Étnica, Diversidade

Em virtude do isolamento geográfico, separada do chamado Velho Mundo pelos dois grandes oceanos, o Atlântico e o Pacífico, a América Latina foi ocupada pelos povos que a constituem de maneira diversa da formação da Europa e da Ásia. Assim, sua composição étnica é diferente e são diversas também as formas de interação e relacionamento entre seus povos. É impossível, portanto, tratar a questão étnica no continente sem dedicar atenção especial à questão do “indígena”. Primeiro, é preciso reconhecer como membros de uma mesma etnia tanto os que hoje se autoidentificam como “indígenas”, em vez de “índios”, como aqueles que admitem ser chamados de “nativos”, “aborígines” ou “originários”.

Com base em critérios como a cultura em sentido amplo, o local de nascimento dos ancestrais, o relacionamento com o meio, todos e cada um dos povos pré-colombianos podem ser classificados como distinto do branco, ou europeu, do negro, ou africano, ou dos amarelos, ou seja, dos asiáticos.

As etnias do Velho Mundo também compõem a diversidade latino-americana, mas passaram a integrá-la a partir da condição de colonizadores, no caso dos brancos; de mão de obra transplantada durante a fase colonial, no caso dos africanos; ou como mão de obra para o desenvolvimento de nichos específicos, na situação dos asiáticos. Os indígenas, não, pois já ocupavam o território quando os colonizadores chegaram. Sua cultura, apesar de perseguida e descaracterizada, de alguma forma persistiu, conferindo uma identidade estranha à lógica colonial, de resistência ou estranhamento.

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Cerimônia maia em Chichicastenango, na Guatemala (Guillén Pérez/Creative Commons)

Colonialidade do atual padrão de poder

Os principais produtos da experiência colonial relativos a este tema são:

1) A “racialização” das relações entre colonizadores e colonizados. A partir daí, “raça”, uma construção mental moderna, sem muito sentido na realidade anterior, gerada para naturalizar as relações sociais de dominação produzidas pela conquista, tornou-se a pedra basal do novo sistema de dominação, já que as formas de dominação precedentes, como entre sexos e idades, são redefinidas em torno da hegemonia de uma “raça”. Os termos originários e opostos desse novo sistema de dominação são, por um lado, os índios, termo colonial no qual estão inseridas as numerosas identidades históricas que habitam este continente desde antes da conquista ibérica e, por outro lado, os colonizadores, que a partir do século XVIII se autoidentificaram em relação aos índios, negros e mestiços, como brancos e europeus.

2) A configuração de um novo sistema de exploração que articula em uma única estrutura conjunta todas as formas históricas de controle do trabalho ou exploração (escravidão, servidão, pequena produção mercantil simples, reciprocidade, capital) para a produção de mercadorias para o mercado mundial, em torno da hegemonia do capital, o que outorga ao conjunto do novo sistema de exploração o seu caráter capitalista.

3) O eurocentrismo como novo modelo de produção e de controle do sujeito – imaginário, conhecimento, memória – e, principalmente, do conhecimento. As relações intersubjetivas que se processam no novo padrão de poder expressam a nova subjetividade, ou seja, os novos interesses sociais e as novas necessidades sociais geradas e desenvolvidas dentro da experiência da colonialidade do poder, especialmente das relações entre o novo sistema de dominação social ordenado em torno da ideia de “raça” e o novo sistema de exploração capitalista. Este é o contexto que permeia a novidade da experiência desta nova época de radicais mudanças histórico-sociais, de novas relações com o tempo e com o espaço, da troca do passado pelo futuro como a nova idade dourada para a realização dos desejos da espécie. Em suma, o processo que logo será nomeado como modernidade. A Europa como centro de controle do novo padrão de poder implicou que a elaboração intelectual sistemática do modo de produção e controle do conhecimento acontecesse, precisamente, nesta região, na Europa ocidental, que está sendo constituída no mesmo tempo e no mesmo movimento histórico. E a expansão mundial do colonialismo europeu conduz, também, à hegemonia mundial do eurocentrismo.

4) Finalmente, o estabelecimento de um novo sistema de controle da autoridade coletiva em torno da hegemonia do Estado ou Estado-Nação depois do século XVIII e de um sistema de estados cujas populações “racialmente” classificadas como “inferiores” são excluídas de sua criação e controle. Trata-se, assim, de um sistema privado de controle da autoridade coletiva, já que é um atributo exclusivo dos colonizadores, ou seja, europeus ou brancos.

Este padrão de poder, que começou a ser constituído há cinco séculos, é mundialmente hegemônico desde o século XVIII. Ainda que as lutas anticoloniais tenham conseguido desconcentrar relativamente o controle do poder, tirando dos colonizadores o controle local da autoridade coletiva e ainda que em grande parte do mundo ela tenha se tornado formalmente pública, admitindo a participação, em geral pró-forma, dos membros das “raças inferiores”, o controle central e mundial não deixou de ser eurocentrado. E mais, atualmente está em curso um processo de reconcentração do controle mundial ou global de tal autoridade, em benefício dos europeus. O termo “europeu” não é usado em seu sentido físico-geográfico, mas em relação à colonialidade do padrão de poder vigente. Isto é, como referência aos grupos sociais brancos ou europeus que possuem o controle do poder mundial onde seus respectivos países estiverem localizados, pois essa geografia do poder continua sendo um produto da colonialidade do poder. Em boa parte do atual mundo ex-colonial, principalmente na América e na Oceania, os brancos e o europeu conseguiram manter o controle local do poder em cada uma das suas dimensões básicas. Por essa razão, na América, as questões referentes ao debate do indígena só devem ser levantadas e discutidas em relação à colonialidade do padrão de poder vigente e dessa perspectiva, pois fora dela não teriam sentido. A questão do indígena na América e, particularmente, na América Latina é uma questão da colonialidade do padrão de poder vigente, do mesmo modo que as categorias índio, negro, mestiço e branco.

Consequentemente, não é complicado entender que nos contextos em que os brancos ou o europeu não possuem o controle imediato do poder local, o termo “indígena” tem um significado diferente e outras implicações. Assim, no sudeste da Ásia, na Índia, na Indonésia, nas Filipinas e nos países situados na antiga Indochina, os que são identificados como indígenas e terminam aceitando tal identificação, assim como aqueles que os identificam deste modo, não estão enganados; já que os primeiros não têm nenhuma referência com o europeu, o branco, em suma, com o colonialismo europeu. Lá, os grupos ou populações indígenas são aqueles que vivem nas zonas mais isoladas, mais pobres, geralmente na floresta ou na tundra, cujos principais recursos de vida, às vezes os únicos, são o bosque, a terra, os rios e seus respectivos habitantes, vegetais ou animais. Essas populações são oprimidas, discriminadas, despojadas de seus recursos, sobretudo agora em tempos de globalização, pelos outros grupos não brancos, nem europeus (sendo assim, tão nativos, aborígines ou originários como eles) que atualmente nesses países possuem o controle imediato do poder, ainda que, sem dúvida, associados à burguesia global, cuja hegemonia corresponde aos europeus e brancos. As reivindicações dos indígenas do sudeste asiático são, dessa forma, fundamentalmente diferentes dos seus homônimos latino-americanos. Seus movimentos de resistência são cada vez mais amplos e organizados e os conflitos regionais que eles produzem seguem na mesma direção. A atual virulência do chauvinismo fundamentalista do “comunalismo” é um dos seus sinais mais claros.

Colonialidade e questão nacional

Com a derrota do colonialismo, britânico primeiro e ibérico depois, instala-se na América um paradoxo histórico específico: estados independentes articulados a sociedades coloniais.

Certamente, no caso dos Estados Unidos, a nacionalidade do novo país correspondeu à da maioria da população que, apesar de sua origem e filiação europeia e branca, com sua vitória anticolonial outorga-se uma nova nacionalidade. A população negra, inicialmente a única submetida à colonialidade do novo poder dentro das sociedades coloniais britânico-americanas e impedida de ter qualquer tipo de participação na criação e no controle do novo Estado, era minoritária apesar da sua importância econômica, como também seria a população índia, que sobreviveu ao seu quase extermínio.

No caso dos países que formaram a América que se libertou do colonialismo britânico, seja na parte espanhola ou, mais tarde, na portuguesa, o processo foi totalmente diferente: os que conseguiram assumir finalmente o controle do processo estatal formaram, por um lado, uma minoria reduzida de origem europeia ou branca, frente à imensa maioria de índios, negros e seus correspondentes mestiços. Por outro lado, os índios eram em sua maioria escravos e os negros, salvo no Haiti, como resultado da primeira grande revolução social e nacional americana do período moderno, também eram escravos. Essas populações não só estavam legal e socialmente impedidas de terem alguma participação na criação e gestão do processo estatal, em sua condição de servos e escravos, mas também não tinham deixado de ser populações colonizadas por serem índios, negros e mestiços e, consequentemente, também não tinham opção de participar do processo estatal. Desta forma, a sociedade continuava colonial, embora o movimento histórico levasse à independência e um novo Estado fosse definido. Esse novo Estado era independente do poder colonial, mas, em sua condição de centro de controle do poder era uma fiel expressão da colonialidade do poder na sociedade.

A qual nação pertenciam os novos Estados que se constituíam? Aos europeus ou brancos que agora se chamavam mexicanos, peruanos ou brasileiros, isto é, que também se outorgavam uma nova identidade nacional? Estes eram, porém, minoritários em todos os lugares, talvez não tanto no Chile, onde a maioria da população índia não tinha sido colonizada e ocupava todo o território ao sul do BíoBío, tendo resistido ainda por mais um século antes de ser quase exterminada e colonizada, como anteriormente aconteceu na Argentina e no Uruguai, sob outras condições e com outros resultados. Ao contrário, a nacionalidade de tais Estados não tinha nada a ver com as populações colonizadas de índios, negros e mestiços. Essas populações, entretanto, eram a grande maioria dos que estavam enquadrados dentro das fronteiras dos novos Estados. A nacionalidade dos novos Estados não representava a identidade da grande maioria da população a eles submetida. A rigor, a nacionalidade era contrária a essa identidade.

Em ambas as dimensões fundamentais, o novo Estado independente na América Latina não surgia como um moderno Estado-Nação: não era nacional em relação à imensa maioria da população e não era democrático; não estava fundado na efetiva cidadania majoritária nem a representava. Era uma fiel expressão da colonialidade do poder.

A democracia e o “problema indígena”

Essa situação peculiar da nova sociedade ex-colonial não permaneceu de todo oculta para uma parcela dos novos donos do poder. Imediatamente após a consolidação da vitória anticolonial, na metade da segunda década do século XIX, já estavam em debate na área hispânica a questão do caráter do Estado e os problemas da cidadania. Particularmente para os liberais, eram muito visíveis, por serem imensas, as distâncias entre seus modelos políticos que procediam, na maioria das vezes, do discurso da revolução liberal na Europa ocidental, e as condições concretas para sua implantação na América Latina. E a população índia logo seria percebida como um problema para a implantação do Estado-Nação moderno, para a modernização da sociedade e da cultura. Assim, no debate político latino-americano instala-se, desde o início, o que se denominou por quase dois séculos de “o problema indígena”.

Por que os índios eram um problema no debate sobre a implantação do moderno Estado-Nação nessas novas repúblicas? Se não fosse a colonialidade do poder nas novas repúblicas, semelhante problema não teria sentido. Ao contrário, dessa perspectiva, os índios não eram somente servos, assim como os negros eram escravos. Eram, antes de tudo, “raças inferiores”. E a ideia de “raça” tinha sido imposta não somente como parte da materialidade das relações sociais, o que consequentemente poderia ser modificado, mas como parte da materialidade das próprias pessoas, como era, precisamente, o caso dos índios, negros e brancos. Assim, nesse nível, não havia mudanças possíveis. E este era, exatamente, o “problema indígena”: não era suficiente tirar dos índios o peso das formas não salariais de divisão do trabalho, como a servidão, para torná-los iguais aos demais, como tinha sido possível na Europa no decorrer das revoluções liberais. Também não bastava eliminar as marcas do colonialismo tradicional, como o “tributo indígena”, para descolonizar as relações de dominação, como tinha acontecido com os colonialismos anteriores ao serem derrotados ou desintegrados. E, além de tudo, os setores hegemônicos dentro do grupo dominante opunham-se com todas as suas forças à eliminação do tributo e, sobretudo, da servidão. Quem trabalharia para os donos do poder? E o argumento “racial” era precisamente o instrumento, explícito ou subentendido, para a defesa dos interesses sociais dos dominadores.

O “problema indígena” transformou-se, então, em um autêntico incômodo político e teórico na América Latina. A fim de ser solucionado, já que por sua natureza a mudança em uma de suas dimensões implicava mudança em cada uma das outras, precisava simultaneamente de:

1) descolonizar as relações políticas dentro do Estado;

2) eliminar radicalmente as condições de exploração e o fim da servidão;

3) como condição e ponto de partida, descolonizar as relações de dominação social por meio da expurgação de “raça” como a forma universal e básica de classificação social.

A solução efetiva para o “problema indígena” implicava, e implica, a subversão e a desintegração completa do padrão de poder. E dadas as relações das forças sociais e políticas do período, não era consequentemente factível, nem sequer parcialmente, a solução real e definitiva do problema. Deste modo, o “problema indígena” constituiu-se em um nó histórico específico, não desfeito até hoje, que ata o movimento histórico da América Latina: o desencontro entre nação, identidade e democracia.

Por outro lado, a independência política frente à Espanha ou a Portugal, sob a direção e o controle dos brancos ou europeus, não significou a independência dessas sociedades da hegemonia do eurocentrismo. Em muitos sentidos, ao contrário, levou ao aprofundamento dessa hegemonia, precisamente porque esse eurocentrismo do padrão de poder implicou que, enquanto na Europa ocidental a modernidade foi impregnando não só o pensamento como também as práticas sociais, na América Latina a modernidade foi encurralada nos âmbitos ideológicos da subjetividade, sobretudo na ideologia do “progresso”, e essa ideologia limitou-se a grupos minoritários entre os setores dominantes e entre os primeiros e reduzidos grupos da classe média intelectual.

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Índios Aymaras nas Ilhas Uros, no Lago Titicaca, no Peru (Andrew Miller/Creative Commons)

Democracia e modernidade sem revolução

Este é o contexto que permite explicar e dar sentido a um fenômeno político peculiar, talvez, da América Latina: a ideia de que é possível alcançar ou estabelecer a modernidade e a democracia nesses países sem ter de passar por nenhuma revolução de poder ou, pelo menos, por mudanças radicais nos principais âmbitos do poder. Desse modo, a modernidade e a democracia tiveram e ainda têm o lugar e o papel de uma miragem política: já que existem em outros espaços, a retina liberal pode copiar as suas imagens no horizonte ideológico do deserto território político e social latino-americano. Tal miragem política ainda fascina a principal parte do quadro político latino-americano, do qual também não estão livres os que imaginam a revolução latino-americana como reprodução da experiência eurocêntrica.

No debate político latino-americano, há quase dois séculos desde a derrota do colonialismo espanhol, essa ideologia implicou a adoção do paradigma da democracia liberal em relação ao Estado e as relações entre Estado e sociedade, mas separado, inclusive oposto, na verdade, do paradigma da sociedade burguesa. Nesta, que produziu a democracia liberal, as relações de poder social transformaram-se não apenas na expressão do capital e da centralidade da Europa no heterogêneo universo capitalista, mas também – e, sobretudo, para as necessidades da democracia liberal – na expressão de uma relativamente ampla, ainda que não exatamente democrática, distribuição dos recursos de produção, rendas, mercado interno, instituições de organização e representação. Nos países centrais regidos pela democracia liberal, esse é o resultado de um século de revoluções liberais burguesas ou de processos equivalentes. Tais processos, contudo, não só não aconteceram como não poderiam acontecer na América Latina, pois não se trata, obviamente, apenas da manutenção, na região, da escravidão, da servidão, da limitada produção industrial etc., produzida pela distribuição de poder no universo capitalista e pelo processo de eurocentralização do seu controle. Trata-se, sobretudo, de que a cidadania liberal foi, e ainda é, uma aspiração impossível para a imensa maioria da população, formada por “raças inferiores”, isto é, por não iguais aos demais.

Nesse sentido, o liberalismo na América Latina não deixou de propor a imagem de um “Estado de Direito”, constituído por um universo de instituições políticas e administrativas, planejadas quase sempre com especial apego às melhores esperanças do liberalismo, mas sustentadas quase exclusivamente pelo discurso constitucional, que não por acaso possui nos nossos países uma história tão copiosa, mas sem mudanças correspondentes ou prévias nas relações de poder social. Parafraseando o próprio discurso liberal, poderia ser dito que essa proposta implicou quase sempre, na prática, em um “Estado de Direito” articulado com uma “Sociedade de Direita”. Sendo assim, quando funciona não pode durar, nunca pôde durar ou simplesmente não conseguiu funcionar.

Em relação ao lugar da população índia em um possível futuro democrático, a única mudança importante que foi admitida tardiamente no século XIX e que foi, com interrupções, colocada em prática no século XX, é a europeização da subjetividade dos índios como um modo para a sua modernização. Existe, neste debate, um fenômeno ainda não estudado. Não há dúvida de que a população índia era demograficamente majoritária nas repúblicas mais importantes ou, pelo menos, mais extensas da área hispânica, e era culturalmente predominante entre os colonizados no México, na América Central e nos Andes. Entretanto, a população negra, ainda que obviamente menor, era importante na costa norte do Pacífico e, sobretudo, no Caribe, para não mencionar a área portuguesa onde constituía a grande maioria. E curiosamente, a população branca era a menos numerosa em todas essas repúblicas. A demografia, portanto, não é a instância a que se deve recorrer para explicar porque a população negra não aparece no debate político sobre o Estado, isso sem contar o problema de abolir ou manter a escravidão. Depois da revolução haitiana, os dominantes de todas as Américas – menos os europeus que estavam em pleno curso de colonização dos negros da África – procuraram e conseguiram tornar sociológica e politicamente invisíveis os negros e os incluíram somente no debate sobre a escravidão. O fato é que, de qualquer modo, nos debates sobre o que fazer politicamente com as populações não brancas ou não europeias na área hispânica, os negros foram, durante todo o século XIX, virtualmente invisíveis. Por essa razão, o “problema negro” não aconteceu como o “problema indígena”.

O movimento intelectual chamado “indigenista” na América Latina, com ramificações nas artes visuais e na literatura foi, sem dúvida, a mais acabada encarnação dessa proposta. A colonialidade de semelhante ideia é, entretanto, patente, pois se fundamenta na impossibilidade de admitir a possibilidade de uma descolonização das relações entre o índio e o europeu, uma vez que, por definição, o índio não é somente inferior, mas também primitivo (arcaico, dizem agora), ou seja, duplamente “inferior”, já que é anterior ao europeu em uma suposta linha de evolução histórica da espécie, concebida de acordo com o passar do tempo e que se tornou inerente à perspectiva eurocêntrica do conhecimento. Por não ser possível “embranquecer” a todos em termos “raciais”, apesar da intensa prática de mestiçagem que se estendeu por toda a história das “raças” na América Latina, concluiu-se que, em todo caso, era viável e tinha sentido “europeizá-los” subjetivamente, culturalmente se preferirem.

As políticas dos dominantes para enfrentar esse problema na América foram principalmente duas, ainda que praticadas com diferentes variantes entre países e entre momentos históricos. Por um lado, o virtual extermínio dos índios e a conquista dos seus territórios em todos os países nos quais os dominadores, tanto liberais quanto conservadores, logo concluíram que nenhuma “desindianização” como forma de europeização seria viável. Assim aconteceu nos Estados Unidos, na Argentina, no Uruguai e no Chile. Por outro lado, a assimilação cultural e política no México, na América Central e nos Andes.

Por que a diferença? Principalmente porque nesses últimos países a população índia era e é não somente majoritária, mas, sobretudo, diferentemente dos outros países, socialmente disciplinada no trabalho organizado dentro de um sistema de dominação e exploração. Esses países, como o México e o Peru, foram as principais sedes do império colonial espanhol, enquanto a Argentina, o Chile e o Uruguai ficaram à margem antes da metade do século XVIII. Dadas essas condições, a política dos brancos em relação aos índios prolongou, com modificações e adaptações, a política do período colonial, de assimilação e discriminação cultural. Com a formação republicana, essa assimilação começou a ser a dimensão enfatizada, sobretudo a partir do final do século XIX e durante todo o século XX.

A assimilação cultural é a política que o Estado procurou sustentar, por meio do sistema institucionalizado de educação pública. A estratégia, portanto, consistia e consiste em uma assimilação dos índios à cultura dos dominadores, que também costuma ser mencionada como “cultura nacional”, especialmente por meio da educação escolar formal, mas também mediante o trabalho de instituições religiosas e militares. Por essa razão, em todos esses países o sistema educacional passou a ocupar um lugar central nas relações entre índio e não índio. Houve mitificação e mistificação de ambos os lados, e não há dúvida que em países como o Peru ou o México (neste país especialmente depois da Revolução Mexicana), mais do que em outros, foi um mecanismo de “desindianização” subjetiva, cultural se preferirem, de uma parte significativa da população índia. Um elemento importante dessa estratégia também foi a apropriação das conquistas culturais das sociedades dominadas, destruídas e colonizadas, transmitido como orgulho de ser inca, asteca, maia etc., ou seja, o índio anterior à colonização.

Essa estratégia, porém, nunca deixou de alternar-se e combinar-se com a política de discriminação dos índios e de alienação do índio. Desse modo, a “desindianização” não pôde abranger a maioria da população índia e esta não pôde ser incorporada, a não ser de maneira parcial, precária e formal, no processo de nacionalização da sociedade, da cultura e do Estado. A colonialidade do poder continua implicando que toda ou parte das populações não brancas não podem consolidar-se em sua cidadania sem ocasionar profundos e graves conflitos sociais. Em certos países como o Brasil, o Equador e a Guatemala, ou em certas zonas da Bolívia, do México e do Peru, esta é, exatamente, a raiz do que para o grupo dominante talvez pareça apenas um novo “problema indígena”, mas que na verdade inaugurou um novo período histórico para o padrão de poder no qual está implicado.

Trajetória atual do movimento indígena

Inicialmente, é pertinente notar que o atual movimento indígena é o sinal mais claro de que a colonialidade do poder está enfrentando a maior crise desde o seu surgimento, há 500 anos.

As populações sobreviventes das derrotadas sociedades e identidades históricas anteriores não aceitaram imediatamente intitular-se índias. Algumas delas resistiram a admitir a derrota e a desintegração das suas sociedades e identidades históricas durante meio século, como uma parcela dos incas de Cuzco. Ainda nos dias atuais, muitos grupos reivindicam ou tornam a reivindicar os nomes particulares de suas antigas identidades históricas (atualmente, de maneira colonial, admitidas apenas como etnicidades). E é provável que a partir de agora vários outros nomes retornem à nomenclatura dessas populações e, inclusive, que a hoje tão propagada “tentação identitária” faça com que sejam reinventadas algumas identidades para que esses nomes sejam nelas colocados.

Entretanto, a consolidação, o desenvolvimento e a expansão mundial da colonialidade do poder provaram ser processos de excepcional vitalidade histórica. Alguns dos nomes e símbolos de suas memórias históricas puderam sobreviver, mas todas aquelas sociedades e identidades, ou peoplehoods , terminaram desintegradas, e suas populações sobreviventes e descendentes também terminaram admitindo essa derrota e a nova identidade colonial comum, a qual já não implicava nenhum peoplehood . Trezentos anos depois da conquista, ao iniciar-se o perío­do republicano, todas elas eram índias. E durante os dois séculos seguintes, essa identidade colonial se manteve. Para uma parte majoritária dessas populações essa identidade terminou sendo admitida como “natural”.

Sendo assim, por que agora o repúdio a essa denominação e a reivindicação do nome “indígena”, que se estendeu e impôs virtualmente entre essas populações em toda a América Latina num prazo relativamente curto de duas a três décadas? E mais: por que os não índios, mestiços em primeiro lugar, mas também os brancos e os europeus terminaram admitindo essa reivindicação?

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Guerreiro inca, performance de um ritual inca em Cusco, no Peru (Geraint Rowland/Creative Commons)

Entre duas crises

A princípio, o atual movimento indígena foi incubando-se na mesma via de esgotamento que a pesquisa social latino-americana denominou “a crise do Estado oligárquico” e que foi constituída e surgiu no mesmo processo de neoliberalização-globalização da sociedade latino-americana.

A esse respeito é preciso considerar que, sob o Estado oligárquico, a imensa maioria da população chamada índia na América Latina era rural, ainda que tanto na cidade como no campo o regime de dominação que a vitimava fosse senhorial. Isto é, a condição social da maioria dos índios era a servidão: doméstica na cidade e agrário-doméstica no campo.

A quase universal servidão dos índios foi consequência do despojo contínuo de suas terras a favor dos não índios, desde o início da era republicana. Durante o período colonial, junto com a eliminação formal do sistema de encomienda e como um modo de controle das populações índias, a Coroa determinou que fossem distribuídas a essas populações terras para semear e habitar, como zonas de propriedade e residência índias. A extensão dessas terras foi diferente de acordo com as zonas, mas não foi pouca em nenhum caso. No Peru foram muito grandes e na Bolívia ainda maiores. Após a derrota dos espanhóis, Bolívar decretou em todo vice-reinado do Peru que as terras das comunidades indígenas fossem privatizadas e mercantilizadas. Entretanto, durante a maior parte do século XIX, as comunidades indígenas das repúblicas andinas mantiveram o controle da maior parte das terras que lhes foram adjudicadas durante o vice-reinado. A pilhagem recomeçou no final desse século, como uma das consequências da apropriação de minas, plantações e fazendas por parte do capital norte-americano. E acentuou-se e expandiu-se nas três primeiras décadas do século XX, com a repressão e a derrota sangrenta à resistência dos camponeses indígenas, forçando a maioria das populações índias a submeter-se à servidão. O que se denominou Estado oligárquico, baseado nas relações de dominação inerentes à colonialidade do poder, foi fortalecido nesses processos. No México, a resistência dos camponeses indígenas convergiu com a disputa pelo controle do poder dentro da própria burguesia e da classe média, dando lugar à chamada Revolução Mexicana.

Este é o contexto histórico que ajuda a entender porque a crise e o término do Estado oligárquico nos países com maioria de população índia tiveram implicações decisivas na situação social e política desta população e estiveram na origem da crise e da mudança de sua identidade.

Efetivamente, essa crise terminou junto com o fim do predomínio das relações servis e semisservis e com a desintegração das estruturas da autoridade local e estatal ligadas ao poder da burguesia senhorial e dos terra-tenentes senhoriais, seja por meio das revoluções sociais como no México (1910 e 1927) ou na Bolívia (1952), nas quais a participação organizada dos camponeses, índios na sua maioria, foi decisiva; seja porque, por exemplo no Peru, entre 1957 e 1969, devido à maciça pressão organizada dos camponeses, majoritariamente índios, foram adotadas medidas de redistribuição de terras para semear, chamadas reformas agrárias; seja porque os próprios terra-tenentes senhoriais foram forçados, como no Equador (1969-70), a mudar o regime de trabalho servil pelo trabalho assalariado. O resultado foi, em todos os lugares, a expansão do trabalho assalariado e das atividades de caráter mercantil.

Tais processos estiveram associados, como é conhecido, com a abrupta urbanização da sociedade latino-americana em seu conjunto, a relativa expansão da produção industrial e de seu mercado interno, a mudança da estrutura social urbana com a formação de novos grupos da burguesia industrial-urbana, da nova classe média de profissionais e intelectuais e de uma nova população industrial e comercial assalariada.

Tudo isso rapidamente se expressou na relativa modernização do Estado, que viu as suas bases sociais não só ampliadas, mas, sobretudo, profundamente transformadas com a parcial e precária, mas não menos real e decisiva, incorporação de novos contingentes de origem camponesa e índia no âmbito da cidadania, mesmo ainda enredados nas redes do clientelismo e de formas mais de intermediação política do que de representação direta.

Esses processos foram mais amplos, maciços e globais em alguns países do que em outros. Para os de população indígena majoritária, essas diferenças provaram ser decisivas. Sem dúvida foi no Peru que o processo aconteceu mais cedo, mais rápido e foi mais abrangente. Isso implicou a “desindianização” da identidade e da autoidentificação da maior parte da população índia, seu translado para as cidades, para atividades vinculadas ao salário e ao mercado, inclusive no âmbito rural, muito mais do que as populações camponesas do período precedente. Esse processo específico de “desindianização” foi denominado cholificação .

A nova população chola foi a principal protagonista e agente do processo de mudança no Peru posterior à Segunda Guerra Mundial. Ela formou o que até o fim dos anos 1960 foi o mais amplo e poderoso movimento camponês da América Latina, que levou finalmente à desintegração do poder senhorial no campo, cuja culminação foi a reforma agrária na ditadura militar de Juan Velasco Alvarado em 1969, feita, a rigor, para bloquear o desenvolvimento do movimento camponês dos cholos com todas as consequências negativas para a sociedade rural e para a produção agropecuária. Foi essa população que formou o novo contingente de assalariados industriais e comerciais urbanos, organizaram um novo movimento sindical, cuja gravitação no debate político nacional foi muito importante até a crise da metade da década de 1970, e conquistaram decisões legislativas que lhes permitiram negociar com algumas vantagens a venda de sua força de trabalho. Ela ocupou o aparato estatal de educação em todos os níveis, obrigando o Estado a fazer uma rápida ampliação; ocupou as universidades estatais, formando um novo e amplo movimento de estudantes universitários com consequências profundas para o país, começando pelo repentino aumento da nova classe média que era recrutada precisamente nessa população. E, principalmente, ocupou as barriadas peruanas, que chegaram a abrigar mais de 70% da população urbana do Peru e que significaram a principal experiência social, cultural e simbólica do último meio século peruano.

A militarização do Estado depois das experiências guerrilheiras de 1965-67 e seu enfrentamento com as camadas mais jovens dessa nova população chola , especialmente nas universidades e entre os intelectuais jovens, bloqueou e distorceu o desenvolvimento social, cultural e político dessas populações, sobretudo na segunda fase da ditadura militar (1968-80); ajudou a exacerbar as graves distorções que as versões stalinistas e maoístas, de materialismo histórico já eurocentrado, introduziam nas universidades e entre a jovem inteligência chola no debate sobre o conhecimento do processo perua­no e, por fim, combinaram-se com elas, até levar, infelizmente para todos, ao turbulento e sangrento intercâmbio terrorista entre o Estado e o grupo maoísta Sendero Luminoso, entre 1980 e 2000, cujas principais vítimas foram as próprias populações camponesas indígenas, mesmo as não totalmente cholificadas.

Durante meio século, a população que se desindianizou apropriou-se e tornou positiva a derrogatória identificação de chola e/ou mestiça, que não fez mais do que aumentar em proporções a presença e influência em todos os âmbitos da sociedade peruana, incluindo certamente o mundo rural onde vivem, minoritariamente, os que ainda são identificados como índios, ainda que não seja certo que eles já aceitem essa identificação. E é improvável que a população chola volte a identificar-se como índia.

Esta é, precisamente, a resposta à pergunta que agora aparece constantemente no debate peruano e latino-americano sobre o atual movimento indígena. Por que, sendo o Peru o país em que a população índia era mais numerosa do que nos demais países andinos, não existe agora lá nenhum movimento indígena importante, enquanto no Equador e, sobretudo, na Bolívia eles são tão presentes e influentes?

Neoliberalização e movimento indígena

Enlaçamos neoliberalização e globalização para denominar o processo que tanto a América Latina como os demais continentes sofreram a partir da crise da metade da década de 1970. Há um relativo consenso no debate atual, apesar da existência de milhares de textos sobre o enfraquecimento e a desnacionalização do Estado, a polarização social e a desdemocratização da sociedade. Mas o que tais processos implicam ou implicaram para a questão do movimento indígena apenas começa a surgir no debate latino-americano. Consequentemente, seria pertinente levantar algumas das questões mais significativas.

É sugerido, em primeiro lugar, que a brusca desintegração da estrutura produtiva de desenvolvimento que estava em andamento nesses países produziu não somente o desemprego, o aumento do subemprego e a rápida polarização social, mas também um processo que pode ser reconhecido como uma reclassificação social que afeta todos os setores sociais e, sobretudo, os trabalhadores. Esse processo está associado a uma crise de identidade social em todos os setores, mas, em primeiro lugar, naqueles cuja identidade era ambígua e vacilante, empurrando-os a procurar com urgência outras e novas identidades. Isso é o que explica que, por exemplo, as identidades sociais expressas em termos de classes sociais cederam seu lugar em todos esses países para identidades chamadas étnicas, regionais, locais ou informais e pobres.

Em primeiro lugar, essa crise e essa mudança de identidade ocorreram entre os trabalhadores rurais índios dos países andinos e centro-americanos menos urbanizados, que tinham sido identificados e admitiam ser, em termos de classe, camponeses, e que terminaram reidentificando-se como indígenas. Já no Peru, a supressão da identidade de camponeses ou não camponeses está em jogo, ou melhor, é indecisa e lenta. Atualmente, por exemplo, a mais importante organização comunal que enfrenta as companhias mineradoras chama-se Coordenação Nacional de Comunidades Afetadas pela Mineração (Conacami) e não apela para a ideia de comunidade indígena no próprio país onde ela foi criada.

Em segundo lugar, junto com esses problemas, a chamada globalização também instaurou um novo universo de comunicação, com milhares de recursos e meios tecnológicos que vão desde o clássico rádio-transistor, que foi o primeiro elemento a romper a localização isolada dos camponeses e índios, até os correios eletrônicos (e-mails) que existem em lugares antes inimagináveis, ou a telefonia celular presente em localidades que de outro modo estariam isoladas. Nesse sentido, as populações rurais ou rural/urbanas no processo de crise de identidade social e, sobretudo, de reidentificação étnica, encontraram na rede virtual um modo de reconhecer-se e identificar-se com seus semelhantes no sistema “racial” de discriminação e de dominação, assim como era pertinente identificar-se com todos aqueles afetados por um mesmo aparelho de exploração, o capital, no período imediatamente anterior.

As propostas de reconhecer as novas realidades virtuais que essas redes de comunicação produzem como “desterritorialização” ou “deslocalização”, no caso específico dos indígenas, devem ser vistas com muita cautela, porque a geografia, o local e o comunal, o vizindário e a moradia têm uma gravitação muito diferente das dispersas, por vezes itinerantes ou migratórias, populações urbanas das sociedades industriais.

Em terceiro lugar, o enfraquecimento do Estado, sua visível desnacionalização e, inclusive, sua reprivatização em muitos países da região, processos que interromperam as conquistas das populações de origem ou identidade índia, tais como educação e saúde pública, serviços urbanos, produção e proteção do emprego assalariado, e que deixaram grandes setores dos dominados e explorados da América Latina sem referência para as suas reivindicações e necessidades, agora maiores e mais urgentes do que nos últimos duzentos anos. Em vários desses países, o Estado atuou, sobretudo na década de 1990, contra a maioria da população, de um modo análogo a sua ação imediatamente depois da derrota dos impérios coloniais ibéricos. Por isso, depois de mais de três décadas desses processos, numerosos setores das camadas populares da América Latina e, entre eles, os índios, aprenderam ou estão aprendendo rapidamente que têm de encontrar maneiras não só de não viver à custa do Estado, mas de viver sem ou contra o Estado.

E é aqui, neste âmbito específico, que provavelmente encontra-se o principal núcleo das determinações da reidentificação em andamento: de camponeses e de índios a indígenas. A isso refere-se, sobretudo, a direção que foi tomando, desde o início da década de 1980, o tratamento das questões da autoridade coletiva ou pública pelas populações índias que iniciaram ações de organização e de mobilização nos países andino-amazônicos e que ganharam a atenção mundial depois de Chiapas.

Primeiro, com a organização da Coordenação de Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA), que se estabeleceu em 1984, integrada por organizações das mais importantes populações da bacia amazônica, do Peru, Bolívia, Brasil, Equador, Colômbia e Venezuela, e pouco depois com a organização da União Nacional de Comunidades Aimarás (UNCA), em Puno, no altiplano peruano que margeia o lago Titicaca. Nessa mesma década, surgiu como um dos aspectos de maior significado a reorganização e revitalização da comunidade, assim como a estrutura específica de autoridade coletiva e pública dessas populações. Nos congressos que decidiram a formação da COICA e da UNCA, o problema da ausência e da hostilidade do Estado foi explicitamente debatido e foi decidido, por essa razão, a necessidade e a urgência da autoridade comunal. A questão da autonomia territorial e política, que era o slogan vazio dos seguidores da Internacional stalinista no final dos anos 1920 e início da década de 1930 reaparecia agora, colocado de maneira autônoma, na mesa de debates das comunidades indígenas.

Começou desta forma o período de tensões e pressões entre essas populações e o Estado, que se ampliou e intensificou até os dias atuais. Provavelmente foi também o momento do deslocamento da identidade do índio para o indígena. É incerto que tenha acontecido entre os índios um debate coletivo e sistemático sobre a colonialidade dos termos índio, negro, branco, mestiço, ainda que alguns cientistas sociais no México e no Peru já estivessem discutindo essas questões. O mais provável é que se tenha partido das decisões de reorganização e de revitalização da comunidade indígena frente ao Estado, para ir abandonando a identificação de índio e assumindo a de indígena.

A comunidade indígena foi uma criação das autoridades coloniais no século XVI. Durante o período colonial, foi sede e refúgio das populações índias não imediatamente servilizadas. Assim, quando começou a pilhagem republicana das suas terras e a submissão dos índios à servidão, a comunidade indígena foi reclamada e proclamada como a instituição emblemática da luta contra a servidão e o abuso da fazenda, das minas e do Estado. E além disso, por muitos anos, para a população camponesa índia, converteu-se na sede virtualmente exclusiva da democracia política sob o jugo do Estado oligárquico, porque todos os membros adultos das comunidades indígenas, homens e mulheres, desde os catorze anos, tinham direito a participar do debate e das decisões coletivas que afetavam os seus membros. Sem dúvida, por essa razão e a despeito de sua origem colonial, a comunidade indígena agora fornece às populações de camponeses, desempregados e trabalhadores informais de origem índia e também a profissionais e intelectuais da mesma origem as bandeiras ideológicas anticoloniais tanto em relação ao problema nacional quanto à democracia.

Já existe um visível, reconhecido e ativo grupo de intelectuais indígenas no Equador, na Bolívia, no México, na Guatemala e também no Peru, mas os que se identificam como tais estão sobretudo entre os aimarás e entre os habitantes da bacia andino-amazônica. Sem dúvida, eles tiveram uma participação ativa e decisiva no recente debate sobre todas essas questões. A criação da Universidade Indígena, Intercultural e do Instituto de Investigações Indígenas em Quito, com a direção de Luis Macas Ambuludi, um dos fundadores da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) e até recentemente ministro dos Assuntos Indígenas no governo de Lucio Edwin Gutiérrez Borbua, com o qual finalmente rompeu, é uma das mais eficazes demonstrações desse fenômeno.

O atual “movimento indígena” desenvolveu-se, inicialmente, entre os principais grupos da bacia amazônica, cuja maior expressão antes da COICA foi o Ecuarunari – Povos do Equador –, em 1972. Ainda que no Equador estivessem ativas organizações de índios que, com a influência e o apoio do Partido Comunista equatoriano procuravam uma autonomia política em relação ao Estado do Equador, não é provável que esses antecedentes tenham tido alguma influência na formação do atual movimento indígena desse país.

Por sua vez, algumas organizações religiosas – salesianos e jesuítas – tiveram uma influência importante. Em 1980, formou-se a Confederação de Nacionalidades Índias Equatorianas (Confenaie) e em 1989 a Confederação Nacional de Indígenas Equatorianos (Conaie), como organização central de todos os grupos organizados de indígenas equatorianos. Sua legitimidade política foi conquistada na famosa Marcha sobre Quito, em 1992. Adquiriu fama internacional com a participação na queda do governo de Abdalá Bucaram em 1997 e a liderança na queda do governo de Jamil Mahuad em janeiro de 2000, em cuja ocasião o principal líder da Conaie, Antonio Vargas, ocupou brevemente a cadeira presidencial, com o apoio do então coronel Lucio Gutiérrez, que depois seria eleito presidente do Equador graças, principalmente, ao apoio do movimento indígena.

O caso da Bolívia é muito mais complexo. Os camponeses bolivianos se organizaram de acordo com padrões sindicais desde os anos 1940, lado a lado com o movimento mineiro. Junto, participaram da revolução boliviana de abril de 1952 e, enquanto os mineiros tomavam as minas e as expropriavam, eles tomaram as terras para si e expulsaram os terra-tenentes senhoriais. Juntos, formaram as famosas milícias obreiro-camponesas que consolidaram a revolução e, aliados à Central Obreira Boliviana (COB), obrigaram o governo de Víctor Paz Estenssoro a legalizar e ampliar a redistribuição de terras. Desde então, estiveram presentes em todas as fases da política boliviana ainda que não sempre seguindo a mesma linha. Inclusive, foram utilizados pelo general René Barrientos, que com o golpe militar de 1964, bloqueou o processo revolucionário e produziu o feroz massacre de trabalhadores mineiros em junho do mesmo ano.

Quando terminou a mineração de estanho e as minas estatais foram fechadas, muitos dos mineradores, incluindo alguns de seus mais respeitados líderes, decidiram trabalhar junto com os plantadores de coca em Chapare. Além disso, ajudaram esses plantadores a se organizar de acordo com a experiência sindical mineira. Isso permitiu aos camponeses índios – se a eles for aplicado o critério de “raça” – não serem vítimas nem instrumento das redes mafiosas do tráfico de coca e cocaína. E também permitiu que eles resistissem ao Estado boliviano e aos Estados Unidos, simplesmente empenhados na erradicação do cultivo de coca, sem alternativas proveitosas para os camponeses. Nessa luta, eles se fortaleceram como movimento de trabalhadores e de camponeses, ganharam o apoio de outras forças sociais, as quais tinham apoiado em suas próprias lutas, e surgiram depois como um movimento político de filiação socialista, o Movimento ao Socialismo (MAS), produzindo líderes nacionais como Evo Morales.

Por outro lado, sem perder o vínculo com as experiências do movimento katarista, foram sendo formados e modificados outros movimentos dos aimarás que vivem no altiplano que rodeia o lago Titicaca. Atualmente o mais importante é a Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), cujo líder é Felipe Quispe, apelidado “El Mallku” (Condor em língua aimará), que conquistou uma notável autoridade sobre os camponeses e uma forte presença nacional.

O MAS e a CSUTCB participaram não somente das eleições, mas, sobretudo, dos grandes movimentos sociais e políticos em defesa do controle nacional dos recursos de produção do país, como a Marcha pelo Território e pela Dignidade, de 1991 e, recentemente, dos acontecimentos que levaram à renúncia do presidente boliviano Gonzalo Sánchez de Lozada, depois dos sangrentos conflitos com o movimento popular.

Não se trata, portanto, no caso boliviano, de movimentos estritamente indígenas, ao contrário dos outros casos no Equador, na bacia amazônica, em Chiapas, na Guatemala e no caso dos mapuches no Chile e outros grupos menores na Argentina.

Quanto a Chiapas e Guatemala, a imprensa internacional tornou mundialmente famoso o movimento dos indígenas de Chiapas e o seu midiático porta-voz, o Subcomandante Marcos, em grande parte graças a ele, assim como aconteceu na Guatemala, devido à prolongada e sangrenta guerra civil e à presença da Prêmio Nobel Rigoberta Menchú Tum.

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Índio aymara peruano tocando siku no mercado de Pisac, vila peruana no Vale Sagrado dos Incas, próxima de Cusco (Bartosz Hadyniak/Creative Commons)

Perspectivas do movimento indígena

Não existe, na realidade, um movimento indígena, salvo no sentido abstrato nominal. E seria equivocado pensar que o termo “indígena” nomeia algo homogêneo, contínuo e consistente. Assim como a palavra índio serviu no período colonial como um identificador comum de muitas, diversas e heterogêneas identidades históricas para impor a ideia de “raça” e como mecanismo de controle e dominação que facilitou a divisão do trabalho explorado, a palavra “indígena”, apesar de ser testemunha do repúdio da classificação colonial e da reivindicação de identidade autônoma, não só não é uma liberação da colonialidade, mas também não indica nenhum processo de homogeneização, apesar de, sem dúvida, desfeitas as antigas identidades, a homogeneidade agora ser maior do que antes. Não há dúvida de que o termo abrange uma realidade heterogênea e diversa e também não se deve duvidar de que várias das identidades específicas reaparecerão ou já estão reaparecendo, já que algumas delas nunca se dissolveram, como é o caso dos aimarás, entre os amazônicos ou entre os diversos grupos de Chiapas ou do altiplano guatemalteco.

Consequentemente, nada assegura que os atuais grupos de indígenas ou os que surgirão depois se orientarão pelas mesmas perspectivas e seguirão na mesma direção.

A presença desses grupos no atual cenário latino-americano possui algumas implicações em comum. Em primeiro lugar, é verdade, existe uma queixa comum de identidade que é mais uma contrapartida da discriminação que impede a assimilação plena da identidade nacional ou cultural dominante. Mas essa é uma reivindicação quase tradicional, na qual estão comprometidos os índios, os indigenistas e certamente os antropólogos, que quiseram que o que eles chamam “culturas” fossem preservadas em uma série de museus, independentemente de agradar ou beneficiar as próprias comunidades.

Entretanto, os mais organizados, primeiro no Equador e logo depois em Chiapas, avançaram ao propor a necessidade de um Estado plurinacional. E não se trata somente de fazer admitir em textos constitucionais as frases rituais, agora comuns a quase todos esses textos, sobre a plurietnicidade, a pluriculturalidade, a pluri… etc. Trata-se de que a estrutura institucional do Estado seja modificada nos seus fundamentos, de modo que possa representar efetivamente mais de uma nação. Ou seja, trata-se de uma múltipla cidadania, já que na existente os indígenas não têm, não podem ter, o seu lugar completamente ocupado. Também é certo, porém, que esse ainda não é o horizonte da maioria das populações que se reidentificam como indígenas na América Latina. Mas essa demanda implica o fim da assimilação política e cultural na América, uma vez que, depois de tudo, nunca foi plena e consistentemente praticada pelos dominantes não-índios ou brancos. E se conseguir evoluir, se não for simplesmente reprimida e derrotada, também será o fim da miragem eurocêntrica de um Estado-Nação em que algumas nacionalidades não deixaram de dominar e de colonizar outras que eram, além de tudo, majoritárias.

Uma variante dessa demanda é a autonomia política e territorial. Em alguns casos, como na Venezuela e no Canadá, os grupos dominantes preferiram não arriscar os seus Estados-Nação e cederam territórios relativamente extensos, politicamente autônomos, para determinados grupos indígenas. Mas nesses países, assim como na Argentina, no Chile e no Uruguai ou no Brasil, as populações indígenas são minoritárias e podem possuir, vez ou outra, espaços relativamente autônomos. Muito diferente é o caso de países com grandes populações indígenas como o México, a Guatemala, o Equador, a Bolívia e, inclusive, o Peru, se os processos identitários moverem-se em outras direções. Os aimarás já imaginaram, explicitamente, a possibilidade de um território autônomo. Mas eles vivem em cinco países e sua situação é um pouco parecida com a dos curdos no Oriente Médio. Nesses países, o conflito entre o Estado-Nação e o Estado Plurinacional é proposto seriamente.

Nesta era de globalização, com seus processos de enfraquecimento e de desnacionalização dos Estados, as reivindicações de Estados e de cidadanias plurinacionais parecem muito mais confusas e complicadas. Porque isso implica para os povos submetidos a Estados produzidos dentro da colonialidade do poder e também a outros povos, inclusive aos identificados com seu próprio Estado-Nação, um sério problema sobre o controle democrático da autoridade coletiva ou pública. E aqui, de novo, os movimentos dos indígenas latino-americanos mais fortes e mais organizados já levantaram a reivindicação da autoridade comunal, ou melhor, da comunidade como estrutura da autoridade apta a ser democraticamente controlada desde as suas bases e continuamente em oposição ao controle de governos de nações alheias ou, pior, ao controle global, distante, imperial, repressivo, burocrático, corporativo e vertical, como o que parece surgir com o Bloco Imperial Global, com a hegemonia dos Estados Unidos.

Nesse sentido, a iniciativa da UNCA, do lado peruano, tentou um projeto notável. As comunidades de cada jurisdição básica local (ou distrito, no caso peruano), se associam entre si em uma Multicomunal Distrital. As várias desse nível se associam em uma Multicomunal Provincial. E elas formam a UNCA. Cada dirigente de qualquer nível é eleito em sua comunidade de base e pode ser tirado daí. O projeto é algo muito parecido com a conhecida ideia do Estado que já não é Estado, porque tem a consistência e a cobertura de um Estado, mas suas bases são diferentes e o modo de sua criação e controle ainda mais. Trata-se de um modo de autogoverno direto das pessoas associadas a uma rede de comunidades, mas com a força e a autoridade de um Estado.

Estas últimas demandas e exercícios não nascem do nada, nem são feitos dele. São o desenvolvimento e a redefinição da experiência secular da democracia local das comunidades indígenas. Se as populações indígenas majoritárias em determinados países decidissem colocar em prática essas formas de autoridade política, poderiam confluir com as tendências mais recentes e também mais incipientes de outros setores sociais, como os que surgiram da recente explosão social na Argentina. Assim, de certo modo, esses movimentos surgem do novo horizonte comum dos novos imaginários de mudança social e política, a produção democrática de uma sociedade democrática.

Em todo caso, a redefinição da questão nacional e da democracia política aparece agora como a implicação mais profunda, a de maior alcance e de maior potencial conflitivo nesta parte da América Latina. Nesse sentido, trata-se do desafio mais importante que surgiu em relação ao padrão de poder caracterizado pela colonialidade. Este se originou aqui na América e também aqui está entrando em sua crise mais perigosa.

 

Mapas

Bibliografia

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