Introdução
Emir Sader
Ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1982, Gabriel García Márquez reivindicava para a América Latina o direito de construir – com a mesma originalidade com que foi consagrada sua extraordinária capacidade de criação na literatura, nas artes plásticas, no cinema e no teatro – a sua própria história.
Se esse reconhecimento se consolidou ao longo da segunda metade do século XX e segue assombrando o mundo, o direito de assumirmos o nosso próprio destino continua a ser questionado – fora e dentro do continente. Fomos objetos do mais brutal processo de colonização, com a chegada sangrenta do capitalismo ao continente, com as tentativas de extinção das nações e dos povos indígenas e com a escravidão – a apropriação do mundo pertencente aos indígenas e a retirada à força de milhões de negros do continente africano, para fazê-los produzir riquezas para a Europa, como escravos em outros mundos. Prenunciavam-se séculos de dominação violenta, de duras resistências, de exploração, de discriminação e de imposição de doutrinas e de religiões eurocêntricas.
Foram necessárias as gestas das guerras de independência, conduzidas por Simón Bolívar, Antonio José de Sucre, Toussaint L’Ouverture, José de San Martin, Bernardo O’ Higgins, José Artigas, José Martí, entre tantos outros, para que pudéssemos expulsar os colonizadores e dar início – com exceção, naquele momento, de Cuba e do Brasil – a uma vida republicana e sem escravidão – ainda que em mãos das oligarquias nativas.
Foi somente ao longo do século XX – o mais importante da nossa história até o momento –, depois de ter sido submetida a séculos de opressão, exploração e subalternidade, que a América Latina e o Caribe passaram a afirmar suas identidades como nenhuma outra região do mundo. O século teve início com a rebelião dos mineiros de Iquique, no norte do Chile, e com a Revolução Mexicana, de Pancho Villa e de Emiliano Zapata – a primeira grande rebelião vitoriosa no continente. A reforma universitária de Córdoba começava a mobilizar a juventude latino-americana, que logo protagonizaria algumas das mais belas páginas da nossa história, e a ela se seguiu a Coluna Prestes, do capitão do exército brasileiro e depois dirigente comunista Luiz Carlos Prestes, assim como a Revolução de 30 no Brasil, e os movimentos populares similares em Cuba, no Chile e em El Salvador, entre outros países. O novo século latino-americano anunciava-se, assim, como um século de revoluções e contra-revoluções.
O surgimento do movimento operário projetou os primeiros grandes líderes dos trabalhadores – entre eles Luis Emilio Recabarren, fundador do Partido Comunista do Chile e que também participou da fundação do Partido Comunista da Argentina –, ao mesmo tempo em que ocorreu a fundação de partidos socialistas e comunistas em dezenas de países do continente, sucedendo os movimentos anarquistas, junto às primeiras grandes interpretações históricas fundamentadas na dinâmica concreta das nossas sociedades. Sucederam-se dirigentes revolucionários disseminados por todo o continente: de Augusto César Sandino a Farabundo Martí, de Julio Antonio Mella a José Carlos Mariátegui – que soube como poucos captar as particularidades do caráter indígena de grande parte da nossa população e projetar suas dimensões revolucionárias.
A dominação imperial e oligárquica fez proliferar seus governantes lacaios –- de José Vicente Gómez na Venezuela a Gerardo Machado e Fulgencio Batista em Cuba, de Anastácio Somoza na Nicarágua a Rafael Trujillo na República Dominicana, entre tantos outros que nos legaram uma triste memória e sangrentos massacres.
A combinação das condições brutais de exploração dos nossos povos e das nossas nações forjou experiências políticas exemplares – como a Frente Popular no Chile, a revolução boliviana de 1952, os movimentos nacionalistas na Argentina, no Brasil e no México, entre outros países, o Bogotaço na Colômbia –, até que um movimento revolucionário trouxe para o nosso continente a atualidade das revoluções anticapitalistas e socialistas com o triunfo de Cuba, liderada por Fidel Castro, derrotando, pela primeira vez na história da humanidade, o até então imbatível império estadunidense.
Os movimentos guerrilheiros que sucederam a Revolução Cubana sacudiram os sistemas de dominação de dezenas de países – da Guatemala à Venezuela, do Peru à Colômbia, da Argentina ao Uruguai, do Brasil à República Dominicana, da Nicarágua a El Salvador e à Bolívia –, ameaçando o poder imperial e seus governos locais. As experiências de governo de Salvador Allende no Chile, de Juan Velasco Alvarado no Peru, dos sandinistas na Nicarágua e de Maurice Bishop em Granada foram momentos de exercício do poder pelos movimentos ascendentes, que tiveram de ser destruídos com todas as armas do império e das oligarquias locais para que não pudessem dar seqüência à construção de sociedades livres e solidárias.
Mas a velha toupeira latino-americana não se deixou reduzir à inércia e reapareceu, de forma surpreendente e vigorosa, em outros lugares, como subproduto da intensificação da superexploração, da opressão, do despojo, da discriminação e da humilhação de que nossos povos continuaram a ser vítimas. As ditaduras militares tiveram como resposta a reação de novos movimentos sociais, de novas forças sindicais, políticas e culturais, com os movimentos de mulheres e de povos e nações indígenas do continente assumindo o lugar de protagonistas nesses combates.
O fim das ditaduras trouxe para os países do continente não a democracia social, junto com a nova institucionalidade política, mas novas formas de hegemonia do grande capital – desta vez liderada pelo capital financeiro, sob sua modalidade especulativa –, conformadas nas políticas e no modelo neoliberal. A mercantilização das nossas sociedades assumiu proporções inusitadas – indo de empresas estatais à educação, da saúde à água –, não poupando nada e tratando de submeter tudo à sua lei do “tudo tem preço, tudo se vende, tudo se compra”, como se tivéssemos deixado de ser sociedades e nações para sermos transformados em shopping centers.
Apesar das enormes transformações que começaram a ser introduzidas no continente, os processos de industrialização substitutiva de importações logo se chocaram com a dependência de investimentos e empréstimos externos, e sobretudo não impediram que o nosso continente passasse a deter o privilégio de ser a região mais desigual e, portanto, mais injusta do mundo. Dentro dessa situação, o Brasil destaca-se como a economia mais desenvolvida e a sociedade mais injusta entre as mais injustas – fenômenos estreitamente associados ao modelo de acumulação de capital fundado na dependência, na democracia restringida, na superexploração do trabalho, na exportação e no consumo das altas esferas da sociedade.
A farra neoliberal esgotou-se logo – tendo como prenúncios e confirmação de seu curto fôlego as crises mexicana de 1994, brasileira de 1999 e argentina de 2001 –, permitindo a eleição de governos que pela primeira vez anunciavam propostas pós-neoliberais – no Equador, na Venezuela, no Brasil, na Argentina, no Uruguai e na Bolívia. Como se poderia esperar, pela intensificação das desigualdades, pela expropriação de direitos a que se dedicou o neoliberalismo, pela dilapidação do patrimônio público dos Estados latino-americanos, transformados em zeladores dos interesses do capital financeiro, a reação dos povos latino-americanos e caribenhos não tardou.
Assim, não surpreende que – depois de ter sido transformado em laboratório de experiências do neoliberalismo, nascido no Chile, com a ditadura militar de Augusto Pinochet, e na Bolívia, estendendo-se para toda a América Latina, depois de ter sido adotado por forças nacionalistas e socialdemocratas – o continente se transformasse no principal epicentro da luta contra o neoliberalismo no mundo. Mais de dez governos caíram sob o impacto das lutas dos movimentos sociais, que lhes tiraram qualquer legitimidade por terem tentado manter um modelo esgotado.
Nosso continente passou a ser um território de duras lutas entre o velho e o novo. O velho, em tentativas de manter e reproduzir, mesmo que sob formas maquiadas, um modelo esgotado, que trouxe concentração de renda e de riqueza, privilégio da especulação sobre a produção e a criação de postos de trabalho, expropriação de direitos sociais, enfraquecimento da capacidade soberana dos povos de decidir sobre seu destino, desfiguração das identidades culturais, entre tantos outros elementos regressivos. O novo, na afirmação da autodeterminação dos povos, na regulação pública das relações mercantis, na extensão dos direitos sociais, na defesa das identidades culturais.
Por isso, a América Latina e o Caribe se transformaram no palco histórico privilegiado deste começo de novo século, adquirindo uma centralidade mundial que pareciam ter perdido. Um continente que possui cerca de 10% da população mundial, com uma população basicamente jovem, apontando para uma participação cada vez maior no total de habitantes do mundo. Não por acaso aqui nasceu o Fórum Social Mundial, das mais importantes lutas sociais do mundo, da reorganização dos movimentos indígenas e camponeses, e possivelmente do mais rico pensamento social do mundo. Um continente que abarca cerca de 20 milhões de quilômetros quadrados, ocupando aproximadamente um sexto do território mundial. Território que abriga imensas riquezas naturais – biológicas, mineiras, marinhas e terrestres –, constituindo o espaço mais fértil do planeta no que se refere à biodiversidade, incluindo a região amazônica, região de incomparável exuberância biótica, complementada pela fecunda variedade de espécies em toda a extensão que vai da Colômbia ao México.
Além disso, abrigamos zonas de imensos recursos biogeográficos para a reprodução e o desenvolvimento da vida humana, com incontáveis planícies, vales e planaltos propícios ao assentamento humano em grande escala, com potencial para se transformar na região de maior desenvolvimento do mundo, com a ocupação equilibrada e fértil desses territórios por seus povos, de maneira consciente e autodeterminada.
A eleição do primeiro governo indígena do continente na Bolívia, em 2005, é o melhor prenúncio da luta emancipatória da América Latina e do Caribe no século XXI. Indígenas que assumem a sua condição e que votam em um indígena, que se reapropriam das riquezas naturais do país, refundam o Estado boliviano, descolonizando-o. O continente se acha, no novo século, dividido entre assinar acordos de livre-comércio com os Estados Unidos ou buscar seu próprio caminho, com processos de integração regional e de definição de um caminho original – soberano, justo, solidário.
O pensamento social latino-americano, com suas características críticas e pluralistas, foi protagonista essencial da história do continente ao longo de todo o século passado, especialmente na sua segunda metade. Novos desafios se colocam para esse pensamento diante da crise de hegemonia que enfrentam a América Latina e o Caribe – uma crise econômica, social, política, cultural, mas também intelectual. Novos tempos trazem novos desafios e exigem novas respostas.
O continente saiu do século XX com uma fisionomia totalmente transformada, tanto na economia quanto nas relações sociais, nos sistemas políticos e nas suas dimensões culturais. Depois de ter vivido transformações concentradas nas duas últimas décadas, o novo século aparece como um desafio não menos importante para a América Latina e o Caribe.
O projeto da Latinoamericana: enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe nasceu dessa necessidade de resgatar o continente, depois que políticas e concepções neoliberais rebaixaram nossos países a meros campos de investimento e de especulação. A bibliografia sobre a América Latina e o Caribe foi vítima da mesma degradação que sofreram nossas nações. À predominância do capital financeiro correspondeu a prioridade de concepções economicistas, com interesse especulativo, em detrimento da história, da cultura, das identidades, das relações e dos movimentos sociais – enfim, de tudo o que compõe a vida dos países latino-americanos e caribenhos.
O ano de 1967 foi emblemático nesse reconhecimento mundial do continente por dois acontecimentos, trágico um, glorioso o outro: a morte de Ernesto Che Guevara na Bolívia coincidiu com a publicação de Cem anos de solidão, de García Márquez. Passaram a correr os quatro cantos do mundo a imagem que seria a mais vista em todo o universo – a de Che olhando o funeral das vítimas de atentado terrorista no porto de Havana – e a maravilhosa narrativa de Márquez, para consolidar o peso e a transcendência latina.
A partir desse momento, a contra-ofensiva conservadora predominou. Os regimes de terror prepararam o campo para a implantação do modelo neoliberal – que teve na ditadura de Pinochet o protótipo da articulação entre repressão e superexploração. O continente foi vítima de uma regressão econômica, social e cultural sem precedentes, em um período relativamente curto, ao mesmo tempo em que as abordagens teóricas refletiam essa tendência.
O projeto da Latinoamericana se enlaça com a luta de resistência ao neoliberalismo e de resgate do continente com todas as suas dimensões históricas e culturais, políticas, econômicas e sociais. As centenas de autores e colaboradores aqui reunidos, todos incluídos na tradição do pensamento crítico e independente, refletem a criatividade, a diversidade e a riqueza das análises da América Latina e do Caribe.
Quando reivindicou para o nosso continente o direito de decidir sobre seu próprio destino, com o mesmo respeito e celebração que destinam à nossa capacidade singular de criação no plano da cultura em geral, García Márquez poderia ter incluído também o pensamento social latino-americano.
Nos marcos do pensamento crítico, das interpretações plurais, mas centradas nas raízes históricas específicas do nosso continente, desenvolveram-se teorias e interpretações diversas, tendo em comum a visão do mundo e de nós mesmos arraigada no Sul, na periferia do sistema, onde fomos colocados pela colonização e pela hegemonia imperial. A partir desse lugar, a enciclopédia se constituiu e olha para si mesma e para o mundo.
Seu projeto exigiu um esforço extraordinário de uma equipe pequena, cuja coordenação teria sido impossível sem o papel decisivo de Ivana Jinkings, como a alma e o motor permanente do projeto, e com a colaboração de um grupo de pesquisadores, redatores e editores que esteve à altura do desafio que nos propusemos. O resultado é esta primeira edição da Latinoamericana: enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe, que tem o objetivo de servir de obra de referência para os que pretendem pensar o continente a partir de sua inserção histórica específica no mundo do século XXI.