Nas suas quatro grandes vertentes, a esquerda foi uma das principais protagonistas da história latino-americana desse último meio século. As correntes nacionalistas, os partidos comunistas e socialistas e os movimentos guerrilheiros – juntamente com os movimentos sociais – tiveram participação decisiva em todos os acontecimentos políticos e sociais que deram forma à história da América Latina dessas últimas décadas.
Caudatária do movimento operário europeu, a esquerda latino-americana nasceu com fortes compromissos ideológicos e pouco enraizamento nacional. Mas, ao longo do século XX, especialmente após as três primeiras décadas, começou a enraizar-se nacionalmente, passando a elaborar suas próprias concepções estratégicas e adquirindo crescente presença política.
Após uma primeira fase, marcada por sua presença em partidos de orientação classista, a esquerda latino-americana viveu um período em que a questão nacional foi colocada no centro da luta política e ideológica, o que a obrigou a testar sua criatividade tornando-se capaz de realizar análises crescentemente aprofundadas das condições histórico-sociais concretas. Posteriormente, as ditaduras militares encarregaram-se de trazer para a linha de frente do debate político a questão democrática, que fora relativamente diluída no período anterior. Ao mesmo tempo, o desafio de elaborar estratégias contra os regimes de força começou a ser respondido, de um lado, pelas propostas nascidas das concepções liberais e, do outro, pelos projetos de ruptura revolucionária, incluindo a opção por formas de luta armada. Mais recentemente, o neoliberalismo e a hegemonia dos regimes políticos de democracia liberal criaram novos cenários históricos e colocaram outros tantos enigmas que a esquerda do continente está sendo desafiada a decifrar.
O nacionalismo, uma das vertentes da esquerda, finca raízes na descolonização, estendendo-se ao século XX. Está fortemente presente na Revolução Mexicana e na Revolução de 1930, no Brasil; marca o peronismo argentino, o nacionalismo militar peruano e, mais recentemente, o bolivarianismo, na Venezuela, além de outras correntes mais ou menos similares. Quanto aos partidos comunistas e socialistas, a segunda vertente da esquerda, em geral fundados em torno dos anos 1920, conseguiram ter participação em vários governos de países como o Brasil do início da década de 1960, o Chile da Frente Popular nos anos 1930 e da Unidade Popular dos anos 1970, e, mais recentemente, o Uruguai; também tiveram forte participação na luta contra os regimes ditatoriais das décadas de 1960 e de 1970 em vários países da região. Na sua terceira vertente, no que concerne aos movimentos guerrilheiros, vitoriosos em Cuba e na Nicarágua, conseguiram propagar-se para vários outros países, como a Venezuela, a Colômbia, o Peru, a Guatemala, o Brasil, a Argentina, o Uruguai, El Salvador, entre outros, tanto nas guerrilhas rurais como nas urbanas. Quanto aos movimentos sociais, tornaram-se os principais núcleos de resistência e de enfrentamento às políticas neoliberais em todo o continente.
Nas suas quatro vertentes, a esquerda latino-americana foi protagonista de destaque nos grandes acontecimentos da história do continente desse último século: desde o massacre da Escola Santa Maria de Iquique, em 1907, no Chile, quando os mineiros resistiram às ofensivas do governo oligárquico e foram massacrados – movimento que daria origem ao Partido Comunista do Chile, fundado por Luis Emílio Recabarren. Passando, então, pela Revolução Mexicana, de 1910, que marcou o renascimento de um forte movimento nacionalista naquele país, graças à luta anti-imperialista, e na qual irrompeu, com uma força até então desconhecida, a luta do movimento camponês. E, por fim, chegando à reforma universitária de Córdoba, na Argentina, que deu projeção ao movimento democrático de base popular naquele país. Chegando também à Coluna Prestes e à Revolução de 30, no Brasil; às rebeliões de Farabundo Martí, em El Salvador, e de Augusto César Sandino, na Nicarágua. Foi uma das principais protagonistas do governo da Frente Popular, no Chile; do movimento chamado de Bogotaço, na Colômbia, em 1948; da Revolução Boliviana, de 1952; da Revolução Cubana, de 1959; do governo da Unidade Popular, no Chile, de 1970 a 1973; dos movimentos guerrilheiros dos anos 1960 e 1970, em quase toda a América Latina; da Revolução Sandinista, na Nicarágua, de 1979 a 1990; da resistência às ditaduras militares no Cone Sul; do governo bolivariano, da Venezuela – entre muitos outros.
O desembarque no século XXI
A história da América Latina não poderia ser contada sem a presença marcante da esquerda em suas distintas vertentes. Porém, sob o impacto das transformações neoliberais impostas ao continente, a esquerda iniciou o século XXI profundamente modificada, seja nos seus perfis ideológicos, seja na sua força política. Profundamente regressivas, as transformações neoliberais encarregaram-se de gerar, num período curtíssimo de tempo, a maior crise econômica e social do continente desde os anos 1930; crise que modificou o perfil da própria esquerda, que não ficou imune a essas transformações.
O grupo de partidos predominante na esquerda no início do século XXI inclui formações diferenciadas, como o Partido dos Trabalhadores (PT), do Brasil, a Frente Ampla (FA), do Uruguai, o Partido da Revolução Democrática (PRD), do México, a Frente Farabundo Martí (FMLN), de El Salvador, e o Movimento ao Socialismo (MAS), da Bolívia. Elas apresentam aspectos comuns de ação institucional, de manutenção dos modelos econômicos herdados – ou de grande cautela em relação a sua superação – e de recurso às políticas sociais compensatórias, ao menos nos casos dos partidos que chegaram ao governo, como no Brasil e no Uruguai.
Ao lado desses partidos, em diversos graus de aliança com eles, distinguem-se as expressões mais radicalizadas da esquerda latino-americana: Cuba, concreção particular da vertente marxista e anticapitalista, e Venezuela, renovação da corrente nacionalista e com forte componente anti-imperialista. Dentre os movimentos sociais, destacam-se particularmente os movimentos camponeses – cuja melhor expressão é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Brasil – e os movimentos indígenas – em particular no Equador, na Bolívia e no México.
Um primeiro balanço, mesmo superficial, da fisionomia da esquerda latino-americana desse início de século é, no mínimo, paradoxal: nunca tantos governos que se reivindicam de esquerda estiveram no poder, ou próximos de estar, enquanto a estrutura econômica, social e ideológica permaneceu profundamente dominada pelo liberalismo! Nunca a esquerda esteve tão presente na direção de governos, ou em governos de aliança, ou em condições de poder chegar a essa posição! Nunca o continente teve um arco de alianças tão amplo e tão diferenciado da política norte-americana! Ainda assim, a esquerda está se revelando incompetente, e/ou incapaz, para romper o modelo econômico neoliberal e para transformar as relações sociais e econômicas internas que continuam produzindo a pior desigualdade social do mundo, o que se reflete na sua incapacidade de superar a instabilidade política e de ultrapassar seguidas crises de legitimidade dos seus governos.
Esse é o quadro que a esquerda latino-americana é obrigada a enfrentar se quiser ser capaz de definir não somente o seu próprio futuro, como também o do nosso continente. Qualquer que seja o desenlace, sua fisionomia será modificada: aceitando a manutenção do modelo econômico neoliberal, estará condenada a descaracterizar-se; se for capaz de aproveitar as condições históricas para romper com o neoliberalismo poderá conquistar, de fato pela primeira vez, a hegemonia política na América Latina.
As origens classistas
Durante o primeiro período da sua história, entre a última década do século XIX e as duas primeiras do século XX, a esquerda latino-americana foi fortemente influenciada pelo movimento operário europeu e, consequentemente, sua atuação teve forte marca classista. Primeiras formas de organização sindical, fundação dos primeiros partidos de esquerda, de base operária, ideologias anarquista, socialista e comunista, marcaram esse perfil inicial da esquerda.
A imigração, especialmente da Espanha, da Itália e de Portugal, trouxe para o continente as experiências europeias de organização sindical operária bem como partidária, socialista e comunista. Países como a Argentina, pelo seu maior nível de desenvolvimento econômico relativo, e o Chile, pelos desdobramentos sociais da sua economia mineira, foram os protagonistas das primeiras grandes experiências de massa do movimento sindical, base original de apoio da esquerda no continente.
Essas levas de imigrantes desembarcaram em sociedades de economias predominantemente primário-exportadoras, com pouco desenvolvimento industrial e sob o domínio de regimes políticos oligárquicos que não reconheciam legalidade às organizações de defesa dos trabalhadores. Os primeiros sindicatos, construídos majoritariamente por imigrantes, artesãos e operários, nasceram sob forte influência das ideologias trazidas pelos anarquistas e das suas experiências de sindicalismo de base, centrado em greves e organizações clandestinas dos trabalhadores.
Contudo, a Revolução Russa de 1917 e a vitória do bolchevismo tiveram, ao menos, dois efeitos políticos imediatos: a fundação de partidos comunistas, entre a segunda e a terceira décadas do século XX, em quase todos os países do continente, e o crescente desaparecimento do anarquismo. Ao mesmo tempo, avançava o processo de sindicalização, principalmente nos centros urbanos e mineiros. Iniciava-se, assim, a construção de um campo de esquerda do qual faziam parte organizações sindicais, partidos políticos e uma nova intelectualidade, com forte presença do marxismo no seu seio – todos esses, fenômenos novos na história da América Latina.
Nessa primeira fase, os partidos tendiam a assumir uma linha política classista, isto é, a orientação “classe contra classe”, pregada pela Internacional Comunista, desde meados dos anos 1920. Graças ao poder de persuasão da vitória bolchevista, as propostas enfatizavam a formação de sovietes, a aliança operário-camponesa e a luta insurrecional pelo poder. Ainda sem capacidade de realizar análises específicas para as situações particulares de cada país, as estratégias centraram-se na combinação genérica do anticapitalismo e do anti-imperialismo.
Por sua capacidade política, organizativa e teórica, distinguiam-se três dirigentes da esquerda: Luís Emílio Recabarren, José Carlos Mariátegui e Julio Antonio Mella. Recabarren, chileno, participou da fundação dos partidos comunistas do Chile e da Argentina e elaborou análises sobre a construção da aliança operário-camponesa nos países do continente. José Carlos Mariátegui, peruano, fundador do Partido Socialista do Peru – depois Partido Comunista –, foi o principal teórico da primeira geração de marxistas do continente, destacando-se, especialmente, pelas suas teses sobre a questão indígena na América Latina. Julio Antonio Mella, cubano, fundador do Partido Comunista de Cuba, tornou-se reconhecido por suas análises sobre o proletariado e a luta de classes.
Apesar do domínio da produção agro-exportadora, a brutalidade da dominação oligárquica colocava muitas dificuldades à organização dos trabalhadores do campo, o que levou a esquerda latino-americana a concentrar suas bases de apoio na incipiente classe operária desse início do processo de industrialização e nos trabalhadores da produção mineira.
Essa era a fisionomia da esquerda latino-americana até o final dos anos 1920. O colapso de 1929 e seus desdobramentos em todo o continente afetaram profundamente a esquerda, obrigando-a a enfrentar o tema do nacionalismo que se alastrava pela América Latina.
O nacionalismo latino-americano
Após a crise de 1930, desencadeada no ano anterior, a ideologia nacionalista, que logo se tornaria dominante no quadro político do continente, colocou um novo desafio aos partidos de esquerda, especialmente aos partidos comunistas que, na maioria dos países, se tornariam hegemônicos na esquerda. Alterava-se o quadro social e político do continente, com o fortalecimento da burguesia industrial e a expansão da classe média, trazendo novos desafios para a estratégia e a tática da esquerda.
A forte herança europeia, determinando os rumos não só do movimento operário, como também da própria elaboração da teoria marxista, fez com que os partidos de esquerda encontrassem enorme dificuldade para abordar o nacionalismo, pois, ao contrário do que ocorre na América Latina, na Europa essa corrente costuma pertencer ao campo da direita.
Houve casos extremos, como o dos partidos socialista e comunista argentinos, que associaram mecanicamente o peronismo ao nacionalismo europeu, passando a tratar Juan Domingo Perón como uma pura cópia de Hitler e Mussolini. Em virtude da dificuldade dos socialistas e comunistas de compreender o novo fenômeno político, o peronismo conseguiu deslocá-los do seu lugar dominante junto ao movimento operário, afirmando-se como um forte concorrente na luta pelo mesmo espaço político. A incapacidade de abordar adequadamente o tema do nacionalismo e a competição política facilitaram a decisão dos partidos comunista e socialista argentinos de aliar-se tanto ao Partido Radical e às tendências liberais e conservadoras, como à Igreja Católica e até à própria política norte-americana, sob o pretexto da necessidade de combater o nacionalismo peronista.
No Brasil, enquanto os comunistas mantiveram a estratégia da insurreição armada, mesmo conciliando-a aos temas das frentes populares, o movimento nacionalista de Getúlio Vargas foi combatido como adversário. Contudo, em meados da década de 1930, o Partido Comunista do Brasil (PC do B) estabeleceu uma aliança com os setores nacionalistas do governo Vargas, aderindo assim às teses da Internacional Comunista, segundo as quais, nos países coloniais e semicoloniais (como a China e a Índia) e nos países dependentes (como a Argentina e o Brasil), a luta contra o feudalismo e pela revolução agrária do campesinato, de um lado, e a luta contra o imperialismo estrangeiro e pela independência nacional, do outro, deveriam ser prioritárias. Em outros termos, o PCB adequou-se à assim chamada etapa democrático-burguesa da revolução, que representava uma aliança subordinada à fração industrial da burguesia – considerada nacionalista e anti-imperialista.
Se a dimensão nacional e popular com seu forte anti-imperialismo determinou a opção dos comunistas brasileiros, foi a dimensão democrática que marcou a escolha dos comunistas argentinos.
Na Europa, o nacionalismo nascera com um caráter conservador, reivindicando a superioridade de um país sobre os demais e de uma cultura sobre a outra. Foi decisivo na deflagração das duas grandes guerras mundiais e procurou afirmar-se em oposição às correntes de esquerda. Na América Latina, a origem e a natureza do nacionalismo foram profundamente diferentes. Aqui, ele nasceu das lutas anticoloniais e ressurgiu na confluência das reações à crise de 1929 e do esgotamento do modelo primário-exportador, procurando incentivar o avanço do processo de industrialização. Com forte teor anti-imperialista, o nacionalismo latino-americano afirmou-se em defesa dos projetos nacionais, opondo-se às políticas liberais, aliadas à dominação imperialista do continente. Consolidando-se a partir da década de 1930, o nacionalismo transformou-se na mais forte tendência da esquerda latino-americana. Defensor de inúmeros projetos de transformação das sociedades latino-americanas, identificou-se com os processos de industrialização, de urbanização, de sindicalização, de expansão do emprego e do mercado interno. Ademais, aliou-se a todas as lutas comprometidas com a extensão dos direitos sociais: ao emprego, à educação, à saúde pública, à habitação.
O nacionalismo manteve-se como tendência dominante enquanto perduraram as condições do crescimento econômico vinculado à industrialização e ao ciclo longo de expansão do capitalismo internacional. Com o esgotamento do modelo, a partir dos anos 1960, o nacionalismo começou a debilitar-se, perdendo sua fisionomia original, até quase todas as suas versões terminarem aderindo ao neoliberalismo, nas duas décadas finais do século XX. Costumam ser considerados nacionalistas governos como os de Getúlio Vargas (1930-1945/1951-1954), no Brasil; de Juan Domingo Perón (1946-1955), na Argentina; de Lázaro Cárdenas (1934-1940), no México; de Hernan Siles Zuazo (1956-1960), na Bolívia; além de movimentos como a Aliança Popular Revolucionária Anti-imperialista (APRA), liderada por Victor Haya de la Torre, no Peru, e o gaitanismo (tendência interna ao Partido Liberal, liderada por Jorge Eliécer Gaitán), na Colômbia. Em geral, dada a importância do seu caráter nacional, mas também em decorrência da frágil formação das elites civis, os militares tiveram papel destacado nos movimentos nacionalistas latino-americanos, especialmente nos casos brasileiro, argentino, peruano e venezuelano.
Cárdenas, varguismo e peronismo
O nacionalismo latino-americano encontrou no Partido Revolucionário Institucional (PRI), mexicano, no peronismo argentino e no getulismo brasileiro suas principais manifestações.
No México, o nacionalismo ressurgiu com a revolução de 1910, como uma reação dos camponeses, liderados por Emiliano Zapata e Pancho Villa, à exploração econômica e à repressão política no campo. Com um programa nacionalista, foi promulgada a nova Constituição, em 1917, incorporando, inclusive, a reforma agrária. No seu processo de institucionalização, foi fundado, em 1929, o Partido Nacional Revolucionário, que posteriormente adotaria o nome de Partido Revolucionário Institucional. Mas foi com a eleição de Lázaro Cárdenas, em 1934, que o nacionalismo mexicano adquiriu seus contornos definitivos. A crise de 1929 provocou grandes manifestações de operários e de camponeses, expressando-se numa nova onda nacionalista que o governo Cárdenas soube mobilizar em troca da garantia dos direitos sociais. Ao mesmo tempo, apoiando-se também na classe média e no Exército, Cárdenas fez do Estado uma alavanca impulsionadora do desenvolvimento econômico. Seu governo construiu um importante setor estatal da economia, recorrendo à política de nacionalizações, como é o caso das estradas de ferro e da exploração do petróleo. Desde os anos 1940, a orientação nacionalista começou a perder força para desembocar, na década de 1990, na adesão dos governos do próprio PRI ao neoliberalismo.
O nacionalismo brasileiro reafirmou-se com o movimento tenentista e a Revolução de 30, graças à qual Getúlio Vargas chegou à presidência. Já no seu primeiro governo, Vargas assumiu a defesa do processo de industrialização substitutiva de importações, regulamentou os direitos trabalhistas e estimulou a siderurgia, com a Companhia Siderúrgica Nacional (1941). Tanto no primeiro quanto no segundo mandato, estimulou a industrialização e o papel do Estado como agente indutor do desenvolvimento, por meio da criação e do fortalecimento de empresas estatais, como é o caso, entre outras, da Petrobras, fundada em 1953, empresa de exploração petrolífera. Uma das marcas do nacionalismo latino-americano desse período foi a constituição de uma direção também nacionalista do movimento operário. No Brasil, Vargas concentrou esse papel no Ministério do Trabalho. Consolidou a legislação trabalhista e implementou políticas de previdência social. Seus dois governos iniciaram a construção de um Estado nacional com forte presença na economia, que comandou o processo de desenvolvimento durante as décadas seguintes. Seu suicídio, em 1954, coincidiu com a derrubada de Perón, na Argentina, com o final da guerra da Coreia e com o início de fortes investimentos estrangeiros nas duas economias. O golpe militar de 1964 representou a derrota final do projeto nacional-desenvolvimentista iniciado com a Revolução de 30. O chamado projeto da tríplice aliança – capital nacional, capital estrangeiro e capital estatal – estava fincado na adoção da doutrina de segurança nacional e da ampla abertura do país aos investimentos estrangeiros.
O nacionalismo argentino, expresso pelo peronismo, data de 1944, quando o então coronel Perón foi nomeado secretário do Trabalho, afirmando-se como a liderança alternativa aos partidos tradicionais da esquerda, desgastados com a incapacidade de resistir eficazmente aos governos conservadores da década de 1930. O peronismo estruturou-se como um projeto de caráter nacional, pregando a redistribuição de rendas em favor das classes populares e com um discurso anti-imperialista. Impulsionou o processo de industrialização, combinado com a expansão do mercado interno de consumo popular, e fortaleceu o movimento sindical diretamente ligado ao peronismo.
Em linhas gerais, os governos nacionalistas aproveitaram-se do longo parêntese gerado pelo refluxo dos investimentos estrangeiros, iniciado com a crise de 1929, prolongado com a Segunda Guerra Mundial e a guerra da Coreia, para fazer avançar processos de industrialização substitutiva de importações. Por isso mesmo, incentivaram a expansão da urbanização e fortaleceram a presença da burguesia industrial e da classe operária na cena política. Ao lado dos governos de Vargas e de Perón, e por eles apoiados, ascenderam ao poder Alfredo Stroessner, no Paraguai, e o general Carlos Ibáñez, no Chile.
A revolução boliviana de 1952 foi um momento particularmente importante da fase nacionalista da esquerda latino-americana. Uma revolução marcada pela nacionalização das minas de estanho, pela realização da reforma agrária e pela desmobilização do Exército regular, substituído por milícias populares.
O projeto nacionalista começou a arrefecer com a queda dos governos Vargas e Perón, em 1954 e 1955, e com o retorno crescente dos investimentos estrangeiros para a América Latina. Teve início um novo período de industrialização, centrado no fortalecimento e na expansão dos investimentos de capital externo, especialmente na indústria automobilística, no Brasil e na Argentina. O período nacionalista terminou em meados dos anos 1960, quando se iniciava o processo de internacionalização das economias, com a consolidação das grandes corporações multinacionais e com o estreitamento dos espaços nacionais de acumulação. As esquerdas continuariam a conviver com projetos nacionalistas e a protagonizá-los; contudo, outras alternativas começavam a se firmar, mudando o quadro político da esquerda.
Luta armada e socialismo
Zona de influência direta dos Estados Unidos, a América Latina tornou-se uma região completamente integrada ao campo capitalista. Ainda assim, muitos países do continente tiveram partidos de inspiração marxista, socialista e comunista; no Chile, no início dos anos 1930, houve até um breve governo que se reivindicou socialista. Contudo, de fato, o socialismo esteve longe de ser uma alternativa política para a América Latina, até que a Revolução Cubana conseguiu modificar radicalmente esse quadro.
Em Cuba, a vitória do socialismo subverteu a própria teoria marxista, pois a revolução ocorreu num país que não era industrial, mas de economia primário-exportadora, e ela não foi liderada por um partido, comunista ou socialista, mas por um movimento guerrilheiro que, pela primeira vez na América Latina, conseguiu aliar reivindicações antiditatoriais, nacionais e socialistas. A luta contra a ditadura de Fulgencio Batista somou forças à luta contra os interesses das empresas norte-americanas, apoiadas pelo governo dos Estados Unidos, e as duas lutas convergiram rapidamente em direção a uma revolução que derrotou o capitalismo.
A revolução cubana atingiu seus objetivos graças a uma estratégia de luta armada centrada no campo, por meio da guerra de guerrilhas. Esse tipo de luta tinha antecedentes no continente; já estava presente nas guerras de independência, como é o caso da luta conduzida por Manuel Rodriguez, no Chile; ressurgiu em várias formas de luta rural, como as desenvolvidas por Pancho Villa e Zapata, na Revolução Mexicana, e pela Coluna Prestes, no Brasil, chegando aos combates de Farabundo Martí, em El Salvador, e de Sandino, na Nicarágua. Mesmo em Cuba, já havia o antecedente das guerras de independência, no final do século XIX, a última delas dirigida por José Martí.
O modelo estratégico cubano, vitorioso em janeiro de 1959, com pouco mais de dois anos de luta guerrilheira, abriu novas alternativas, mas também impôs outros desafios e dificuldades à esquerda latino-americana. Ainda assim, o sucesso dos revolucionários cubanos teve uma influência maior do que qualquer outro evento sobre a esquerda do continente, maior até do que a influência da revolução soviética na Europa.
O triunfo dos revolucionários cubanos coincidiu com o esgotamento do impulso de crescimento das economias do Cone Sul do continente e com o início de um novo ciclo de ditaduras na América Latina. A proposta cubana -- de ruptura com a ditadura de Batista, de realização simultânea das reformas agrária e urbana, de resistência ao imperialismo norte-americano e com a campanha nacional de alfabetização -- afirmava-se como uma alternativa no mesmo momento em que os golpes militares obrigavam a esquerda a confrontar-se com as limitações da via institucional-legal e a reconhecer as possibilidades reais da luta guerrilheira.
O modelo cubano, difundido pelo primeiro diário de Ernesto Che Guevara, A guerra de guerrilhas, e esquematicamente resumido por Régis Debray em Revolução na revolução, alastrou-se rapidamente pelo continente. Guerrilhas rurais surgiram na Venezuela, Peru e Guatemala, sem mencionar as tentativas frustradas na Nicarágua e na República Dominicana, além da já existente na Colômbia. Países com estruturas sociais centradas no campo, de economias primário-exportadoras, candidatavam-se a reproduzir o modelo estratégico cubano, colocando-se sob sua direção, ainda mais por ser esse um momento marcado pela impotência das outras forças de esquerda, fosse porque estivessem envolvidas em lutas parlamentares, sem possibilidades reais de vitória, ou porque estavam enredadas em polêmicas ideológicas, sem capacidade de ação prática, nem de conquista de bases sociais de apoio.
Um primeiro ciclo de lutas armadas na América Latina transcorreu, portanto, na década de 1960, sob o forte impacto da vitória socialista em Cuba e com o apoio direto do governo cubano, o qual passou a sofrer um duro processo de isolamento e de hostilidade pelos Estados Unidos e por grande parte dos governos do continente que, seguindo orientação de Washington, rompeu relações com Havana. O governo cubano apoiava as lutas armadas, fornecendo treinamento militar para os movimentos guerrilheiros, e bancava uma intensa campanha política e ideológica contra o imperialismo e os governos latino-americanos aliados a ele.
Esses novos movimentos guerrilheiros, contudo, já não contavam com alguns fatores que haviam beneficiado os revolucionários cubanos. Em primeiro lugar, o fator surpresa, de tão forte impacto em Cuba, pela inédita circunstância de um movimento antiditatorial transformar-se tão rapidamente em força socialista, já não voltaria a ocorrer. Ao contrário, amparados na doutrina de segurança nacional, os governos militares assumiram a dianteira e passaram a perseguir e colocar sob suspeita de subversão qualquer tipo de movimento com a mais tênue semelhança com o cubano, justificando a repressão que se abateu com persistência e cruel ferocidade ao conjunto da esquerda.
Em segundo lugar, as inúmeras divisões da esquerda, não só entre reformistas e revolucionários, como entre soviéticos, maoístas e castristas, contribuíram para enfraquecê-la e ao campo popular no seu conjunto, pois dificultaram a formação de uma frente ampla contra a ditadura, essa mesma frente que fora fundamental à vitória da Revolução Cubana.
A vitória dos revolucionários cubanos, ademais, parecia decretar a morte dos partidos políticos tradicionais e da sua estratégia eleitoral. Mais ainda, os sucessivos golpes militares e o apoio das “burguesias nacionais”, não só às ditaduras, como também à própria internacionalização das economias, enfraquecia ainda mais os partidos comunistas, que haviam apostado na sua posição nacionalista e anti-imperialista. Por outro lado, os argumentos maoístas contra a “coexistência pacífica” e a própria importação de empresas capitalistas – cujo maior exemplo foi a instalação da Fiat para produzir automóveis na URSS – pelo campo socialista introduziram novos fatores de enfraquecimento aos partidos mais importantes da esquerda latino-americana até aquele momento.
As revoluções chinesa e cubana apareciam como oponentes e como alternativas ao modelo soviético e à estratégia dos partidos comunistas. A China só apoiava os partidos que seguissem rigidamente suas orientações, impedindo o estabelecimento de alianças com os movimentos que se uniam em torno da Revolução Cubana. Assim, embora esses anos representassem um fortalecimento da esquerda, essas divisões dificultaram que ela se tornasse uma força hegemônica no continente.
O segundo ciclo da luta armada
Na América Latina, o primeiro ciclo de luta armada, centrado no Peru, na Guatemala e na Venezuela foi derrotado; contudo, posteriormente, a força acumulada nesses países tornaria possível a eclosão de um segundo ciclo. A morte de Che Guevara, em 1967 na Bolívia, e a derrota do projeto de constituição de um centro de coordenação dos movimentos guerrilheiros do continente marcou o final desse ciclo com um duro golpe na primeira ofensiva revolucionária após o triunfo da Revolução Cubana.
Guerrilhas rurais ressurgiram na Guatemala e na Nicarágua, nos anos 1970, e adquiriram força em El Salvador, marcando uma conflagração que se concentrou na América Central. Nessa fase, a estratégia dos focos guerrilheiros articulou-se com as frentes de luta voltadas para a insurreição rural e semirrural. Em outros termos, procurou-se adaptar a proposta cubana original com tipos de organização de massa no campo e com a participação mais intensa da população rural na luta guerrilheira.
O triunfo sandinista na Nicarágua, em 1979, constituiu ponto de inflexão na região, pois incentivou o segundo ciclo de guerrilhas na Guatemala e também uma grande expansão da luta armada em El Salvador. A proposta sandinista afirmava o modelo de democracia representativa, de economia mista e de política externa independente. Esse ciclo entrava em choque com a transformação da situação internacional. A Revolução Sandinista tornou-se o alvo privilegiado da contraofensiva do governo Ronald Reagan. Obrigada a concentrar esforços no enfrentamento militar com a oposição armada pelo governo dos EUA, a Revolução Sandinista pagou o preço de ter o desenvolvimento econômico bloqueado. Esse desgaste determinou o enfraquecimento do apoio da população ao governo sandinista e terminou levando-o à derrota, em 1990, marco internacional do fim do campo socialista.
Em seguida, as guerrilhas salvadorenhas e guatemaltecas decidiram entrar em negociações de reciclagem para o processo institucional, mas o apoio militar dos EUA aos governos que combatiam e a mudança da relação de forças internacional tornara impossível seu triunfo. Fechou-se, assim, a vertente centro-americana do segundo ciclo de lutas guerrilheiras na América Latina.
A segunda vertente da luta de guerrilhas deslocou-se para o Cone Sul do continente: para o Uruguai, o Brasil e a Argentina e, coerente com a estrutura social dessa região, esteve mais concentrada nas lutas urbanas. Com base na experiência cubana, mas procurando adaptá-la às condições de cada país, foi um ciclo que se desenvolveu entre os anos 1967 e 1977.
No Brasil, as principais organizações foram a Ação de Libertação Nacional (ALN) e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), além de dezenas de outras, que introduziram formas de ação inovadoras, como o sequestro de embaixadores estrangeiros para troca com militantes presos, assim como o desvio de aviões. Essas ações faziam parte da acumulação de forças urbanas visando a construção de frentes rurais de guerrilha.
O Movimento de Libertação Nacional, Tupamaros, foi o grande protagonista da luta de guerrilha urbana no Uruguai, iniciando-se ainda sob a vigência do regime parlamentar e estendendo-se ao período de militarização do poder. Desenvolveu ações de sequestro de agentes da contrainsurgência dos EUA, de grandes empresários e de personalidades do regime. Notabilizou-se pelas frequentes redistribuições de alimentos nos bairros populares. Em suma, sua estratégia centrada na guerrilha urbana, pela primeira vez no continente, num país com forte concentração da população na capital, conseguiu acumular força guerrilheira urbana de envergadura.
Na Argentina, as guerrilhas encontraram suas principais expressões nos Montoneros, na vertente peronista, e no Exército Revolucionário do Povo (ERP), na vertente marxista. Os Montoneros assumiram uma estratégia de guerrilha urbana, enquanto o ERP pretendia que a força acumulada nas cidades desembocasse na guerrilha rural, de modo similar ao que ocorreu no Vietnã.
Os movimentos guerrilheiros dos três países do Cone Sul tiveram de enfrentar, em graus distintos, as dificuldades de acumulação de força militar nos grandes centros urbanos, derivadas, especialmente, do impacto da ação coordenada das ditaduras militares de vários países, na chamada Operação Condor, e dos efeitos da doutrina de segurança nacional, que defendia a eliminação física dos insurgentes. O campo mostrou-se mais propício à construção de uma força militar numerosa, com a possibilidade, inclusive, de formar destacamentos regulares, como foi o caso do Exército Rebelde, na Revolução Cubana. Nos grandes centros urbanos, porém, esse processo encontrou barreiras que os movimentos guerrilheiros não conseguiram superar, sendo, finalmente, cercados, derrotados e destruídos.
As derrotas na América Central e no Cone Sul, concluindo o segundo ciclo de guerra de guerrilhas no continente, revelaram o esgotamento dessa estratégia. A mudança radical na relação de forças internacional, pendendo fortemente a favor dos EUA, e os seus reflexos diretos no fortalecimento das Forças Armadas dos países da América Latina, criaram dificuldades novas e quase insuperáveis, incentivando a mudança de estratégia da esquerda do campo militar para o campo da luta política institucional e de massas.
As guerrilhas colombianas, levadas a cabo pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e pelo Exército de Libertação Nacional (ELN), com uma trajetória diferenciada no tempo em relação aos outros movimentos guerrilheiros, sobrevivem em condições de duro assédio militar dos EUA. Acusada de envolvimento com o narcotráfico, atacada pelos militares colombianos e norte-americanos, além dos paramilitares, os dois movimentos guerrilheiros mantêm sua capacidade de ação em um quadro de militarização geral do país. Pelo marco internacional, as condições de triunfo de cada uma das duas frentes torna-se difícil, ao mesmo tempo em que, conforme as negociações têm se revelado um caminho sem saída, o futuro da esquerda na Colômbia permanece em aberto, enquanto nos outros países a via da luta de guerrilhas, como realizada nos períodos anteriores, deixou de existir.
Socialismo pela via institucional
A estratégia das frentes populares, aprovada nos anos 1930 pelos partidos comunistas, representou uma ruptura com a clássica linha insurrecional do movimento comunista internacional. Ela propunha uma estratégia de aliança com setores da burguesia industrial e uma evolução econômico-social por etapas. Segundo essa concepção, a luta pelo socialismo na periferia do capitalismo deveria passar anteriormente pela etapa nacional e antifeudal. Na mesma década, os governos das frentes populares antifascistas na Espanha, na França e no Chile eram expressões dessa estratégia, que se manteve como linha oficial dos partidos comunistas, sendo adotada, também, pelos partidos socialistas. Contudo, após as frentes populares antifascistas, até a vitória eleitoral de Salvador Allende e da Unidade Popular, em 1970, não houve novos governos que se propusessem a realizar a transição institucional nos moldes pregados pelos partidos comunistas.
O Chile, que já havia tido um governo de Frente Popular, acabou sendo o único país no mundo que viveu uma experiência de tentativa de transição institucional ao socialismo. Allende venceu após três tentativas anteriores, apoiado na coalizão dos partidos socialista e comunista. Ascendeu na contracorrente da esquerda dominante no continente que, na maioria dos países, apoiava a guerrilha. Ainda por cima, chegou ao poder quando vários países do Cone Sul já se encontravam sob ditaduras militares.
O programa do governo Allende não obedecia integralmente à linha predominante na esquerda internacional porque, embora se apoiasse na luta institucional, buscava a transição para o socialismo, sem passar por uma etapa intermediária de desenvolvimento do capitalismo. Ou seja, era um programa antimonopolista, que previa a nacionalização das 150 principais empresas privadas, dando início à hegemonia do planejamento estatal da economia, considerado o eixo central da construção do socialismo.
A escolha da via legal baseou-se na confiança decorrente da longa tradição democrática do país, que tivera uma evolução sem rupturas por quase um século e meio, com apenas dois momentos de regimes de força. Desde os anos 1930, o Chile vivia uma situação de estabilidade institucional e os partidos comunista e socialista já haviam participado, por meio da Central Sindical, do governo da Frente Popular.
A estratégia da esquerda chilena era a de avançar gradualmente até a socialização da economia. A vitória eleitoral de Allende, no entanto, fora pela estreita margem de 36% dos votos e teve de ser ratificada pelo Congresso, onde a Unidade Popular detinha representação ainda menor. Eleito com um programa radical, de ruptura com o capitalismo, Allende foi obrigado a enfrentar a maioria parlamentar, a Justiça, a burocracia estatal e a alta oficialidade das Forças Armadas, construídas pelo sistema político vigente que não previa a possibilidade de transição a nenhum outro tipo de sociedade. Rapidamente, os obstáculos políticos e institucionais começaram a bloquear o projeto de mudanças. Setores da classe média e da burguesia mobilizaram-se contra a carestia. Grandes empresários passaram a boicotar a produção. Embora os trabalhadores tivessem iniciado a ocupação das empresas, para forçá-las a produzir, depararam com a Justiça, que ordenava a desocupação. Para enfrentar esses obstáculos, o governo procurou cooptar até mesmo oficiais comprometidos com planos golpistas, como Augusto Pinochet que, como ministro do Exército, comandou a subversão militar.
A Unidade Popular dividiu-se diante do dilema entre radicalizar o processo ou ampliar a aliança política. Alguns defendiam as ações eficazes contra os golpistas e o aprofundamento do programa político, para o que contavam com o apoio do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR) e de uma parte do Partido Socialista. Outros defendiam dar um passo atrás, construindo alianças mais amplas com os setores da oposição de centro do Partido Democrata Cristão (PDC). Allende optou pela segunda alternativa, que não teve tempo de ser testada. O golpe militar de 11 de setembro de 1973 destruiu a primeira tentativa institucional de transição ao socialismo na América Latina.
A esquerda na era neoliberal
A passagem do período histórico de bipolaridade mundial para a da hegemonia unipolar norte-americana teve reflexos imediatos na América Latina, como região de influência imperial direta dos Estados Unidos. Nenhum setor da esquerda do continente deixou de ser afetado por essa transformação no plano internacional, que se deu paralelamente ao esgotamento do Estado de bem-estar e sua substituição pelo modelo neoliberal.
O golpe mais duro para a esquerda, especialmente para os partidos comunistas, veio com a perda da referência histórica e ideológica: a desagregação da URSS e do campo socialista. Em todo o mundo, ela foi obrigada a enfrentar a tese da irreversibilidade da vitória política e ideológica do capitalismo, diante do que teria sido um fracasso do socialismo em escala histórica. O argumento que havia jogado favoravelmente aos partidos comunistas – o de que o mundo avançaria irreversivelmente para o socialismo – adquiriu direção inversa: vários partidos comunistas desapareceram ou mudaram de nome.
Os partidos comunistas do continente foram fortemente golpeados pela derrota do governo de Allende no Chile e pela ação da repressão na luta contra as ditaduras militares. Perderam quadros e força política, com suas divisões internas. A crise do socialismo real gerou a tendência ao abandono do nome “comunista”, além de dificultar ainda mais o diálogo com as novas gerações. À medida que as forças socialdemocratas e nacionalistas aderiam ao neoliberalismo, contribuíam para isolar ainda mais os partidos comunistas, que deixaram de ser uma corrente com influência no continente.
Por outro lado, o desaparecimento do campo socialista, ao qual se havia integrado, atingiu duramente Cuba, que perdeu não somente o fornecimento de petróleo soviético, como o mercado fundamental para a exportação de seus principais produtos. O marco geral do planejamento socialista internacional a que estava integrada Cuba desapareceu bruscamente. Em um mundo dominado pelo liberalismo econômico e por regimes de direita, Cuba foi obrigada a sobreviver isolada. Como consequência, a economia do país entrou em grave retrocesso, desembocando em sua maior crise desde o início do processo revolucionário. A sobrevivência da revolução foi o resultado de uma resistência heroica do povo cubano, mas as medidas necessárias para isso – legalização do mercado do dólar, autorização para o exercício privado de profissões antes reservadas à esfera pública, extensão de investimentos mistos com capitais externos – introduziram níveis de desigualdade antes inexistentes.
Se a via cubana, como estratégia de luta pelo poder, já havia deixado de ser a referência dominante na esquerda latino-americana, com o desaparecimento da URSS e as dificuldades que o regime cubano passou a enfrentar, o próprio modelo de construção do socialismo e inclusive a própria viabilidade do socialismo começou a ser questionada na esquerda latino-americana.
A transição para o novo período no plano internacional, com a passagem à hegemonia neoliberal, teve também como consequência a adesão, primeiro de forças nacionalistas, depois de socialdemocratas, ao novo modelo. A implementação de políticas neoliberais ocorreu, simultaneamente, na Argentina e no México, exatamente os países que haviam tido as forças nacionalistas mais importantes do continente.
Na Argentina, os governos de Carlos Saúl Menem (1989-99) levaram o peronismo a ser o agente da implantação da modalidade mais radical de neoliberalismo na América Latina, com privatização de todo o patrimônio público da Argentina – inclusive da Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF) – e a decretação da paridade entre o dólar e o peso. Aliando-se ao governo de Menem, a estrutura sindical peronista abandonou o campo da esquerda, que ficou praticamente deserto. A ausência de resistências facilitou a realização do projeto neoliberal.
Assumindo em oposição a Menem, mas dentro do peronismo, Néstor Kirchner, apesar de adotar uma política de reestruturação da dívida externa – um tema caro à esquerda do continente – e outras medidas de resistência ao capital financeiro, não sairia do modelo neoliberal em seus fundamentos centrais.
A conversão das forças nacionalistas foi decisiva para a generalização da aplicação de modelos neoliberais, sendo acompanhada pelos partidos socialdemocratas. Tendo derrotado Pinochet, a aliança da Democracia Cristã com o Partido Socialista, no Chile, manteve, no essencial, o modelo econômico herdado. Depois de dois mandatos exercidos por presidentes democrata-cristãos, o socialista Ricardo Lagos chegou à presidência e da mesma forma manteve o modelo voltado essencialmente para a exportação – que atinge metade do PIB do país, numa economia que exibe um dos mais altos graus de “abertura” do mundo. Em seu governo, foi assinado um acordo bilateral com os EUA, pelo qual o Chile abriu mão de grande parte da sua soberania, consolidando a opção de livre-comércio dos socialistas.
Na Venezuela, Carlos Andrés Pérez, do Partido Ação Democrática, de orientação socialdemocrata, que já governara nos anos 1970, conseguiu eleger-se de novo, em 1989, para imediatamente decretar um duro pacote de ajustes neoliberal, o que gerou forte reação popular – conhecida como Caracaço –, mas, mesmo assim, manteve sua adesão ao neoliberalismo.
No Brasil, foi o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), o agente da implantação decidida e sistemática do modelo neoliberal.
Antineoliberalismo neoliberal e Venezuela
Posteriormente, o Brasil, com o Partido dos Trabalhadores (PT), e o Uruguai, com a Frente Ampla (FA), procuraram capitalizar o descontentamento com os governos neoliberais. Embora essas duas formações políticas sejam diferentes e apesar do esgotamento do modelo neoliberal, tanto Luiz Inácio Lula da Silva, quanto Tabaré Vázquez , com pequenos reajustes, limitaram-se a dar continuidade às políticas econômicas herdadas dos seus antecessores e adversários.
A luta contra o neoliberalismo e pela implantação de um modelo pós-neoliberal, que era o projeto característico da esquerda, sofreu duros golpes. A diferença dos governos eleitos com promessas antineoliberais, especialmente o de Lula, mas também o de Kirchner, na Argentina, ocorreu no plano da política externa e na adoção de algumas modalidades de políticas sociais que, no entanto, não ultrapassaram os marcos da prioridade do ajuste fiscal.
A política internacional do Brasil, tendo a Argentina como seu parceiro direto, mas contando também com a Venezuela e Cuba, entre outros governos do continente, além da China, África do Sul e Índia, em escala mundial, tem gerado espaços de integração e de aliança internacional, que contribuem para um mundo multipolar, retirando áreas da influência direta da hegemonia dos EUA.
O caso da Venezuela é singular. A velha toupeira da revolução ressurgiu, de forma surpreendente, de um movimento heterodoxo, surgido das Forças Armadas venezuelanas, até desenvolver rapidamente um potencial anticapitalista a partir da radicalização de suas posições anti-imperialistas. Os fracassos do governo socialdemocrata de Carlos Andrés Pérez – deposto por um impeachment e condenado à prisão –, e de uma nova tentativa de implantação do neoliberalismo pelo outro partido tradicional – o Comitê Político Eleitoral Independente (COPEI) Partido Social Cristão –, pelo também ex-presidente Rafael Caldera –, a crise e o esgotamento dos dois partidos tradicionais abriram espaço para que novas alternativas políticas ocupassem o vazio hegemônico aberto.
Hugo Chávez soube ocupá-lo, retomando o ideário nacionalista e de integração continental de Simón Bolívar e criticando duramente a corrupção das elites tradicionais venezuelanas. Vencedor, ele deu início a um processo de transformações, a princípio políticas, com plebiscito para uma nova Constituição, e, em seguida, econômicas e sociais, em meio a uma violenta reação das elites tradicionais, que tentaram derrubar seu governo por meio de locautes econômicos, greves da empresa petrolífera – a Petróleos de Venezuela S.A (PDVSA) – e golpe de Estado. Tendo superado esses obstáculos, Chávez avançou a partir da reapropriação da empresa de petróleo, da reunificação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) – para a qual seu governo teve papel essencial – e do aumento estrutural do preço do petróleo, para, contando com esses recursos, desenvolver os mais amplos e profundos programas sociais que o país já havia conhecido.
A esquerda na crise do neoliberalismo
A esquerda latino-americano ganhou contornos mais definidos nos primeiros anos do século 21. Esse perfil foi moldado na luta contra os governos neoliberais e na construção de alternativas de superação do modelo neoliberal.
O processo se inicia com a eleição de Hugo Chávez em 1998, na Venezuela, e avança com a eleição de Lula em 2002, no Brasil, de Néstor Kirchner em 2003, na Argentina, de Tabaré Vázquez em 2004, no Uruguai, até chegar às eleições de Evo Morales em 2005, na Bolívia, e, no ano seguinte, de Rafael Correa, no Equador. Em comum, tais governos colocaram em prática programas antineoliberais, definindo a vertente mais marcante da esquerda latino-americana no novo século. Comandados por partidos de esquerda – Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV), Partido dos Trabalhadores (PT), Frente para a Vitória, na Argentina, Frente Ampla, no Uruguai, Movimento ao Socialismo (MAS), na Bolívia, e Aliança País, no Equador – partilham as seguintes características: opção pelas políticas sociais em vez dos ajustes fiscais; prioridade aos processos de integração regional e dos intercâmbios sul-sul em detrimento dos tratados de livre comércio com os Estados Unidos; e o resgate do papel ativo do Estado na economia e no plano social, no lugar do predomínio do mercado e da concepção de Estado mínimo que marcam o neoliberalismo.
O receituário progressista permitiu que esse conjunto de nações diminuísse significativamente a desigualdade e a pobreza – características marcantes do continente – mesmo em meio à recessão mundial iniciada em 2008. A aprovação veio pelas urnas, com a reeleição dos presidentes de esquerda ou então com a eleição de seus indicados, estabelecendo uma continuidade de poder recorde em períodos democráticos na região.
Dentro do conjunto de governos progressistas há nuances. Pode-se dizer que existe um grupo mais moderado, antineoliberal, composto por Brasil, Argentina e Uruguai; e um grupo que pretende ser, além de antineoliberal, anticapitalista, composto por Venezuela, Bolívia e Equador.
Outros países do continente seguem dirigidos por partidos de esquerda ou do campo progressista. É o caso de Cuba, pelo Partido Comunista de Cuba, de El Salvador, pela Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional, e da Nicarágua, pela Frente Sandinista.
No México, o Partido da Revolução Democrática se dividiu, dando origem ao Morena (Movimento de Regeneração Nacional), sob a liderança de Andrés Manuel López Obrador. E, na Colômbia, o futuro da esquerda está nas negociações de paz entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), o que pode mudar significativamente o cenário político do país dos últimos cinquenta anos – em especial, se envolver também o Exército de Libertação Nacional (ELN). Dessa forma, a luta armada deixaria de existir no continente.
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