. O déficit comercial mantinha uma tendência ascendente. Em 1972, ocorreu um grande terremoto em Manágua, capital da república. Como todo desastre natural nas sociedades capitalistas, converteu-se em mais um negócio e uma oportunidade de enriquecimento. Os empreendimentos da reconstrução converteram-se no pomo da discórdia entre Somoza e os empresários não somozistas, grande parte deles pertencente à oligarquia. Estes, então, decidiram intensificar a luta contra a ditadura e contra o que consideravam “uma concorrência desleal por parte da família Somoza”.

Para o amadurecimento do ambiente revolucionário, vale destacar a contribuição dos intelectuais e artistas da época, que em sua grande maioria estiveram ao lado do sandinismo. Poetas como Ernesto Cardenal Martínez e Gioconda Belli, romancistas e contistas como Sergio Ramírez e Lisandro Chavez, cantores como os irmãos Mejía Godoy e os Palacaguina, pintores como Armando Morales, para citar apenas os mais conhecidos, colaboraram para imprimir um conteúdo nacionalista e popular à luta contra a ditadura somozista.

Durante todo o tempo que durou a ditadura somozista, a aliança liberal-conservadora manteve o controle e a hegemonia da vida política nicaraguense. Após a ocorrência do terremoto de 1972, essa aliança começou a se romper – processo que culminou com a crise algodoeira no final da década de 1970.

Os empresários mais dedicados e os profissionais mais decididos aceitaram aliar-se com a FSLN para pôr fim à ditadura somozista considerada por eles como única causa de uma concorrência econômica desfavorável e de uma crescente rebelião popular. Lamentavelmente para todos, por trás da ruptura da aliança liberal-conservadora estava a necessidade do projeto neoliberal de Washington de combinar a ditadura do mercado monopolista global com a democracia política representativa, projeto para o qual Somoza não era o melhor representante, nem do ponto de vista político nem do econômico.

A Revolução Sandinista de 1979

Na década de 1970, a burguesia nascente afastada do liberalismo e a oligarquia tradicional começaram a organizar-se em termos corporativos e políticos, a primeira ressentida economicamente e a segunda politicamente contrariada. As forças populares desenvolveram um impulso organizativo similar, encabeçadas por um movimento de libertação nacional (a FSLN), que desde 1960, sob o entusiasmo da Revolução Cubana, havia declarado guerra à ditadura somozista. A chantagem e a repressão por parte do somozismo não demoraram. A FSLN e a oligarquia tiveram de somar forças, aliar-se e liderar um projeto de unidade nacional para conseguir a derrota do ditador. Muitos membros destacados da oligarquia envolveram-se com a revolução e participaram em todos os campos, militares, políticos, diplomáticos, culturais etc., chegando inclusive a ser dirigentes da revolução triunfante.

Na derrota da ditadura somozista também participou o governo dos Estados Unidos, que então levantava a bandeira dos direitos humanos e temia que as contradições e os conflitos gerados pelo somozismo desembocassem em uma revolução e em uma segunda Cuba, como se dizia na época.

O presidente Carter e alguns governos próximos (México, Costa Rica, Panamá e Venezuela) cortaram toda a ajuda militar, econômica e diplomática ao governo de Somoza, que se viu encurralado e aceitou abandonar o poder. A deserção da família Somoza desmoralizou a Guarda Nacional, o que, unida à indecisão da oposição democrático-burguesa e à demora do próprio governo norte-americano para forçar a saída de Somoza, permitiu que as forças guerrilheiras da FSLN e a população insurgente desbaratassem todo o esquema militar da ditadura somozista.

Um dos episódios que mais influenciou a galvanização de todas as forças foi o assassinato, em 1978, do líder oposicionista e diretor do jornal El Diario La Prensa, o conservador Pedro Chamorro, sobrenome que por sua vez simboliza toda a trajetória dirigente e governante da oligarquia conservadora. O primeiro presidente da Nicarágua carregava também o sobrenome Chamorro. Esse assassinato e sua condenação nacional e internacional ampliaram o leque de possibilidades políticas ao alcance do conjunto da população, o que foi aproveitado pela FSLN para incrementar a audácia revolucionária na insurreição final.

Nesse contexto, podem reconhecer-se três fatores que contribuíram para o desencadeamento dos eventos revolucionários contra a ditadura somozista: o descontentamento da grande burguesia e da oligarquia conservadora, a consciência e mobilização das Comunidades Cristãs de Base e o ambiente guerrilheiro que se manifestava no continente latino-americano, tudo isso amalgamado na figura de Sandino e crescentemente encarnado na mobilização militar da FSLN.

O governo revolucionário sandinista

Em 19 de julho de 1979, a FSLN tomou o poder e expressou sua vontade unitária, negociando a formação de uma Junta de Governo de Reconstrução Nacional, na qual aparecia, como representante da oligarquia, Violeta Barrios de Chamorro, esposa do líder da oposição democrática, Pedro Chamorro, assassinado pela máfia cubana exilada na Nicarágua e atada economicamente à ditadura somozista.

Com a Revolução Sandinista, os trabalhadores envolveram-se por completo nos assuntos nacionais e na defesa de seus próprios interesses, desferindo um golpe quase definitivo no pacto social liberal-conservador. Esse bloco perdeu a hegemonia política e o capitalismo nacional enfrentou sua maior crise, só resgatado pela ação do grande garrote do governo dos Estados Unidos, que castigou sem piedade a nascente Revolução Sandinista. Nessa década, o governo sandinista foi bloquea­do e desligado financeira e comercialmente pelos organismos internacionais de influência norte-americana. Os esforços de governabilidade sofreram boicotes da oposição interna, instigada pelos dirigentes de Washington. A infraestrutura física e social do país viu-se bombardeada e destruída. Um grupo de 25 mil contrarrevolucionários e centenas de mercenários estrangeiros foram financiados, armados e treinados em bases militares situadas em territórios dos Estados Unidos e da América Central (o Exército somozista tinha apenas 16 mil soldados) e metade do orçamento teve de ser destinada à defesa da revolução, sujeitando o país a uma economia de guerra.

Apesar das condições da época, o governo revolucionário conseguiu levar a cabo um processo de justiça social sem precedentes na história da Nicarágua. Reduziu-se o analfabetismo aos melhores níveis latino-americanos, as enfermidades infecto-contagiosas diminuíram significativamente, a maioria da população teve acesso à saúde e à educação. A maior parte dos latifúndios foi dividida entre o campesinato nicaraguense, e também foram ativadas a sindicalização operária, a organização em cooperativas de pequenos produtores e as associações dos consumidores. Os produtores marginalizados passaram a receber a maior parte do crédito nacional. Os partidos políticos multiplicaram-se e mais de 300 mil fuzis foram entregues à população para defender a revolução das agressões dos Estados Unidos.

Nos primeiros anos do processo revolucionário da década de 1980, a oligarquia perdeu a hegemonia do processo político, situação atenuada pelo fato de que seus filhos ocuparam posições na gestão direta do poder econômico. O que se conhece como modelo econômico da Revolução Sandinista foi antes produto de uma economia de guerra, em que o Estado adquiriu grande preponderância, e o conjunto de empresas da chamada Área de Propriedade do Povo ganhou peso fundamental na economia, a qual foi dirigida e administrada em grande parte por quadros de origem oligárquica que haviam lutado em todos os campos contra a ditadura somozista.

O somozismo marcara profundamente as estruturas socioeconômicas, políticas e culturais da sociedade nicaraguense, o suficiente para impulsionar com a sua clientela uma contrarrevolução, mirando o regime sandinista. À medida que o confronto com os Estados Unidos se intensificava e o processo revolucionário adquiria uma orientação socialista, a oligarquia rompeu sua aliança com a FSLN, recuperou os despojos da Guarda Nacional de Somoza e, com a ajuda do governo norte-americano, sublevou os segmentos mais influenciáveis do campesinato e das comunidades indígenas da costa do Caribe, conseguindo assim desgastar a economia nacional, tirar a FSLN do governo e assumir o encargo de uma restauração conservadora de caráter neoliberal.

Nos primeiros anos da revolução, o projeto político de unidade nacional rompeu-se e teve início um conflito político-militar de caráter contrarrevolucionário, do qual participaram todos os atores possíveis, liderados pelo que se tornou conhecido como União Nacional Opositora (UNO): o governo dos Estados Unidos, a oligarquia conservadora, a hierarquia da Igreja Católica, as forças liberais e socialdemocratas e uma parte significativa da população, principalmente do campesinato e das comunidades étnicas.

A presidente da Nicarágua, Violeta Chamorro, em encontro de presidentes da América Central com o presidente dos Estados Unidos Bill Clinton, na Casa Branca, em Washington, em novembro de 1993 (Bob McNeely/NARA)

A restauração conservadora em 1990

Com a derrota eleitoral da FSLN (1990), intensificou-se a ofensiva política e econômica norte-americana, buscando implantar no país um capitalismo global, sob a hegemonia dos Estados Unidos, sem fronteiras nacionais e no qual os governos se subordinassem completamente às corporações transnacionais. O capitalismo, o Estado e a burguesia nacionais nicaraguenses chegaram tarde à história do capital e sofreram os embates de uma mudança para a qual nunca estiveram preparados.

Depois de afastar a FSLN do Poder Executivo, a oligarquia encarregou-se diretamente do governo e pretendeu reverter em sua totalidade a presença sandinista da sociedade nicaraguense. Essa tarefa não foi nada fácil, dada a influência do sandinismo no Exército, na polícia, nas instituições estatais, nos organismos de massas, nas universidades, nos colégios secundários e nas estruturas e redes culturais em geral. Não havia alternativa senão um novo acordo nacional.

Conhecido como Protocolo de Transição e, sob a vigilância de forças internacionais, o acordo de 1990 pôs fim à tensão política entre o sandinismo e a restauração, compondo um novo cenário na vida política nacional. Foi reconhecida uma nova força política (o sandinismo), que passou a repartir o eleitorado com os liberais; o conservadorismo, embora politicamente minoritário, manteve o papel de representar internamente a doutrina neoliberal, os interesses hegemônicos do governo norte-americano e as corporações transnacionais, bem como os interesses bancários locais.

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Pessoas celebram nas ruas da Nicarágua o 10° aniversário da revolução, em julho de 1989 (Tiarescott/Wikimedia Commons
Depois da derrota eleitoral da FSLN, a casta oligárquica retomou diretamente o poder político e iniciou sua recuperação econômica. No controle do novo governo restaurador, dedicou-se de imediato a saquear novamente o Estado, desta vez acompanhada dos familiares que retornaram de Miami. A principal medida foi compensar o que eles chamaram de lucro cessante da classe econômica, conseguindo a indenização milionária de terras e empresas que já haviam hipotecado e perdido previamente, em mãos dos bancos nacionais e privados durante a época somozista. Como disse Israel Galeano (Franklin), comandante da Resistência Nicaraguense: “a oligarquia derrubou Somoza com a ajuda de vocês sandinistas e derrubou vocês com a ajuda nossa, não ganharam nem vocês nem nós, ganhou a oligarquia”. Frases similares foram ditas por diversos representantes da Resistência, poucas semanas depois da derrota eleitoral da FSLN.

Após os primeiros cinco anos, a oligarquia recorreu às forças sociais do liberalismo somozista com a intenção de extirpar as marcas da revolução. O empreendimento foi liderado por Arnoldo Alemán, liberal somozista que reaglutinou o Partido Liberal Constitucionalista, tomou por bandeira todo o potencial antissandinista acumulado antes, durante e depois da Revolução Sandinista, e conseguiu recuperar o poder público para as forças somozistas, que regressaram triunfantes de Miami.

O sandinismo, por sua vez, com boa parte de suas forças intactas, decidiu reaglutinar-se, fortalecer-se nas bases e, aproveitando o projeto do governo conservador de devolver todas as propriedades rurais aos antigos donos, sublevar-se de novo, dessa vez não para tomar o poder, e sim para forçar um acordo que ao menos lhe permitisse ter um relativo poder de veto. Pouco tempo depois, a oligarquia foi destituída do poder por um grupo de liberais somozistas, que contavam com relativa força eleitoral. Ainda que afastado das estruturas militares e do governo, o somozismo mantinha uma grande base social na sociedade nicaraguense.

Os bons tempos da oligarquia

Ao governo conservador e oligárquico de Violeta Chamorro sucedeu, em 1996, uma gestão liberal, tendo como presidente Arnoldo Alemán e como vice Enrique Bolaños, um conservador representante da oligarquia tradicional. Ao terminar seu mandato, Alemán propôs o nome de Bolaños como candidato para o período presidencial seguinte. Tudo indicava que a aliança liberal-conservadora permaneceria no poder, unida pelo ódio comum a tudo que recordasse o sandinismo. No entanto, o governo de Washington entrou em cena novamente, orientando a oligarquia a representar, dessa vez de forma integral, os interesses das grandes corporações transnacionais, sem interferência de qualquer empresário nacional.

Já presidente, em 2001, Bolaños procurou acabar com a corrupção neoliberal e investiu contra o ex-presidente Alemán, o que resultou em uma aliança com a FSLN, neutralizando e debilitando assim o regresso do somozismo liberal. Essa aproximação durou apenas dois anos, ao final dos quais o governo dos Estados Unidos obrigou o presidente Bolaños a romper com a FSLN, facilitando, sem querer, a formação de uma aliança entre a FSLN e o Partido Liberal Constitucionalista contra a oligarquia e a intromissão estrangeira no país.

Ao longo de todo esse período, a oligarquia conheceu seu melhor momento. Em uma primeira etapa, após Somoza abandonar o poder diante da força militar da FSLN, a oligarquia pôde participar do governo nos primeiros anos com a FSLN, integrando a Junta de Governo de Reconstrução Nacional e todo o Ministério. Posteriormente, com a ajuda da Guarda Nacional Somozista e a colaboração de uma parte do campesinato, dos indígenas da costa atlântica e dos Estados Unidos, organizou a contrarrevolução e afastou a FSLN do governo.

Imediatamente, após tomar o poder, a oligarquia efetuou a maioria das indenizações em favor dos proprietários de terras somozistas e não somozistas. Depois de ter usado os contrarrevolucionários (os Contra) para combater o sandinismo, a oligarquia dedicou-se a desarmar e ignorar os combatentes camponeses e indígenas, aos quais havia prometido participação no governo.

Durante o governo conservador e restaurador de 1990, muitos líderes sandinistas de ascendência ou vinculação oligárquica saquearam o Estado e responsabilizaram a FSLN, partido ao qual haviam pertencido; esse acontecimento tornou-se conhecido como a piñata, série de abusos cometidos por membros ou afilhados das famílias da oligarquia (velhos negociantes, profissionais e intelectuais) no período de transição.

Tendo descartado e domesticado a FSLN, a oligarquia ocupou-se em desconhecer as próprias forças liberais, tornando acéfalo o Partido Liberal com a prisão de seu principal dirigente. Dessa vez, os representantes oligárquicos pareciam decididos a dotar-se de uma organização partidária, algo que haviam perdido um século atrás e que até os dias atuais não conseguiram recuperar.

A imensa maioria das pessoas que pertenciam tanto às fileiras da FSLN quanto à contrarrevolução e ao Partido Liberal Constitucionalista saiu empobrecida, ainda que com a culpa e o estigma do enriquecimento que os velhos e os novos negociantes do país infligiram a suas organizações.

A piñata e a “indenização” foram seguidas pelo famoso resgate bancário, por meio do qual o Estado socorreu a oligarquia financeira em falência com uma soma milionária, equivalente ao montante do desfalque dado aos contribuintes, quantia coberta com a colocação de títulos estatais no Banco Central com taxas médias de juros de 23%, quando títulos equivalentes em nível internacional não rendiam além de 4%. Nessa ocasião, o ministro da Fazenda era um grande banqueiro, representante da oligarquia pró-Estados Unidos.

O governo oligárquico e restaurador recebeu uma dívida externa de mais de US$ 10 bilhões, perdoada, em sua maior parte, pelos governos dos países socialistas ou ex-socialistas. Nos anos posteriores até os dias atuais, devido ao empobrecimento nacional, o pagamento da dívida externa vem sendo rolado paulatinamente, aumentando por sua vez a dívida interna.

Sem partido nem apoio do Parlamento, do exército, da polícia e mesmo do vice-presidente, a oligarquia começou a ressentir-se com o poder da oposição liberal-sandinista, que ocupou todos os espaços institucionais. A famosa terceira via sempre foi um desígnio vão da oligarquia para contar com uma força partidária que lhe permitisse governar de forma absoluta. No entanto, os resultados foram infrutíferos, o que gerou a consciência de que é impossível ou muito difícil capturar o eleitorado liberal ou sandinista, ou aniquilar suas forças políticas, ou ainda governar tranquilamente sem apoio, influência e concessões deles.

A ofensiva neoliberal e a mundialização das economias desbarataram os principais empresários nicaraguenses, obrigando-os a agrupar-se na retaguarda das corporações transnacionais e a engrossar as fileiras empobrecidas do povo. Durante esses últimos anos, as forças liberais e sandinistas conseguiram disputar espaços institucionais de poder, freando desse modo os impulsos políticos mais reacionários da oligarquia, embora sem o mesmo êxito no tocante à entrega total do país às empresas transnacionais (recursos naturais, recursos estatais privatizados, políticas econômicas e ingressos tributários).

No início do século XXI, a base econômica da oligarquia era o segmento dos banqueiros, mais concentrados nas rendas financeiras do que no desenvolvimento industrial, motivo pelo qual é mais adequado falar em oligarquia financeira do que em burguesia financeira.

O declínio do poder oligárquico

Em face de semelhante crise de identidade e de hegemonia, o projeto histórico da oligarquia distanciou-se mais a cada dia. Sem projeto econômico próprio e dependente das forças econômicas e políticas do império norte-americano, foi obrigada inclusive a contribuir para a quebra e o afastamento dos produtores e empresários nacionais que ameaçavam as corporações transnacionais. Do ponto de vista político, mostrou grande debilidade ideológica e careceu da credibilidade da nação, desgastada como estava pela corrupção e pela entrega do patrimônio nacional às antigas metrópoles. As contradições, os tropeços e as infâmias do grupo oligárquico não poderiam ser piores: enviou tropas nicaraguenses como bucha de canhão à batalha imperial pelo petróleo provocada pelos Estados Unidos no Iraque, retirando-as pouco depois porque o exército invasor não quis arcar com os gastos; e acusou os líderes liberais de corrupção, o que recaiu imediatamente sobre o expediente dos principais funcionários corruptos de origem oligárquica.

Perante um desenlace tão lastimável, as famílias mais destacadas apressaram-se a jogar a carta da terceira via, ideia longamente acarinhada sem qualquer resultado. O projeto da Aliança pela República (APRE) foi o melhor esforço encontrado pelo coroamento das pretensões oligárquicas na Nicarágua e ganhou vigor com a entrada de algumas famílias ilustres. Significa nada mais que apresentar-se como uma alternativa às forças “caboclas” do liberalismo e da FSLN, acolhendo, com base na cultura aristocrática, os que, por qualquer fator hierárquico, queiram somar-se a suas fileiras.

Parece que se assiste ao desenlace final da acomodação político-ideológica revertida pela revolução. O projeto de formar a APRE ganhou vigor com a filiação de algumas famílias ilustres, egressas do Partido Liberal Constitucionalista, que abandonaram o ex-presidente Alemán quando ele perdeu o apoio da embaixada dos Estados Unidos. Alguns intelectuais de renome, saídos das fileiras da FSLN, ex-militantes do Movimento de Renovação Sandinista também aumentaram o quadro, além de outros agrupamentos, liberais e conservadores. Outro reforço veio com o ingresso do Movimento de Unidade Nacional (MUN), chefiado por líderes militares e administrativos da FSLN durante a década revolucionária.

Essa organização receberá seguramente o apoio da embaixada dos Estados Unidos, enquanto não aparecer outro aliado local e desde que possa se constituir, ainda que a médio prazo, em uma força que defenda os interesses estratégicos norte-americanos na Nicarágua.

Aliança entre liberais e sandinistas

Nesse contexto, a aproximação empreendida pela FSLN com o Partido Liberal Constitucionalista significou, apesar dos custos para um e outro partido, uma forma de neutralizar a beligerância da oligarquia e da embaixada dos Estados Unidos para desnacionalizar a Nicarágua. Nessa aliança, as massas populares começaram a integrar-se, reclamando uma verdadeira agenda social na qual se sobrepusessem os interesses sociais ou de classe aos interesses estritamente partidários.

Com a morte política de Somoza, sucumbiu o último esforço do capitalismo nacional. A partir de então, passaram a existir capitalistas locais, mas não capitalismo nacional. Com a derrota eleitoral da FSLN e a chegada imediata do modelo neoliberal, debilitou-se enormemente a soberania econômica nacional.

A rigidez das medidas neoliberais, a agressividade das empresas transnacionais (europeias, asiáticas e norte-americanas) e a voracidade dos grupos bancários que operam na Nicarágua aprofundam a exclusão dos empresários, dos pequenos e médios produtores e do resto da população.

Tanto no contexto latino-americano quanto no nacional, veio se desenvolvendo uma nova força política, representada, de um lado, por grupos da burguesia industrial ou por pequenos e médios produtores locais e, de outro, pelas forças políticas de esquerda, que em diversos países venceram eleições com um programa nacionalista.

Junto a eles, a vida diária dinamizou-se com um conjunto de movimentos sociais que, sob novas bandeiras, mostram grande ojeriza à tendência neoliberal da globalização e orientam seus esforços em direção ao fortalecimento de uma economia e de uma política populares, nutrindo-se daquela parcela da cidadania que não milita em nenhum partido ou com a força e a liderança populares existentes nas diferentes agremiações.

Apesar de toda a campanha contra o pacto liberal-sandinista, a correlação de forças nas eleições municipais de 2004 alterou-se significativamente. Em primeiro lugar ficaram os sandinistas (FSLN), em segundo, os liberais (PLC) e, em terceiro, com apenas 9,5% dos votos e das prefeituras, os conservadores agrupados na APRE. A coabitação institucional entre liberais e sandinistas foi mantida, tanto no Parlamento como nos Conselhos Municipais, onde detêm juntos mais de 90% dos votos. Nos anos 2004 e 2005 foi adotada uma série de acordos parlamentares que se contrapõem à lógica neoliberal e colocam em xeque a hegemonia do presidente, figura desgastada pelas imposições do governo norte-americano em favor das medidas do Fundo Monetário Internacional, bem como pelo impacto negativo dessas medidas para os setores nacionais. O presidente enfrenta um voto de censura por parte dos partidos majoritários, dos poderes do Estado, da Igreja Católica e da maior parte das igrejas evangélicas, assim como da opinião pública, sendo amparado pela embaixada dos Estados Unidos e pelo prestígio de seu sobrenome.

A expressão mais concreta da aproximação entre liberais e sandinistas, e de seu conteúdo, aconteceu com a aprovação no Parlamento Nacional, sob maioria liberal-sandinista, de um conjunto de leis a favor de pequenos produtores, cooperativas, trabalhadores assalariados, consumidores, governos municipais, e também da participação dos cidadãos, debilitando assim as pretensões da oligarquia conservadora e neutralizando, ao mesmo tempo, a investida neoliberal dos organismos financeiros controlados pelo governo dos Estados Unidos.

A legitimidade dos acordos descansa em um amplo consenso, bem como na legalidade e institucionalidade estabelecidas segundo as regras da democracia representativa. A crítica a esses acordos, encabeçada por notáveis dos grupos conservadores, centrou-se na forma, evitando evidenciar os interesses afetados em um e em outro lado do mapa social nicaraguense. Em todo caso, a crítica a eles não teve vigor suficiente para que o presidente ou os seus aliados externos recorressem à força ou aos cofres para impedir tais acordos, sob o risco de romper o pacto social de governabilidade democrática de 1990, precisamente o instrumento com que o neoliberalismo se entronizou na Nicarágua.

Diante dessa situação, existe a possibilidade de que as forças liberais ou sandinistas se voltem para um projeto de defesa da soberania nacional contra a oligarquia e contra a intromissão norte-americana? Desde a revolução de Zelaya, no começo do século XX, as forças liberais tiveram uma posição muito ambígua: por um lado, esforçaram-se em representar os interesses de uma incipiente burguesia nacional e de um processo modernizador e democrático; por outro, seus principais líderes sucumbiram à pressão norte-americana, que os chantageou e corrompeu. Em meio a essa ambiguidade, registraram-se no passado verdadeiras surpresas, que levaram o projeto da soberania nacional mais além da chamada revolução liberal de Zelaya, surpresas que se revelaram em patriotas anti-imperialistas do porte de Benjamín Zeledón e Augusto César Sandino, ambos saídos de movimentos liberais.

Do lado da FSLN existe todo o potencial para que um programa de esquerda, em aliança com o capital nacional, permita continuar a luta social tolhida pela intervenção norte-americana e pela contrarrevolução oligárquica. Trata-se de incorporar, nas fileiras da FSLN e no sandinismo mais amplo, um perfil ideológico contrário à oligarquia e às intromissões. Um projeto com caráter e agenda eminentemente populares, ao qual necessariamente teriam de se somar os produtores, os empresários nacionais e a empobrecida classe média, pois o projeto oligárquico inclinado ao poder transnacional está contra eles. Em primeiro lugar, isso permitiria renovar ideologicamente a visão da FSLN, unindo a própria Frente e outros setores progressistas em torno de uma ideia-força como a que significou o antissomozismo. Em segundo, possibilitaria infundir permanentemente essa visão ideológica nas estruturas eleitorais, contestar as iniciativas dos Estado Unidos, que, em conluio com a classe política oligárquica, pretendem construir uma terceira via política representativa dos interesses comerciais norte-americanos, bem como os negócios especulativos e fraudulentos dos banqueiros e funcionários. Avançar nesse programa dependeria em parte do comportamento do capital nacional e do próprio Partido Liberal.

A Praça da Independência, na cidade Granada, próxima ao Lago Nicarágua, é uma das cidades mais visitadas na América Central (Elemaki/Wikimedia Commons)

A disputa por um novo projeto

Existem na Nicarágua três projetos: o neoliberal, economicamente hegemônico e defendido politicamente pela oligarquia tradicional conservadora; o burguês, em meio a uma ambiguidade que o aproxima politicamente da oligarquia e economicamente das forças nacionais e populares; e o popular, que se desenvolve econômica e politicamente entre as fissuras e contradições das classes dominantes, buscando o apoio da FSLN e dos novos e antigos movimentos sociais.

Na Nicarágua, a economia popular é familiar e autônoma, composta pelo campesinato, pelos setores artesanais, trabalhadores do setor informal urbano, pequenos comerciantes e pelas chamadas pequena e média indústrias. Essa economia responde por mais de 50% do Produto Interno Bruto (PIB), produz 80% dos alimentos, controla 60% dos produtos e serviços de exportação, nutre as principais redes do comércio e do transporte, processa os principais artigos domésticos, gera mais de 80% do emprego e da ocupação nacionais e paga a maior parte dos impostos, mas não controla os excedentes gerados nacionalmente e apropriados pelo mercado nacional e internacional. Entre 1995 e 2005, cerca de 30% dos camponeses mudaram-se para as cidades e a migração para o exterior manteve-se em uma taxa da ordem de 20%. Os familiares que ficaram na Nicarágua receberam em torno de US$ 800 milhões – muito mais do que as exportações totais do país –, o que permitiu sua sobrevivência.

Trata-se de uma economia empobrecida, que produz de forma artesanal, sem infraestrutura, sem crédito nem benefícios de acesso à saúde e à educação e cuja população vive em condições miseráveis, com sua juventude pressionada pelo consumismo e pela droga, tudo isso em meio a uma grande mobilidade migratória.

Essa economia popular nas mãos de produtores-trabalhadores produz de forma fragmentada e isolada, o que dificulta sua coesão social, econômica e política. Como esses trabalhadores não são operários assalariados, não estão contemplados pelos planos sindicais, não apresentam excedentes, e não têm muita possibilidade de organizar-se em associações. Por serem invisíveis economicamente, não recebem o apoio das políticas econômicas do Estado nem são considerados como uma força de desenvolvimento para a classe política.

Cada vez mais ignorados pelos serviços do Estado, recebem o apoio das chamadas organizações não governamentais (ONGs)­, que visam minimizar os estragos do empobrecimento gerado pelo modelo neoliberal. No entanto, a maioria das ONGs de desenvolvimento voltou-se para o crédito, somando-se à tarefa de extrair excedentes dessa economia por meio dos juros.

Ultimamente, para poder defender-se, a economia popular tem incursionado por um processo de cooperativização muito importante, tanto no campo como na cidade, e começa a ser reconhecida pela FSLN como uma das principais forças econômicas e sociais do país. Algumas leis aprovadas por parlamentares liberais e sandinistas vieram favorecer os interesses da economia popular. No entanto, a existência de diferentes e variados movimentos sociais representou um balizamento significativo no desenvolvimento da identidade política e econômica dessa economia popular.

A economia popular é cada vez mais acompanhada pelos movimentos sociais, cujas iniciativas temáticas incorporadas por grupos organizados contribuem para conceitualizar as novas reivindicações, levantam e tornam visíveis suas próprias bandeiras de luta, refletem criticamente sobre a conjuntura e analisam o momento histórico em função dos interesses parciais ou comuns da sociedade popular em seu conjunto. Como antigos movimentos sociais aparecem os sindicatos ou as agremiações; entre os novos figuram, sobretudo, as feministas, os ecologistas e os defensores dos direitos humanos. Na Nicarágua, a agenda desses movimentos sociais registra os mesmos temas da agenda latino-americana, a saber: a luta contra o neoliberalismo, o apoio à associatividade e à autogestão dos pequenos produtores, e a orientação e o amparo aos cidadãos e aos municípios que lutam por maior participação na vida nacional em termos políticos e econômicos.

Considerações sobre a revolução

A Revolução Sandinista alterou a natureza do Estado nicaraguense e deslocou a fração somozista da hegemonia social e econômica existente no país antes de 1979. Como revolução política, foi uma revolução popular, como todas, que concentrou o poder estatal nas mãos de uma classe política profissional, de origem popular, classe média e burguesa, encarregada de administrar as instituições públicas. Como revolução social e econômica, adotou medidas que podem ser classificadas tanto como democrático-burguesas como de orientação socialista: confisco da burguesia somozista, nacionalização dos bancos, do comércio e das empresas confiscadas ao somozismo, reforma agrária radical, economia mista em convivência com a burguesia não somozista, distribuição social dos excedentes (alfabetização, popularização da cultura, pleno emprego, saúde, educação, distribuição racional dos alimentos e moradia).

Uma vez consolidado o processo, o caráter histórico da revolução teve de ser definido a médio prazo. Depois de uma década de hegemonia política do sandinismo, sobreveio uma restauração política de ordem capitalista, na qual os interesses de antigos e novos setores sociais e econômicos disputaram o controle dos aparelhos estatais entre si e com os interesses políticos e econômicos dos empresários transnacionais – estes últimos representados no governo pelo antigo setor oligárquico. Simultaneamente, assistiu-se a um processo de privatização econômica, em que o capital estrangeiro descartou paulatinamente as empresas nacionais e ao mesmo tempo debilitou política e economicamente a classe operária, que teve de se refugiar no trabalho informal e além das fronteiras nacionais.

É possível, em tais condições, colocar-se como possibilidade histórica e como objetivo estratégico uma orientação socialista da sociedade? Se a resposta for afirmativa, caberia perguntar: quais seriam os sujeitos políticos, sociais e econômicos de tal orientação?

Em apoio a essa tese, existe um contingente de trabalhadores autônomos praticamente em todos os ramos da economia nacional, remanescentes das transformações revolucionárias e dos efeitos da globalização. Igualmente a seu favor há um processo de democratização política, no qual a esquerda política e social, isto é, aquela que rechaça a ofensiva neoliberal de privatização total do setor público, conta com um espaço que jamais experimentara na Nicarágua.

Para isso é necessário propor a construção de uma hegemonia política que aposte em um projeto alternativo, no qual estejam representados os interesses das forças trabalhadoras e familiares majoritárias do país, ou seja, os pequenos produtores do campo e da cidade, assim como a pequena burguesia profissional. É igualmente indispensável propor o reconhecimento e apostar em um projeto no qual esses produtores diretos sejam reconhecidos como um dos sujeitos econômicos fundamentais, imprescindíveis para uma estratégia de crescimento e bem-estar da economia nacional.

Da perspectiva da esquerda, trata-se de organizar esses trabalhadores autônomos social e politicamente, local e nacionalmente, considerando-os como setor substantivo da classe trabalhadora em geral. Por “organização social e política dos trabalhadores”, entenda-se organizações que têm como visão e missão a defesa de seus interesses socioeconômicos imediatos, diante do patrão, do governo e do mercado diferenciador e excludente.

No caso dos operários, as motivações de luta giram ao redor do emprego, do salário, das condições de trabalho, da participação nos excedentes da empresa e na gestão desta última. No caso dos trabalhadores autônomos (camponeses, artesãos ou comerciantes, técnicos e profissionais liberais), a luta envolve a recuperação dos excedentes que o mercado lhes arrebata diariamente. E, em ambos os casos, na qualidade de moradores e consumidores, esses setores reivindicam a redução das tarifas de água, luz, telefone e transporte, bem como a redução do preço e o acesso aos bens de primeira necessidade, particularmente a alimentação, a moradia, o transporte, a saúde e a educação, sejam eles privados ou públicos, produzidos internamente ou importados.

Pode-se observar portanto que: os pequenos produtores não pertencem à classe operária e não podem ser o sujeito econômico de uma economia socialista; aceitando que os pequenos produtores sejam a força trabalhadora majoritária e tenham peso significativo na economia nacional, eles pertencem a uma economia de sobrevivência e não de desenvolvimento; um pouco mais à esquerda afirma-se que incrementar essa economia popular significa apoiar a propriedade privada e reeditar o capitalismo a partir daqueles que os organismos internacionais chamam de microempresários, os quais não estão interessados em socializar a economia.

Entre as respostas às restrições anteriores assinalam-se as seguintes: aqueles que se encontram na economia popular não apenas constituem a força trabalhadora majoritária, mas também a mais explorada e a que mais produz excedentes (mais-valia) na economia real do país; para o pensamento tradicional ou para o capital, a satisfação das necessidades básicas não é uma condição do desenvolvimento. Mas, para qualquer projeto alternativo, o primeiro pilar do desenvolvimento é a sobrevivência da maioria da população; nas condições atuais do capitalismo, os excedentes não são captados no processo imediato de produção e sim no processamento e na circulação. Portanto, os excedentes que geram diferenciação, e que teriam de ser recuperados, são os que o mercado encaminha por meio das trocas comerciais. Ora, se grande parte dos meios de produção encontra-se nas mãos dos pequenos e médios produtores, comerciantes ou geradores de serviços, a socialização não tem de ser feita necessariamente pelo caminho da expropriação ou do confisco, e sim pela via da associatividade e da autogestão, ou seja, por meio da cooperativização.

A associatividade e a autogestão, para as quais se voltaria a economia popular, permitiriam aos pequenos produtores, técnicos, profissionais e consumidores ter acesso a uma economia de escala, facilitando-lhes o controle do crédito, o processamento, a distribuição, a comercialização, o conhecimento e a tecnologia; ter acesso aos excedentes econômicos, facilitando-lhes ao mesmo tempo o controle do mercado interno; desenvolver uma identidade política que lhes facilitaria administrar políticas econômicas em favor de seus interesses, associando-os em todos os campos da vida e combatendo todas as hierarquias existentes.

Isso não significa negar a integração dos escalões da economia, e sim promover sua integração horizontal. Não representa a negação da administração técnica e empresarial dos recursos da economia, e sim a promoção da participação democrática dos próprios trabalhadores e consumidores. Além da autocriação social, política e econômica desse sujeito, são necessários uma agenda social e um programa reivindicativo, levantados por organizações sociais e políticas, que colaborem para sua institucionalização em um Estado alternativo e dentro de uma cultura solidária com os excluídos e as excluídas (os pequenos e médios produtores empobrecidos, os migrantes, os discriminados, a mulher e o meio ambiente em geral etc.).

O presidente Daniel Ortega e José Miguel Insulza, Secretário Geral da OAS, em Manágua, na Nicarágua, em agosto de 2012 (Cesar Pérez/OAS)

Do Estado-nação ao Estado-município

Na esfera institucional, um novo fenômeno está ocorrendo na Nicarágua. Trata-se do nascimento do que poderia ser chamado de Estado-município, formado pelo triângulo município e prefeitura, pequenos produtores e organismos sociais em geral. Aparentemente, à medida que o Estado-império avança e que o Estado-nação se debilita, tende a emergir o Estado-município (governo municipal mais comunidade), isto é, um contrato social por meio do qual cidadãos produtores, cidadãos trabalhadores e cidadãos moradores se organizam, nomeiam representantes e administram diretamente recursos e políticas por meio do arranjo institucional local.

A ideia de partida é a de que os produtores–trabalhadores–consumidores associados estão se convertendo no novo sujeito econômico e no eixo do novo desenvolvimento nacional, diferente do empresário capitalista e contraposto a ele.

Entre as tarefas observadas na construção desse novo poder local comunitário, encontram-se algumas que vislumbram verdadeiros exercícios de gestão, que definitivamente estão tornando mais poderosas as comunidades, tais como: associação econômica para empreender sua própria economia de escala (integração horizontal) e recuperar os excedentes drenados pelo mercado, integração feita por meio de cooperativas, federações ou associações de qualquer tipo; estabelecimento de alianças internas entre essas associações e, sobretudo, com os demais organismos sociais existentes na comunidade (ONGs, igrejas, universidades, redes civis e outras); gestões diante da administração municipal e das delegações ministeriais, recursos e políticas em favor de seus interesses; pressão pública para que as leis recém-aprovadas no Parlamento Nacional sejam aplicadas em favor de seus interesses; aproveitamento da capacitação em marcha de muitas redes dos organismos sociais para fortalecer sua identidade e hegemonia no contexto nacional; e estabelecimento de alianças com movimentos sociais e partidos políticos para mobilizar os cidadãos e o povo nicaraguenses a favor de uma sociedade alternativa.

Há uma gama de experiências que mostram o potencial de participação, gestão e organização nos níveis de comarca e de bairro em geral, para criar os CDC (Conselhos de Desenvolvimento Comunitário) ou processos colegiados, bem como para nutrir os CDM (Conselhos de Desenvolvimento Municipal) e os CDD (Conselhos de Desenvolvimento Departamental). Esses conselhos estão racionalizando grande quantidade de reuniões conjuntas que todos faziam em determinado território, socializando seu conteúdo e evitando duplicidade de funções, o que não quer dizer que não continuarão a ocorrer reuniões em todos os níveis.

Em tais condições, pareceria haver espaço para um tipo de socialismo de caráter local ou comunitário, diferente do socialismo estatal do século passado, mas que, ainda assim, guarda seus princípios e suas principais características.

Saint Simon, teórico francês do século XIX, definia o socialismo como a passagem do governo dos homens para a administração das coisas. Para o pensador alemão Karl Marx, significava a união de produtores livremente associados, e para o russo Vladimir Lenin, era a combinação de soviets e eletrificação, aludindo à necessidade de combinar o desenvolvimento tecnológico com a gestão deste pelos trabalhadores. Nesse sentido, pode-se perfeitamente dizer que em princípio haveria condições para começar a esboçar um socialismo comunitário. Diferentemente do socialismo de Estado, centralizado e limitado a expropriar e distribuir, sem qualquer plataforma de acumulação autossustentável (menos na Nicarágua, onde foi subsidiado pela classe operária soviética), tomaria forma um socialismo construtivo e descentralizado, verdadeiramente associativo e autogestionário.

Por outro sistema social entenda-se outro sujeito econômico. Na sociedade senhorial da grande propriedade rural, o sujeito econômico é o proprietário rural ou o fazendeiro. Na sociedade capitalista, o sujeito econômico é o burguês. Na sociedade neoliberal, o sujeito econômico é a corporação transnacional. No socialismo de Estado, o sujeito econômico é a burocracia estatal. Em um socialismo comunitário, o sujeito econômico não pode ser outro senão os produtores–trabalhadores organizados local e nacionalmente, tanto em termos econômicos quanto em políticos. Produtores–trabalhadores associados como dizia Marx; produtores–trabalhadores organizados em conselhos (soviets) como dizia Lenin; produtores–trabalhadores administrando o Estado municipal, mas não governando gente, como dizia Saint Simon.

Diferentemente do socialismo estatal, no qual se mantiveram o proletariado (assalariados do Estado) e uma classe economicamente dominante (a burocracia estatal que distribuía os excedentes), e no qual os supostos novos sujeitos econômicos (os soviets) logo deixaram de funcionar, no socialismo comunitário começa-se justamente com a atuação de protagonista do novo sujeito econômico: os conselhos de produtores–trabalhadores–consumidores (CDC, CDM, CDD), em um esquema no qual o processo imediato de produção é privado, mas todo o resto da circulação está cada vez mais cooperativizado.

Pode-se, portanto, concluir que na Nicarágua atual existem condições objetivas e experiências concretas suficientes para realizar a curto, médio e longo prazos um sistema alternativo ao capitalismo selvagem. Um sistema baseado nos pequenos e médios produtores organizados em cooperativas, construindo seu poder político a partir da comunidade e do município, como mostram as experiências de governos municipais nos quais já estão funcionando os Conselhos Departamentais e Municipais, experiências nas quais as associações de produtores, particularmente no campo, já estão administrando a coisa pública em função de seus interesses, experiências de organizações sociais que já estão apostando conscientemente na capacitação econômica, social, política e cultural dos produtores–trabalhadores.

(atualização) 2005- 2015

por Mônica Rodrigues

Daniel Ortega, candidato da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), conseguiu triunfar nas eleições presidenciais de 2006 depois de três derrotas consecutivas. Aproveitando-se de uma divisão das forças conservadoras, ele fortaleceu sua candidatura com manobras surpreendentes. Afinou-se com os grandes grupos empresariais do país e entregou a vice-presidência de sua chapa a um antigo líder da contrarrevolução, Jaime Morales Carazo. Para contar com o apoio de parte do Partido Liberal, ainda negociou com o ex-presidente Arnoldo Alemán – condenado por corrupção – e prestou reverência à cúpula da Igreja Católica, casando no religioso depois de trinta anos de vida conjugal com sua companheira, Rosario Murillo. Tais contradições políticas e éticas culminaram com sua vitória sobre o candidato conservador, José Rizo, que chegou em segundo lugar, e sobre Edmundo Sarquín, candidato dissidente da FSLN e o terceiro colocado no pleito.

O envolvimento com grupos conservadores, porém, não afastou o governo Ortega de muitos projetos da revolução sandinista. Enfrentando a oposição, ele aderiu à Aliança Bolivariana das Américas (ALBA) e conseguiu apoio da Venezuela para superar a grave crise de energia que o país atravessava. O presidente ainda trabalhou pela população mais carente. Desse modo, conseguiu diminuir a pobreza extrema de 22% para 11%. O salário mínimo foi gradativamente revigorado e, em cinco anos, aumentou 150%. Também liberou microcrédito sem juros para mulheres desenvolverem pequenos negócios e estimulou a criação de cooperativas. Além disso, instituiu a gratuidade nos sistemas de saúde e de educação, diminuiu o desemprego, ofereceu crédito agrícola para pequenos produtores, ampliou o fornecimento de energia elétrica e criou uma rede nacional de distribuição de alimentos básicos a preços menores do que os praticados pelo mercado. Por fim, institucionalizou o método de ensino cubano para combater o analfabetismo, mobilizando jovens de todo o país e alcançando reconhecimento da Unesco.

Contudo, se na esfera doméstica Ortega desfrutava de certo conforto, no plano internacional o arraigado conceito de soberania nacional do governo sandinista se chocou com a política intervencionista norte-americana e suas pautas neoliberais. Os Estados Unidos e a União Europeia, por exemplo, suspenderam investimentos de cooperação financeira na Nicarágua por divergências com Ortega. Foi uma perda significativa para a acanhada receita nacional, que necessitava de dinheiro do exterior para sustentar seus projetos sociais. Ainda assim, a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) aponta a Nicarágua como uma das nações que mais diminuiu o índice de desigualdade social. O país exibia também o menor índice de insegurança da América Central, região em que a violência é moeda corrente, bem como o segundo menor índice de homicídios da América Latina. As pesquisas também mostraram que a polícia era uma instituição confiável para 78% dos nicaraguenses.

Ortega chegou ao fim do mandado desfrutando de grande aprovação popular e acabou reeleito em 2011, com ampla vantagem sobre o segundo colocado, Fabio Gadea, da aliança oposicionista Partido Liberal Independente (PLI), com apoio dos EUA. Em seu segundo mandato, o presidente adotou uma política econômica que privilegiou o equilíbrio da balança comercial, por meio da diversificação das exportações. E, em 2013, o país ingressou na Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) com o objetivo de fortalecer as relações regionais. Além disso, houve um grande esforço para atrair investimento estrangeiro.

A face mais visível dessa política foi o acordo, anunciado em 2014, entre o governo nicaraguense e o multimilionário chinês Wang Jing, para a construção de um canal interoceânico que atravessará o país, ligando Atlântico e Pacífico. O projeto será comandado pela Hong Kong Nicaragua Canal Development (HKND) e deve transformar geopoliticamente a região. A previsão é de que o grupo chinês invista cerca de US$ 50 milhões e administre o canal por cem anos. As obras ainda devem criar milhares de empregos, mas irão provocar o deslocamento de aproximadamente 30 mil moradores, além da dragagem do lago Nicarágua, a fonte de água potável do país. Contudo, não era claro o real impacto ambiental de uma intervenção de tal porte, o que deixou os grupos ambientalistas locais em alerta.

Além do canal propriamente dito, as obras incluíam a construção de um aeroporto, de uma zona de livre de comércio, de um centro turístico, de um parque industrial, de uma ferrovia, de um oleoduto e de dois portos de águas profundas. Em dezembro de 2014, Ortega participou da cerimônia de início das obras, cuja conclusão estava prevista para 2020. Projeções indicavam que, em função da construção do canal, o PIB da Nicarágua, na casa dos US$ 10 bilhões em 2014, chegaria aos US$ 25 bilhões até 2018.

Mas não eram apenas os ambientalistas que perdiam o sono com o canal nicaraguense. Sua construção movimenta interesses internacionais poderosos e significa a inserção estratégica da China na América Central, numa área dominada pelo Canal do Panamá e sob influência direta dos Estados Unidos. Além disso, o comércio marítimo é responsável por 90% das exportações globais, e algumas projeções indicavam que o futuro canal poderia conquistar 5% desse mercado. Ele será maior que os canais do Panamá e de Suez, podendo receber embarcações de até 330 mil toneladas, reduzindo, assim, os custos de transporte de minérios e de petróleo em até 60%. As obras de expansão do Canal do Panamá, por exemplo, terminariam em 2015, quando ele se tornaria capaz de receber navios de até 175 mil toneladas.

O canal da Nicarágua também deverá fortalecer o comércio e os laços entre os países da América Latina e os chamados BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), assim como enfraquecer a hegemonia dos EUA. O projeto havia despertado ainda o interesse do governo russo, que negociava investimentos tecnológicos para a construção de uma hidrovia e um acordo para viabilizar o acesso de seus navios militares aos futuros portos do canal.

Por fim, um informe da CEPAL em conjunto com a Organização Mundial do Trabalho (OIT) indicava que o governo Ortega obteve sucesso em seu propósito de alcançar crescimento com geração de trabalho, de empregos formais e de redução da pobreza. Afinal, a previsão de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) para 2015 era de 5%, a maior da região.

Assim, políticos de todas as legendas davam como certa a candidatura de Ortega para um terceiro mandado. A Assembleia Nacional já havia aprovado a reforma na Constituição, permitindo a manobra, e as eleições presidenciais estavam marcadas para 2016. No entanto, vozes da oposição e de dentro de seu próprio partido acusavam o presidente de criar uma estrutura paralela de poder. Ele ainda nomeou a mulher, Rosario Murillo, como porta-voz oficial do governo, e era ela quem controlava a gestão de sua agenda social. Outro fator que reforçou essa leitura foi o fato de seus filhos serem donos de canais de TV abertos no país, beneficiando a imagem pública do mandatário.

Desse modo, a Nicarágua prosperou nos últimos anos, mas permanece como uma das nações mais pobres da região, além de ter registrado também um triste ponto de inflexão. O estreitamento da relação do governo Ortega com a Igreja Católica manteve o país na direção de um cristianismo conservador e obscurantista. Com apoio dos deputados sandinistas e o patrocínio da Igreja, foi aprovada uma draconiana lei antiaborto. Ela estabeleceu sentenças de até trinta anos de prisão para mulheres que realizem o procedimento e fez com que qualquer caso de aborto espontâneo passasse a ser considerado pressuposto de delito. Diante disso, a Anistia Internacional denunciou como cruel e discriminatória a prisão de mulheres condenadas pela lei, já que as denúncias partiriam somente de hospitais públicos, nenhuma delas do sistema privado. Como consequência, muitas mulheres pobres que sofrem complicações na gravidez têm medo de procurar ajuda médica. E, segundo um levantamento do Ministério da Saúde realizado depois da aprovação da lei, o suicídio surgiu como a causa mais comum de morte entre meninas e adolescentes – metade delas estava grávida.

Dados Estatísticos

Indicadores socioeconômicos da Nicarágua

1960

1970

1980

1990

2000

2010

2020*

PIB (em milhões de US$ a 
preços constantes de 2010)

4.839,8

6.754,6

8.938,2

...

• Participação no PIB 
latino-americano (%)

0,183

0,189

0,180

...

PIB per capita (em US$ a 
preços constantes de 2010)

1.169,7

1.324,2

1.537,6

...

Exportações anuais 
(em milhões de US$)

450,4

332,0

880,6

2.774,1

...

• Exportação de produtos 
manufaturados (%)

17,8

18,1

8,5

7,8

7,1

...

• Exportação de produtos 
primários (%)

82,2

81,9

91,5

92,2

92,9

...

Importações anuais 
(em milhões de US$)

802,9

569,7

1.801,5

4.494,6

...

Exportações-importações 
(em milhões de US$)

-352.5

-237,3

-920,9

-1.750,5

...

Investimentos estrangeiros 
diretos líquidos 
(em milhões de US$)

0,0

0,0

266,5

490,5

...

Dívida externa pública 
(em milhões de US$)

1.825,0

10.715,4

6.659,9

4.068,2

...

População Economicamente 
Ativa (PEA)

...

...

991.809

1.293.707

1.921.546

2.542.211

3.265.955

• PEA do sexo 
masculino (%)

...

...

71,69

70,15

66,12

62,46

59,40

• PEA do sexo 
feminino (%)

...

...

28,31

29,85

33,88

37,54

40,60

Taxa anual de desemprego 
urbano (%)

...

...

...

Analfabetismo acima 
de 15 anos (%)

...

...

...

...

...

...

• Analfabetismo 
masculino (%)

...

...

...

...

...

...

• Analfabetismo 
feminino (%)

...

...

...

...

...

...

Matrículas no 
ciclo primário¹

285.285

472.167

632.882

838.437

923.745

...

Matrículas no 
ciclo secundário¹

51.383

139.743

184.101

333.210

465.201

...

Matrículas no 
ciclo terciário¹

9.385

35.268

30.733

...

Professores

9.624

17.539

33.923

45.660

...

Médicos

524

961

1.356

2.095

2.019

...

Índice de Desenvolvimento 
Humano (IDH)²

0,483

0,491

0,554

0,604

...

Fontes: CEPALSTAT
¹ UNESCO Institute for Statistcs. Não há dados para o número de professores no ciclo terciário.
² UNDP. Coutries Profiles

* Projeções. 

Obs.: Informações sobre fontes primárias e metodologia de apuração (incluindo eventuais mudanças) são encontradas na base de dados ou no documento indicados.

 

Indicadores demográficos da Nicarágua

1950

1960

1970

1980

1990

2000

2010

2020*

População 
(em mil de habitantes)

1.295

1.775

2.400

3.250

4.138

5.101

5.822

6.665

• Sexo masculino (%)

49,72

49,90

49,98

50,10

49,89

49,78

49,49

...

• Sexo feminino (%)

50,28

50,10

50,02

49,90

50,11

50,22

50,51

... 

Densidade demográfica 
(hab./km²)

10

14

18

25

32

39

45

51 

Taxa bruta de natalidade 
(por mil habitantes)**

54,90

48,51

46,29

42,87

35,41

26,26

22,9*

18,90 

Taxa de crescimento 
populacional**

3,05

3,01

3,07

2,64

2,38

1,34

1,44*

1,09 

Expectativa de vida 
(anos)**

42,29

48,65

55,26

59,45

66,07

70,86

74,7*

77,6 

População entre 
0 e 14 anos (%)

43,01

47,41

48,11

47,11

45,98

40,91

34,51

29,9

População com 
mais de 65 anos (%)

2,80

2,54

2,54

2,75

3,16

3,69

4,58

5,7 

População urbana (%)¹

35,20

39,58

47,03

49,94

52,34

54,74

57,26

60,49

População rural (%)¹

64,80

60,42

52,97

50,06

47,66

45,26

42,74

39,51 

Participação na população 
latino-americana (%)***

0,77

0,81

0,83

0,89

0,93

0,97

0,98

1,01 

Participação na população 
mundial (%)

0,051

0,059

0,065

0,073

0,078

0,083

0,084

0.086 

Fontes: ONU. World Population Prospects: The 2012 Revision Database
¹ Dados sobre a população urbana e rural retirados de ONU. World Urbanization Prospects, the 2014 Revision 

* Projeção. | ** Estimativas por quinquênios. | *** Inclui o Caribe.

Obs.: Informações sobre fontes primárias e metodologia de apuração (incluindo eventuais mudanças) são encontradas na base de dados indicada.

 

Mapas

 

Bibliografia

  • ENCICLOPEDIA DE NICARAGUA. Manágua: Grupo Océano, 2003.
  • NÚÑEZ, Orlando et al. La guerra y el campesinado en Nicaragua. 3. ed. Manágua: Cipres, 1998.
  • PLAZAOLA, Eneida Oviedo et al. Atlas básico ilustrado Nicaragua y el mundo. Estocolmo (Suécia): EPADISA – Salma (Cartografía Universal), 1993.
  • VARGAS, Oscar René. Historia del siglo XX. Nicaragua. T.1 1893-1909. T.2 1910-1925. T.3 1926-1939. Manágua: Centro de Estudios de la Realidad de Nicaragua, 2000-2001.