Argentina
Argentina

Argentina

Nome oficial

República de Argentina

Localização

América do Sul, 
oceano Atlântico

Estado¹

República presidencialista

Idiomas¹

Espanhol (oficial), quíchua e guarani

Moeda¹

Peso argentino

Capital¹

Buenos Aires
(15,02 milhões hab. em 2014)

Superfície¹

2.780.400 km²

Populaçã

40,37 milhões (2010)

Densidade 
demográfica²

15,0 hab./km² (2010)

Distribuição da população³

Urbana (90,97%), 
rural (9,03%) (2010)

Analfabetismo (urbano)⁴

0,9% (2012)

Composição étnica¹

Brancos (97%), mestiços, ameríndios 
e outros grupos (3%)

Religiões¹

Católica romana (92%), protestantes (2%), 
judaica (2%), outras (4%)

PIB (a preços 
constantes de 2010)⁴

US$ 524,03 bilhões (2013)

PIB per capita (a preços constantes de 2010)

US$ 12.650,1 (2013)

Dívida externa

US$ 141,08 bilhões (2013)

IDH⁵

0,808 (2013)

IDH no mundo e na AL

34° e 2°

Eleições¹

Congresso Nacional bicameral, Senado e Câmara dos Deputados, eleito por sufrágio universal. O Senado é composto por 72 senadores, sendo eleitos para mandatos de seis anos, com renovação de um terço a cada dois anos. A Câmara dos Deputados é  composta de 257 deputados eleitos para mandatos de 4 anos, com renovação de metade dos assentos a cada dois anos. O Presidente e o Vice-Presidente são eleitos conjuntamente na mesma chapa para mandatos de quatro anos, com possibilidade de reeleição por um período consecutivo. O Presidente é eleito em sistema majoritário em dois turnos, sendo vitorioso no primeiro o candidato que obtiver mais de 45% dos votos ou mais de 40% com uma diferença maior que 10% para o segundo colocado.

Fontes:

¹ CIA. World Factbook.
² ONU. World Population Prospects: The 2012 Revision Database.
³ ONU. World Urbanization Prospects, the 2014 Revision.
⁴ CEPALSTAT.
⁵ ONU/PNUD. Human Development Report, 2014.

A Argentina foi, durante a maior parte do século XX, um dos países socialmente mais harmônicos da América Latina, com o índice de analfabetismo mais baixo da região, uma poderosa classe média, a maioria da população concentrada nas cidades, uma notável excelência educativa e, até 1976, uma participação dos trabalhadores no Produto Interno Bruto (PIB) superior a 45%. Mas o país ingressou no século XXI em meio a uma crise sem precedentes em sua história: a metade da sua população afundada na pobreza; a participação dos trabalhadores no PIB de apenas 21,5%, quatro milhões de indigentes; o sistema partidário em crise; uma dívida externa de cerca de US$ 200 bilhões e a maior declaração de default (moratória) da história contemporânea no Ocidente.

A linha divisória entre as duas realidades pode ser fixada em 1976, quando o país mergulhou num quadro de obscuridade que foi se afunilando. As explicações são várias e complexas. Para encontrar suas raízes, há que remontar à formação da Argentina moderna do início do século XX. Naqueles anos – ao lado da expansão de uma elite dominante, que baseava seu poder na renda da terra e organizava um sistema político republicano e federal, mas oligárquico e conservador –, a sociedade argentina tinha uma conformação cosmopolita, marcada pelas numerosas ondas imigratórias do fim do século XIX e início do XX.

Mas, nessa Argentina republicana e conservadora, modelada pelos interesses dos latifundiários e cujo sistema político não dava espaço aos setores populares, a instabilidade e a violência política foram constantes. A partir de 1916, com o voto secreto e obrigatório, a Argentina completou seu perfil de república federal e democrática, com um presidente forte.

Entre 1930 e 1976, o país sofreu sete golpes militares, que tiveram como objetivo abortar tentativas de movimentos populares de constituir uma sociedade democrática, autônoma dos centros de poder mundial e com um desenvolvimento econômico e social mais harmônico e equitativo. Os golpes militares do século XX foram a expressão político-militar da aliança da elite – formada por proprietários de terras, grandes exportadores, banqueiros e corporações estrangeiras –, que recorreu aos militares porque não conseguia constituir um partido de direita que a levasse ao governo pela via eleitoral. Durante o século XX, essa burguesia, longe de propiciar um projeto de país industrial, preferiu, primeiro, os benefícios da renda dos latifúndios e, depois, os da renda financeira – e a fuga desses benefícios para o exterior – aos riscos dos investimentos produtivos.

A última ditadura militar (1976-1983) mostrou, como nenhuma outra, o caráter das elites dominantes argentinas, financistas e especializadas na apropriação da coisa pública. Esse golpe militar, de triste fama no mundo por ter-se edificado sobre milhares de “desaparecidos” e sobre milhares de cidadãos assassinados em centros de detenção clandestinos, quebrou a tradição da Argentina industrial e de massas, desenvolvida até meados do século XX. Nessa época, também, o mundo tomou conhecimento da existência das Mães e Avós da Praça de Maio. A partir de 1976, o processo de desindustrialização e endividamento externo – somado à matança, ao exílio e à prisão de milhares de argentinos, ao sacrifício de outra geração na aventura da Guerra das Malvinas, em 1982, à repressão selvagem contra a cultura e a educação, e à fuga de cérebros – configurou a base da tragédia que levou, em três décadas, à crise argentina do fim do século XX.

Em 1983, com o governo de Raúl Ricardo Alfonsín, teve início a transição para a democracia: nela se revelou a profundidade das mudanças estruturais, produzidas pelos militares, que os dirigentes democráticos deviam resolver. Com a chegada de Carlos Saúl Menem ao poder, em tempos da pax americana e da globalização, aprofundou-se o modelo econômico ditatorial.

Sob o guarda-chuva ideológico do pragmatismo, do neoliberalismo e das reformas de mercado, o governo de Menem vendeu o patrimônio nacional em tempo recorde, ante a passividade de uma sociedade deslumbrada pelo boom do consumo e do suposto ingresso no Primeiro Mundo. Assim, a Argentina alienou o petróleo e todas as empresas estatais energéticas, de comunicações e serviços. A década de 1990 significou para o país, enfim, uma ampliação desconhecida, até então, da distância entre pobres e ricos – que chegou a ser quarenta vezes maior – e a construção do maior endividamento da sua história.

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A Casa Rosada, sede do governo argentino, em Buenos Aires (Juan Geracaris/Wikimedia Commons)
A ruptura do modelo econômico, imposto a sangue e fogo pela ditadura de 1976 e continuado pelos governos democráticos que a sucederam, se deu em dezembro de 2001. Houve uma rebelião – sobretudo da classe média urbana –, e a repressão deixou um saldo macabro de mortos e centenas de feridos. Uma palavra correu o mundo para referir-se à Argentina: “corra­lito”, que definia o confisco de mais de US$ 45 bilhões das poupanças de todos os argentinos, especialmente dessa classe média que expressou sua fúria durante meses em centenas de panelaços.

Em 2002, a Argentina teve cinco presidentes em uma semana e declarou o maior default da história do capitalismo moderno. A desvalorização do peso em cerca de 300% significou o passo que faltava para a pobreza e a indigência de milhões de habitantes. Os beneficiários da desvalorização foram os grandes exportadores agropecuários. Depois dessa crise, a sociedade civil ficou fragmentada e sem alternativas políticas. Logo após as eleições de abril de 2003, com a chegada de Néstor Carlos Kirchner ao governo e a saída do default, a crise política encontrou uma porta de saída para a democracia, mas com desafios cujas chaves remontam à história dos últimos cinquenta anos do século XX.

Populismo e bipartidarismo

As modificações do Estado argentino ocorreram ao compasso das mudanças internacionais. Se durante o peronismo os argentinos assistiram à versão autóctone do Estado de bem-estar social – a era dos populismos latino-americanos –, os anos 1960 foram marcados pelo Estado desenvolvimentista; nos anos 1970, surgiu o Estado terrorista (como na maioria dos países do Cone Sul) e nas décadas de 1980 e 1990 reinou o Estado neoliberal.

Essas modificações influíram decisivamente na estrutura das classes sociais, na adoção de planos econômicos, na formação do sistema partidário e na cultura argentina. Os dois principais movimentos políticos do século XX foram o radicalismo e o peronismo, representados por grandes partidos: a União Cívica Radical (UCR) e o Partido Justicialista (PJ), dominantes durante meio século de bipartidarismo argentino. Ambos surgiram para ampliar as bases de participação política do país, ressaltar a importância do Estado na regulamentação, no desenvolvimento e no impulso econômicos, mas expressaram alianças de classe diferentes: a UCR, dos setores médios e altos da cidade e do campo; o PJ, dos setores operários, médios e altos da burguesia industrial. Surgido em 1890, o radicalismo foi a primeira força política nacional e popular da Argentina. Propiciou a reforma eleitoral de 1912, que estabeleceu o voto secreto, universal – embora apenas masculino – e obrigatório. Em 1916, os radicais chegaram ao poder com Hipólito Yrigoyen, caudilho e líder do movimento. Sucederam-se três presidentes radicais: Yrigoyen (1916-1922), Marcelo Torcuato de Alvear (1922-1928) e novamente Yrigoyen (1928-1930), que teve o mandato interrompido pelo primeiro golpe de Estado da história argentina.

Depois disso, ao longo do século XX e começo do XXI, nenhum presidente radical pôde terminar seu mandato. O advogado Arturo Frondizi (1958-1962), da União Cívica Radical Intransigente (UCRI) – a ala mais progressista do partido –, foi o terceiro mandatário radical, ungido com os votos do peronismo. Acabou derrubado por um golpe militar. Em 1963, assumiu o radical Arturo Illia (1963-1966), com o peronismo ainda proscrito. Em 1966, foi destituído pela chamada Revolução Argentina, um golpe militar encabeçado pelo general Juan Carlos Onganía.

Os radicais voltaram ao poder em 1983, com a transição democrática conduzida por Raúl Ricardo Alfonsín. Sua gestão enfrentou uma grave crise, que desembocaria em hiperinflação, vários motins militares e forte pressão sindical. Em 1989, Alfonsín antecipou a entrega do cargo. O sexto e último presidente radical do século XX foi o cordobês Fernando De la Rúa (1999-2001), eleito pela Aliança UCR-Frepaso (Frente para um País Solidário), criada em 1997, como opção à hegemonia menemista. O vice-presidente era Carlos Chacho Álvarez, líder da Frepaso. A Aliança se apresentava como uma coalizão de centro-esquerda – o centro representado pelo radicalismo e a esquerda pela Frepaso, uma frente integrada por ex-justicialistas e socialistas –, cujas premissas eram a transparência de gestão e uma verdadeira e rejuvenescida justiça social.

Durante sua gestão aconteceu um caso de corrupção que implicou o Senado na sanção da lei de reforma trabalhista, resultando na renúncia do vice-presidente. Na área econômica, aprofundou-se o modelo neoliberal ortodoxo da gestão menemista a tal extremo que desembocou na pior crise social e institucional da história argentina. Em 20 de dezembro de 2001, depois de saques e repressão policial, De la Rúa decidiu renunciar.

As forças políticas fora do peronismo e do radicalismo não tiveram um peso significativo na hora de definir as eleições na Argentina. Os partidos socialista (de 1896) e o comunista (de 1918) tiveram uma forte presença no movimento operário pré-peronista, e os socialistas, além disso, tinham uma importante trajetória parlamentar. Nas décadas de 1960 e 1970, com o surgimento da guerrilha, deu-se uma ruptura em organizações e pequenos partidos de esquerda – a que se somou a esquerda peronista, com organizações como a Juventude Peronista (com ramificações de base, universitárias e de trabalhadores).

Por volta de 1982, surgiu boa parte dos partidos de esquerda que predominariam durante os primeiros anos da democracia: o Movimento al Socialismo (MAS) e o Partido Obrero (PO). Depois, nos anos 1990, surgiram novas agremiações, como o Movimento Socialista dos Trabalhadores (MST), o Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS) e a Frente Ampla, que passou a se denominar Frepaso.

Já no novo milênio surgiram novas agremiações políticas, como a Alternativa para uma República de Iguais (ARI). A Argentina precisou, desde meados do século XX, de um partido conservador ou social cristão, como no Chile, que representasse a grande burguesia. O peronismo concitou todas essas representações. A direita teve, embora não muito representativos, partidos como a União de Centro Democrático (UceDE), criada nos anos 1960, que na década de 1990 foi aliada do menemismo, e a Ação pela República e o Compromisso para a Mudança, nos anos 1990, ambos criados por economistas.

Sindicalismo, golpes e guerrilha

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Casamento civil de Juan Perón e Eva Duarte, em 22 de outubro de 1945
A Confederação Geral do Trabalho (CGT) surgiu em 27 de setembro de 1930, com uma direção compartilhada por sindicalistas e socialistas, com hegemonia dos primeiros. As mudanças registradas no último meio século indicaram o trânsito da hegemonia ideológica da esquerda para o peronismo e o predomínio da ideologia social-cristã nos quadros sindicais, em sua maioria de caráter burocrático.

Com a chegada de Juan Domingo Perón ao governo, em 1946, o movimento operário, organizado em sindicatos, tornou-se um dos pilares do peronismo. As mudanças ocorridas no movimento operário anterior e posterior ao peronismo se refletiram nestas cifras: em 1941, havia 356 organizações sindicais; em 1945, eram 969. O número de filiados passou de 441.312 para 528.523. O grande salto ocorreu em pleno peronismo: em 1951, o número de sindicalizados passou de três milhões de operários, o que equivalia a 90% do total de trabalhadores. Era a maior porcentagem de filiação sindical da América Latina. 

Em novembro de 1955, a CGT sofreu intervenção da Revolução Libertadora. Durante o período de 1966-1973 – época da ditadura da Revolução Argentina – a CGT, desarticulada por confrontos internos, dividiu-se em dois setores que tinham posturas irreconciliáveis: a CGT Azopardo, que reunia os sindicatos mais poderosos, e a combativa CGT dos Argentinos. Nos anos 1960, ocorreram várias greves importantes, das quais a mais emblemática foi a que desembocou no Cordobaço, em maio de 1969. 

No primeiro período do terceiro governo peronista (1973-1976) os sindicatos tiveram atendidas algumas reivindicações, mas, com a morte de Perón, a tendência se reverteu. Durante a ditadura (1976-1983), o movimento operário foi desarticulado, proscrito e reprimido. Em 1983, com o retorno da democracia, a CGT entrou em via de normalização.

Durante a primeira presidência de Carlos Menem (1989-1995), a CGT teve vários rachas e normalizações. Em março de 1992, separou-se dela um núcleo (os trabalhadores do Estado e os professores) que constituiu a opositora Central dos Trabalhadores Argentinos (CTA). Em 1994, incorporaram-se à CGT novas agremiações, entre elas o Movimento dos Trabalhadores Argentinos (MTA). Em 2004, a CGT voltou a se unificar, presidida por um triunvirato. O nível de sindicalização atual é de cerca de 40% da população economicamente ativa. Entre a queda de Perón, em 1955, e o golpe de Estado de 1976 aconteceu na Argentina uma reviravolta ideológica e social muito forte, vinculada à conjuntura internacional. No calor das revoluções chinesa (1948) e cubana (1959), das lutas do movimento operário e estudantil europeu – expressado, no âmbito internacional, no Maio de 1968 francês – e na proscrição do peronismo no âmbito nacional, surgiram as primeiras experiências guerrilheiras. A linha divisória de todas essas experiências foi a incorporação da violência como método de ação política, a ideia da utopia socialista como destino e a luta contra o autoritarismo, além da proscrição política das maiorias.

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Ato pela candidatura Perón-Perón, em frente ao Ministério de Obras Públicas em Buenos Aires, em 31 de agosto de 1951 (Wikimedia Commons)
Entre 1952 e 1976, existiam cerca de sessenta organizações políticas de esquerda. Um punhado delas defendia a luta armada: Uturuncos (1960), Exército Guerrilheiro dos Pobres (1963), Forças Armadas Peronistas (1967), Partido Revolucionário dos Trabalhadores (1968), Forças Armadas Revolucionárias (1968), Forças Armadas de Libertação (1969), Montoneros (1969) e Exército Revolucionário do Povo (1970). As organizações guerrilheiras mais importantes foram a dos Montoneros, liderada por Mario Eduardo Firmenich, e o PRT-ERP, liderado por Mario Roberto Santucho (1936-1976). De orientação trotskista e guevarista, o ERP se opunha às ditaduras e propunha a luta pelo socialismo. Foi aniquilado em 1977. Os Montoneros se constituíram com a confluência de jovens católicos e marxistas. Queriam o desenvolvimento de um socialismo nacional, o retorno de Perón do exílio e a luta pela hegemonia ideológica no peronismo. Em 1974, depois de divergências com Perón e confrontos sangrentos com a direita peronista, afastaram-se das estruturas orgânicas do PJ. Em 1978, foram desarticulados pela repressão.

O regime terrorista

Em 24 de março de 1976, as Forças Armadas deram um golpe militar que derrubou o governo constitucional de Maria Estela Martínez de Perón. O governo ditatorial foi presidido por uma Junta Militar – formada por Jorge Rafael Videla (do Exército), Emilio Eduardo Massera (da Marinha) e Orlando Ramón Agosti (da Aeronáutica) – que nomeou Videla como presidente e criou o Estado terrorista. A Constituição foi suspensa, fechou-se o Congresso, proibiram-se os partidos políticos e os sindicatos, e instalaram-se a censura e a repressão.

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Juramento de Jorge Rafael Videla como presidente da Argentina, em 24 de março de 1976 (www.mendoza.gov.ar)

O regime – que se autodenominou Processo de Reorganização Nacional – teve quatro presidentes: Videla (1976-1981), Roberto Viola (1981), Leopoldo Fortunato Galtieri (1981-1982) e Reynaldo Benito Bignone (1982-1983). Seu objetivo era desmontar os vestígios do Estado de bem-estar, a Argentina industrial e de massas do século XX, combater os movimentos populares – o radicalismo e o peronismo – e, sobretudo, aniquilar a esquerda marxista e peronista e o poderoso movimento sindical argentino. Foi a maior restauração conservadora do século XX.

A ditadura contou com o aval explícito do governo norte-americano de Gerald Ford e seu secretário de Estado, Henry Kissinger.­ O método usado foi o terror. Foram montados na Argentina 364 campos clandestinos de detenção sob controle militar, onde os opositores eram torturados, assassinados e desapareciam. O maior deles foi a Escola Mecânica da Armada (ESMA). Dados oficiais estimam em 14 mil os desaparecidos ou mortos, mas os organismos de direitos humanos calculam que foram cerca de 30 mil. Houve aproximadamente 10 mil presos políticos, cerca de 300 mil exilados, por volta de 300 adolescentes desaparecidos e cerca de 500 crianças sequestradas juntamente com seus pais, muitas delas roubadas pelos militares logo depois de nascerem nos centros clandestinos de detenção. Muitos dos desaparecidos eram intelectuais, religiosos, dirigentes sindicais, estudantes e professores universitários. A maioria foi de operários.

Entre os movimentos de resistência que se criaram durante a ditadura, o mais importante foi o de direitos humanos, cujo maior emblema foram as Mães da Praça de Maio. O sequestro e assassinato de dirigentes políticos estrangeiros revelou a coordenação entre os militares do Cone Sul, na chamada Operação Condor.

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Acima: manifestação em Trelew, em outubro de 1972 (Wikimedia Commons) e a capa do jornal Clarín em 25 de março de 1976 (Reprodução/www.mendoza.gov.ar). Abaixo: manifestações das Mães e Avós da Praça de Maio (Reprodução)

José Alfredo Martínez de Hoz, líder da oligarquia e da grande burguesia agroexportadora e financista, foi ministro da Economia durante a presidência de Videla e encarregado de impor o modelo neoliberal a todo custo. A parábola econômica do regime – cujo pacto central era a aliança Videla-Martínez de Hoz – foi a abertura econômica, uma regressão na distribuição de renda sem precedentes, a terceirização e a primarização da estrutura econômica da Argentina e o endividamento externo. A participação dos trabalhadores no PIB caiu de 50% para 30% entre 1975 e 1983, a distância entre pobres e ricos, que era de 1 para 12, passou a ser de 1 para 25. A dívida externa subiu de US$ 6 bilhões para US$ 46 bilhões. O desemprego se manteve nos níveis históricos de 6%.

A crise econômica, a pressão internacional, por causa da violação dos direitos humanos durante a administração de Jimmy Carter nos Estados Unidos, e a pressão nacional, com a criação das Mães da Praça de Maio, marcaram, por volta de 1978, o longo processo de esgotamento da ditadura. Houve, então, dois planos políticos para esticar sua sobrevivência: o Mundial de Futebol de 1978 e a Guerra das Malvinas, em 1982.

Dois operadores de radar do HMS Cardiff vestidos para ação em San Carlos, em 13 de junho de 1982, e prisioneiros de guerra argentinos em Port Stanley, em 16 de junho de 1982, nas Ilhas Malvinas (Kenneth Ian Griffiths/Wikimedia Commons)

A Copa de 1978 foi utilizada para melhorar a imagem da Argentina perante o mundo. Em 1979, a opinião pública mundial foi sacudida depois que a Comissão Internacional de Direitos Humanos (CIDH) visitou a Argentina e entrevistou familiares de presos desaparecidos, o que resultou num completíssimo informe sobre a grave situação dos direitos humanos no país. Mas a situação do regime terrorista estava destinada a piorar até se deteriorar de vez ante dois conflitos internacionais: o problema dos limites com o Chile (1977-1979), que culminou com a mediação do Papa, e a Guerra das Malvinas. 

A crise financeira e econômica de 1981 fez saltar pelos ares o pacto iniciado por Videla e Martínez de Hoz e deu lugar à longa agonia da ditadura. Massera se retirou do governo com um impossível plano de continuar no cenário político. Videla foi substituído pelo general Roberto Viola (1981), que deu início a um período de certa abertura do regime, com a pretensão de perpetuar a ditadura com um governo civil dirigido por militares. Mas o colapso do sistema cambial – conhecido como “tablita” – quebrou parte do sistema financeiro.

Pelas mãos de Viola apareceu na cena econômica, como presidente do Banco Central, o economista Domingo Felipe Cavallo, que promoveu a estabilização da dívida privada. Viola não sobreviveu à crise. Foi sucedido por Leopoldo Fortunato Galtieri (1981-1982), que, exibindo uma gestualidade mussoliniana, compreendeu que o regime agonizava em apoios políticos e declarou guerra ao Reino Unido em 2 de abril de 1982, ao ocupar as ilhas Malvinas, sobre as quais a Argentina reivindicava historicamente sua soberania. A Guerra das Malvinas foi a última aventura sinistra do regime militar e promoveu a aliança do Reino Unido com os Estados Unidos contra o governo militar argentino. Em meados de 1982, teve início a contagem regressiva para o governo militar.

Ao longo da ditadura foram realizadas algumas greves parciais. No início de 1982, uma greve geral, com mobilização popular, ocasionou sérios confrontos com a polícia nas principais cidades do país. O sindicalismo se reagrupava, assim como os partidos políticos, reunidos na Multipartidária. Foi o começo do fim do regime. Galtieri foi sucedido por Reynaldo Bignone, que anunciou eleições presidenciais. Elaborou uma lei de autoanistia para impedir que os militares fossem julgados por seus crimes e ordenou a destruição de toda a documentação que comprometia o regime mais escabroso da história argentina. Em 10 de dezembro de 1983, começou o governo democrático de Alfonsín.

O retorno à democracia

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Manifestação na avenida 9 de Julho um dia antes das eleições presidenciais que puseram fim à ditadura militar na Argentina, em Buenos Aires, em 26 de outubro de 1983 (Marcelo Ranea/Wikimedia Commons)

Desde a restauração da democracia, em 1983, a alternância de governos girou em torno do radicalismo e do justicialismo. O governo de transição foi do radical Raúl Ricardo Alfonsín, mas a chegada de Carlos Menem à presidência, em 1989, trouxe um rearranjo no espectro político argentino. O tradicional bipartidarismo se mantinha, mas com novas alianças no seio da UCR e do PJ. A mais chamativa, e que marcaria o rumo econômico e político argentino, foi a aliança entre o justicialismo e a direita liberal.

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Carlos Menem, presidente de Argentina de 1989 a 1999 (Presidencia de la Nación)

Como principal partido da oposição, a UCR também experimentou mudanças. Alfonsín lançou uma linha interna orientada para a socialdemocracia. O afastamento dos peronistas, dissidentes do menemismo, derivou na formação da Frente Ampla, mais tarde Frepaso, que tentou quebrar a tendência de meio século de bipartidarismo.

Em 1997, formou-se a Aliança UCR-Frepaso contra a hegemonia menemista. A Aliança ganhou as eleições de 1999 com alta porcentagem de votos. A abstenção eleitoral não tem tradição na Argentina: no último meio século, as votações tiveram em média 80% do colégio eleitoral. Surgiram, nesse período, novas agremiações, como a Alternativa para uma República de Iguais (ARI), de centro-esquerda, liderada por Elisa Carrió. O comunismo e o socialismo, com suas distintas vertentes, também se expressaram eleitoralmente.

A ruptura do modelo de acumulação de imposto em 1976, que terminou com o governo de De la Rúa em 20 de dezembro de 2001, gerou a implosão do sistema político e uma mobilização sem precedentes da sociedade, em particular da classe média. No fim desse mesmo ano, a Argentina teve cinco presidentes em uma semana, entre eles Adolfo Rodríguez Saá, que declarou o default da dívida externa.

A governabilidade do sistema político, entre 2002 e 2003, estava nas mãos do ex-governador de Buenos Aires e dirigente do justicialismo Eduardo Duhalde, que convocou as eleições presidenciais de 2003. Os principais candidatos foram três justicialistas: os ex-presidentes Menem e Rodríguez Saá e o governador da província patagônica de Santa Cruz, Néstor Carlos Kirchner, apoiado por Duhalde. Pela direita, o economista Ricardo López Murphy; pela centro-esquerda, Elisa Carrió. No primeiro turno, os dois candidatos que obtiveram mais votos foram Menem e Kirchner.­ Menem desistiu do segundo turno: as pesquisas de opinião asseguravam que sete de cada dez argentinos votariam contra ele. Sem ter sido realizado o segundo turno, Kirchner foi consagrado presidente com a menor porcentagem de votos da história argentina. Pela primeira vez em sua história, o radicalismo não se apresentava como alternativa. A crise gerou o começo do fim do bipartidarismo, mas não seu desaparecimento definitivo da estrutura institucional, já que no Congresso e nos governos provinciais e municipais se registrava uma forte presença da UCR.

Bem-estar social e neoliberalismo

O capitalismo argentino conheceu, sob o peronismo, a forma do Estado de bem-estar. Depois vivenciou: a entrada da Argentina no Fundo Monetário Internacional (FMI), ao firmar os acordos de Bretton Woods, em 1955, com a ditadura que derrubou Juan Domingo Perón; o desenvolvimentismo, que começou com o governo democrático de Arturo Frondizi e teve renovadas versões na tecnologia militar dos anos 1960 e começo dos 1970; a abertura econômica, durante a ditadura de 1976-1983; e o ciclo de transição democrática com o governo de Alfonsín, que, no entanto, não modificou o modelo econômico ditatorial, com picos de hiperin­flação. 

O menemismo foi a concretização do neoliberalismo e dos postulados do Consenso de Washington na Argentina, e o governo da Aliança UCR-Frepaso só aprofundou a ortodoxia. O colapso de 2001, a saída do regime de convertibilidade – um peso, um dólar – e a suspensão do pagamento da dívida externa colocaram a Argentina à beira do abismo. Na Argentina pós-desvalorização, o rumo da economia era guiado pela busca da saída do default – o que ocorreu em março de 2005, reduzindo a dívida externa a US$ 131 bilhões –, pelas políticas de emprego e por uma maior ingerência do Estado no controle e na reorientação econômica. 

Os programas econômicos do peronismo foram o Primeiro Plano Quinquenal (1947-1951) e o Segundo Plano Quinquenal (1951-1955), coincidentes com os extensos mandatos presidenciais de Perón. O Estado peronista empreendeu uma importante política de estatização de ferrovias, energia e serviços; ampliou sua autonomia relativa entre as distintas classes e grupos sociais; fez a mediação entre trabalhadores e patrões, legitimando as reivindicações trabalhistas, e também regulamentou o setor empresarial, no qual financiou, com subsídios de todos os tipos, a formação de empresas industriais vinculadas ao mercado interno.

Durante o Primeiro Plano Quinquenal criou-se o Instituto Argentino de Promoção para o Intercâmbio (IAPI), o Gás do Estado e a Frota Mercante. Nacionalizaram-se o Banco Central e as empresas de serviços públicos – ferrovias, gás, água e telefonia –, deu-se novo impulso à construção de moradias, abriu-se o crédito bancário aos trabalhadores, duplicou-se a infraestrutura hospitalar entre 1946 e 1951, alfabetizou-se integralmente o país e erradicaram-se muitas doenças endêmicas vinculadas à pobreza.

A política social do peronismo contribuiu decisivamente para seu enraizamento nos setores populares. Durante seu governo, a participação dos trabalhadores no PIB foi de 48%, com índices de desemprego praticamente inexistentes. A vasta legislação trabalhista incluía indenizações, folgas remuneradas, regulamentação da jornada de oito horas, congelamento dos aluguéis, subsídios para as indústrias de alimentos e para as tarifas dos serviços públicos e generalização do sistema de aposentadorias. Enquanto isso, na educação deu-se ênfase especial ao ensino técnico para capacitar os trabalhadores. Mas o peronismo não conseguiu transformar a indústria na principal fonte de riqueza do país.

As divisas continuavam provindo da exportação de grãos e carnes. O contexto internacional também não ajudava: os mercados estavam fechados e os Estados Unidos haviam imposto um forte boicote contra a Argentina. Perón reestruturou sua política econômica. O Segundo Plano Quinquenal propunha o retorno a uma economia mais tradicional e a aplicação de ajustes nos salários e nas políticas sociais, se bem que mantinha as bandeiras do peronismo – justiça social, independência econômica e soberania política. O ponto de inflexão se deu quando Perón começou a se enfrentar com duas forças que tiveram um papel fundamental em sua ascensão ao poder: o Exército e a Igreja.

Em setembro de 1951, falhou uma tentativa de golpe de Estado contra ele. Essa tentativa contribuiu para minar as relações entre o governo e as Forças Armadas, enquanto a relação com a cúria foi se desgastando à medida que Perón pregava a separação entre a Igreja e o Estado. Nessa conjuntura, ao aparecerem os sintomas de esgotamento do modelo econômico, iniciou-se a abertura para o capital estrangeiro, sobretudo norte-americano. Um caso emblemático foi a assinatura de um polêmico contrato petrolífero com a companhia Standard Oil da Califórnia. Também nesses anos surgiu a experiência da Confederação Geral Econômica (CGE), fundada em 1950 por José Ber Gelbard – ministro da Economia na terceira presidência de Perón –, que agrupava o grosso da burguesia nacional e defendia seus interesses.

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Réplica de O Pensador de Rodin, situada no bairro de Monserrat, em frente ao Palácio do Congresso argentino, em Buenos Aires (David Berkowitz/Wikimedia Commons)

Desperonização e desenvolvimentismo

Derrubado Juan Domingo Perón, em 1955, os militares puseram em execução seu plano econômico, com um objetivo fundamental: “desperonizar” a economia. Para isso, pediram a assessoria do economista Raúl Prebisch – presidente do Banco Central até o golpe de 1943 e primeiro secretário-geral, em 1949, da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL).

Em meados de 1956, o ditador Pedro Eugenio Aramburu apresentou o Plano Prebisch, que incluía um balanço negativo sobre a gestão do governo peronista. O plano pretendia evitar a inflação e substituir gradualmente o sistema econômico estatista do peronismo. O Plano Prebisch e os estudos da Cepal fizeram parte dos antecedentes diretos da onda desenvolvimentista que influiu nas economias latino-americanas desde fins da década de 1950 e durante a subsequente, de 1960.

Na Argentina, o desenvolvimentismo esteve vinculado ao governo do radical intransigente Arturo Frondizi (1958-1962) e ao movimento ideológico e político que o teve como orientador, juntamente com Rogelio Frigerio. Mas os militares que tomaram o poder em 1966 também se inscreviam na linha que trabalhava a problemática do desenvolvimento, de acordo com uma perspectiva que postulava a “modernização pela via autoritária”. Em linhas gerais, o desenvolvimentismo propugnava a modernização industrial como base de uma economia nacional mais forte ante os vaivéns do mercado internacional, e, também, que a Argentina deixasse de ser exclusivamente produtora de matérias-primas e tivesse uma estrutura industrial integrada, o que deveria ser promovido pelo Estado.

Alguns distinguem quatro períodos do governo de Frondizi. O primeiro (1958-1959) priorizou a política petrolífera, chave de toda a política econômica do governo, mas a abertura ao capital estrangeiro despertou uma forte oposição. O segundo (1959-1961), de subordinação do desenvolvimento ao monetarismo fiscal, foi executado pelo então ministro da Economia, o liberal Álvaro Alzogaray. O terceiro (1961-1962) foi o período de restabelecimento do ritmo e da extensão do desenvolvimento com uma mudança no gabinete econômico e nas equipes técnicas. O último (1962) tinha como metas a intensificação de determinadas indústrias químicas, a supressão de um elevado número de novos agentes da administração pública e a promoção irrestrita das exportações, mas não chegou a se concretizar: Frondizi foi derrubado depois de 34 motins militares.

O liberal Adalbert Krieger Vasena foi ministro da Economia durante quase todo o governo ditatorial do general Juan Carlos Onganía (1966-1970). O governo da autodenominada Revolução Argentina se propôs a “selvatizar” o capitalismo argentino em três períodos, aos quais denominou “o tempo econômico, o tempo social e o tempo político”. O primeiro período não foi meramente econômico. Prevaleceu nele a capacidade repressiva do Estado. Nas suas realizações, o “tempo econômico” foi uma época social de repressão do movimento operário. A estabilização monetária e o ajuste de salários foram a essência do plano de Krieger Vasena. Ele teve o aval dos círculos financeiros do exterior, sobretudo dos Estados Unidos. Com o congelamento de salários, conseguiu controlar a inflação. Após a desvalorização do peso em 40%, o dólar se manteve estável durante quase dois anos.

Krieger Vasena pactuou o primeiro crédito stand by de US$ 125 milhões do FMI e empréstimos de outras fontes que alcançaram, no total, US$ 400 milhões. O prazo para executar as diretrizes do plano era de dez anos. O governo arrostou obras públicas e aumentou a atividade industrial, cada vez mais vinculada às empresas multinacionais. Os principais beneficiários do plano de Krieger Vasena foram os grandes empresários e as mais importantes empresas industriais, muitas delas multinacionais. Nesse período, começou a desnacionalização da economia argentina. O campo e os produtores regionais se viram prejudicados pela desvalorização da moeda, pelo aumento das porcentagens de retenção nas exportações agropecuárias e pela supressão de medidas protecionistas.

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Puerto Madero, centro financeiro e gastronômico de Buenos Aires, capital da Argentina (David Berkowitz/Wikimedia Commons)

Gelbard e Martínez de Hoz

Representante por excelência da burguesia nacional, José Ber Gelbard (1917-1977) foi ministro da Economia do terceiro governo peronista (1973-1976) desde que ele assumiu até 1974. Seu programa se caracterizou por uma iniciativa mais ampla, o Pacto Social – entre o Estado, os sindicatos e os empresários –, uma estratégia de longo prazo que pretendia instalar um projeto nacional.

As conjunturas nacional e internacional –­ com a crise do petróleo e as mudanças na tendência do capitalismo em escala mundial – eram pouco favoráveis: níveis de inflação superiores às médias históricas, elevado índice de desemprego e alta capacidade ociosa do aparato produtivo. O Plano Trienal para a Reconstrução e a Libertação Nacional reconhecia a necessidade de reconstruir um mercado interno maciço. Pressupunha uma política de inflação zero, distribuição de renda com participação de cerca de 48% dos assalariados no PIB e forte presença do setor público. Entre outras medidas, Gelbard inaugurou a primeira central nuclear em Atucha e firmou tratados comerciais com Cuba, União Soviética e outros países socialistas.

A morte de Juan Domingo Perón gerou uma grande disputa entre diversos setores. O Pacto Social, baseado numa aliança entre os trabalhadores concentrados na CGT e na Confederação Geral Econômica (CGE), que reunia majoritariamente pequenos e médios empresários, foi rompido. Sem o apoio da CGT e com a crescente oposição da Sociedade Rural Argentina (SRA), da União Industrial Argentina (UIA) e de agremiações como o Conselho Empresário Argentino (CEA) – que reunia as grandes empresas vinculadas ao capital estrangeiro, era liderado por José Alfredo Martínez de Hoz –, Gelbard renunciou em 1974, pouco depois da morte de Perón. Morreu no exílio, nos Estados Unidos, em 1977.

Pertencente a uma família argentina de grandes proprietários de terra, o advogado Martínez de Hoz, dirigente de agremiações da grande burguesia agroexportadora e financista do país, foi o mais emblemático ministro da Economia da ditadura militar de 1976 a 1981. Sua política era liberal e monetarista e impulsionou a abertura irrestrita da economia. Sob sua gestão, o capitalismo produtivo foi substituído pelo capitalismo financeiro, especulativo, que redundou na quebra de bancos, esvaziamento de empresas e na fuga de capitais. Um dos momentos mais lembrados foi o período conhecido como o da “ plata dulce ”, um fenômeno desencadeado pela desenfreada especulação financeira, que, entre outras coisas, incitava o consumo de bens importados: o famoso “dáme dos”, a compra de eletrodomésticos e outros bens duráveis em proporções exageradas (os turistas argentinos achavam baratos os eletrodomésticos no Brasil e compravam dois de cada, e ficaram conhecidos como “dáme dos”). Essa política se juntou à implementação da chamada “tablita”, que consistia em garantir uma taxa de juros decrescente ao longo do tempo, com o objetivo de igualar as taxas internacionais. Na realidade, o Estado fazia empréstimos com um dólar caro e vendia dólares baratos, endividando, não por razões operativas, as empresas estatais, como a Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), que se endividou 142 vezes nesse período.

Em consequência da política econômica da ditadura, aconselhada pelo FMI e pelo Banco Mundial, a participação dos trabalhadores no PIB caiu para 28%; a economia se primarizou e se tercerizou entre 1975 e 1983, e a dívida quase quintuplicou: subiu de US$ 8,9 para US$ 43 bilhões. A Martínez de Hoz seguiram-se os ministros nesse processo de agonia: Lorenzo Sigaut (1981), Roberto Alemann (1982) e José María Dagnino Pastore (1982-1983).

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Vista do Obelisco e avenida 9 de Julho à noite, em Buenos Aires (Nestor Galina)

Hiperinflação e planos econômicos

O governo de Raúl Ricardo Alfonsín teve quatro ministros da Economia: Bernardo Grinspun (1983-1985), Juan Vital Sourrouille­ (1985-1988), Juan Carlos Pugliese (1988-1989) e Jesús Rodríguez (1989). Os temas centrais das equipes desses ministros foram a dívida externa, o déficit fiscal e a hiperinflação. O Plano Austral (1985) foi um programa essencialmente anti-inflacionário e monetarista, que resultou em uma redistribuição regressiva de renda, por meio da desvalorização.

Até 1988, a economia argentina se encontrava numa situação crítica: recessão, inflação, desemprego e queda dos salários. Foi lançado então o Plano Primavera. O mercado cambial desdobrou-se e a inflação foi contida conjunturalmente. Em 1989, houve um deslocamento financeiro brusco contra o Austral, com perda de reservas, fuga de capitais, especulação e hiperinflação, que tornou crítica a governabilidade. Nos meses seguintes, houve saques a supermercados e uma sensação de caos generalizado, que terminou com a renúncia e a saída antecipada de Alfonsín da presidência.

A negociação da dívida externa durante o governo de Alfonsín se realizou de acordo com o padrão do Plano Baker, que devia seu nome a James Baker, então secretário do Tesouro dos Estados Unidos. A Argentina integrou e impulsionou o Consenso de Cartagena, um clube de países devedores latino-americanos surgido em oposição ao Consenso de Washington. Mas, por volta de 1985, a Argentina começou um processo de capitalização da dívida, ainda não vinculada à privatização de empresas.

Ao Plano Baker seguiu-se, nos anos 1990, o Plano Brady, que possibilitou a capitalização da dívida. Por esse mecanismo, o Estado adquiria títulos em seu valor nominal no mercado, onde estavam desvalorizados. A Argentina ingressou nesse plano em 1992, quando Cavallo, então ministro da Economia, começou a implementar seu programa econômico, o Plano de Convertibilidade. O Plano Brady consistia em uma quitação da dívida externa em troca do pagamento do capital e juros atrasados, com um cronograma que garantia aos credores que não se repetiriam as inadimplências ocorridas na década anterior.

Mas o certo é que, com a assinatura do Plano Brady e num quadro de grande liquidez internacional, a Argentina voltaria a se endividar. A adoção do Plano Brady explica o crescimento da dívida externa argentina e sua implosão no período 2001-2002. O Plano Brady significou a plena incorporação da Argentina ao modelo neoliberal e à globalização.

Desnacionalização e paridade peso-dólar

Carlos Menem teve cinco ministros da Economia: Miguel Roig (1989), Néstor Rapanelli (1989-1990), Antonio Erman González (1990-1991), Domingo Felipe Cavallo (1991-1996) e Roque Benjamín Fernández (1996-1999).

O Plano de Convertibilidade foi traçado por Cavallo, formado em Harvard. Seu programa era uma versão rígida do neoliberalismo, guiada por três princípios fundamentais: a primazia do mercado sobre o Estado, a abertura total da economia e a privatização do patrimônio estatal e valorização da renda financista. O Plano de Convertibilidade estabeleceu a paridade um a um do dólar com o peso.

Essa política econômica obteve êxito em seus objetivos imediatos: conseguiu-se a estabilidade de preços, que foi acompanhada (até a ruptura financeira do México, em 1995, conhecido como “efeito tequila”) por altas taxas de crescimento econômico; logrou-se certo equilíbrio fiscal, ainda que precário; e aumentaram as exportações e os investimentos estrangeiros. Houve alto consumo interno como fator dinâmico da economia, enquanto a poupança interna se manteve baixa e o déficit do comércio exterior cresceu exponencialmente, em decorrência da abertura irrestrita das importações.

A reforma do Estado teve papel central na política econômica do governo Menem (1989-1995 e 1995-1999). Abrangeu um amplo programa de privatizações, a reforma administrativa e a transformação do sistema de seguridade social. A desregulamentação, a abertura externa e a liberalização econômica interna completavam o Plano de Convertibilidade.

Depois de 1995, o desemprego começou a aumentar e a registrar o nível histórico de 14,5%. A privatização de empresas do Estado e a flexibilização trabalhista produziram milhares e milhares de desocupados. A economia deixou de crescer e, por volta da década de 1990, entrou em recessão. Os argentinos chegaram ao terceiro milênio com uma dívida pública e privada em torno de US$ 200 bilhões. O efeito da política de liberalização da economia sobre a indústria local foi devastador: a importação maciça de todo tipo de bens, de alimentos até bens de capital, teve forte impacto negativo no nível de atividade de vários ramos de produção.

Durante os primeiros anos do modelo, sustentou-se o déficit graças à entrada de capital estrangeiro, atraído pelo bom rendimento que se podia obter na compra de serviços privatizados ou na especulação financeira. O montante das privatizações foi de US$ 40 bilhões. A mais importante, e inédita, foi a da YPF. As empresas privatizadas ganhavam – segundo estudos de Eduardo Basualdo – cerca de US$ 3.800 por minuto.

Quando já não havia mais o que privatizar, o fluxo de capitais estrangeiros decaiu e rachou-se o bloco integrado pelas empresas estrangeiras e nacionais associadas para as privatizações. A partir daí, teve início a decadência do governo Menem. A maioria dos empresários argentinos vendeu sua participação nessas empresas, que ficaram em poder de estrangeiros. No fim do período Menem, de 500 grandes empresas, 314 eram estrangeiras. A taxa de crescimento – de cerca de 9% da economia no período de 1991-1995 – despencou, o desemprego tornou-se estrutural, ampliou-se a distância entre ricos e pobres e a classe média começou a encolher, dando lugar ao surgimento dos “novos pobres”.

Moratória e governabilidade

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Manifestação de donos de poupanças argentinos contra o Corralito financeiro na porta da matriz central do Banco Galicia, em fevereiro de 2002, em Buenos Aires (Barcex/Wikimedia Commons)
O antecedente direto da crise de 2001 foi a gestão econômica neoliberal ortodoxa do governo de Fernando De la Rúa (1999-2001). Ele teve três ministros da Economia: José Luis Machinea (1999-2000), Ricardo López Murphy (2001) e Cavallo (2001).

Em maio de 2000, o desemprego chegou ao seu nível máximo dos últimos três anos: 15,4%. A Argentina começou a ser assistida por sucessivas blindagens financeiras do FMI. As gestões de Machinea e López Murphy se baseavam no ajuste perpétuo, ou seja, no corte de salários e aposentadorias e na retirada do Estado de suas responsabilidades financeiras, em razão do que Cavallo chamou de “lei de déficit zero”. O descontentamento popular era incomensurável e se expressava em milhares de passeatas. Em outubro de 2001, o voto em branco foi majoritário nas eleições parlamentares.

O risco-país argentino chegou a 5 mil pontos. O modelo de convertibilidade havia entrado em crise logo depois do “efeito tequila”. A Argentina sustentava esse modelo com mais dívida externa, e, quando os organismos financeiros internacionais cortaram suas remessas, ele explodiu. A gestão de Cavallo teve um sentido preciso: garantir, de forma ordenada, a retirada de US$ 45 bilhões por parte do sistema financeiro para o exterior. Isso se fez por meio da confiscação de depósitos chamada de “corralito”.

Os organismos de crédito contribuíram para financiar o processo especulativo da Argentina dos anos 1990. Foram eles os principais financiadores – com as sucessivas “blindagens” – da fuga de capitais que se deu a partir de outubro de 2000. Durante o desmoronamento argentino de dezembro de 2001, a dívida pública somava 181 bilhões de pesos, dolarizada na sua quase totalidade. A crise era tal que houve cinco presidentes e dois ministros da Economia em uma semana. O presidente Rodríguez Saá – com Rodolfo Frigeri como ministro da Economia – declarou o default . A Argentina devia aos organismos internacionais US$ 132 bilhões.

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O Cacerolazo, protesto contra o Corralito, nas ruas de Buenos Aires em 2001 (Pepe Robles/Wikimedia Commons)
O último presidente normalizador até as eleições de 2003 foi o justicialista Eduardo Alberto Duhalde. Sua gestão econômica começou a sair do modelo de convertibilidade, a desvalorizar o peso e a estabelecer um sistema de planos sociais que contivessem a ruptura social. Fizeram parte do governo dois ministros da Economia: Jorge Remes Lenicov (2002) e Roberto Lavagna (2003). A desvalorização foi da ordem de 30%. Os depósitos e créditos em dólares foram transformados em pesos: nasceu o chamado “corralón”. A desvalorização fez 50% dos argentinos passarem para a pobreza. 

A gestão do presidente Néstor Carlos Kirchner continuou com Roberto Lavagna na Economia. Suas metas foram: sair do default, com a restruturação da dívida a longo prazo e a quitação de 70% do seu valor; dar continuidade aos planos sociais, para o Estado custear o desemprego que atingia 15%; rediscutir concessões e tarifas das empresas privatizadas; incentivar a participação do Estado nos investimentos em saúde, educação e moradia, e em seu papel de controlador do mercado e estimulador do desenvolvimento do mercado interno em razão de uma economia mista; e recompor as reservas de divisas, que passaram de US$ 8 bilhões (2001) para US$ 18,224 bilhões em 2004. Em março de 2005, a Argentina saiu do default . A dívida externa, com a quitação ocorrida, era de US$ 131 bilhões. O nível de desemprego caiu para 12,1%, mas a participação dos trabalhadores no PIB era a mais baixa da história: 21,5%. 

Da sociedade equitativa à fragmentação

Os migrantes internos do campo para a cidade, entre os anos 1930 e 1940, foram protagonistas de um intenso processo de mobilidade social que pressionou os estratos de trabalhadores residentes na cidade e os setores médios. As ocupações da classe média, desde meados da década de 1940, expandiram-se com mais rapidez que a da classe trabalhadora.

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O presidente argentino Néstor Kirchner discursa no Congresso, em Buenos Aires, em março de 2007 (Presidencia de la Nación Argentina)
Durante o Estado de bem-estar, a expan­são das burocracias públicas e privadas transformou a classe média assalariada no setor social mais dinâmico. A classe média urbana era formada por pequenos industriais, prestadores de serviços e comerciantes varejistas. Muitas pequenas empresas industriais prosperaram com pouco capital e apoio familiar; seus proprietários, favorecidos pelo consumo em massa e pela proteção estatal, abasteciam a pequena e a média burguesias.

As transformações produzidas durante o peronismo – distribuição progressiva de renda e aumento do número de trabalhadores e do índice de sindicalização – arrepiavam a classe alta, formada por famílias aristocráticas e grandes proprietários de terras, que tinham seus próprios rituais e frequentavam certos bairros, quintas, campos, igrejas e clubes exclusivos. Os integrantes da classe alta pertenciam a agremiações como a Sociedade Rural, a Bolsa de Comércio e a Câmara de Comércio, e a alguma agremiação profissional, como as corporações de advogados e as associações médicas. Esse setor do establishment argentino apoiou todos os golpes de Estado da Argentina e, em geral, aderiu aos partidos de perfil conservador.

Em fins dos anos 1950 e começo dos 1960, um novo setor se destacou nas classes abastadas: a nova burguesia industrial, originada e enriquecida durante o processo de industrialização substitutiva de importações dos anos 1930 e 1940, que incluía empresários, gerentes e setores tecnoburocráticos ligados à atividade industrial, muitos deles provenientes da classe média. Em princípios da década de 1960, os estratos médios eram quase 45% da população ativa. Ainda que, em geral, houvessem apoiado o golpe contra Juan Domingo Perón, logo começaram a discordar do governo militar (1955-1958), pois ele gerou um aumento do custo de vida que prejudicou o consumo dos setores urbano-industriais e também provocou um ressentimento por seu autoritarismo.

Enquanto nas grandes cidades crescia a classe média culta e educada, consumista e proprietária, expandiam-se, simultanea­mente, as “vilas misérias”, localizadas inicialmente em áreas inundáveis ou em terrenos públicos. Entre 1962 e 1966, a população dessas vilas aumentou de 42 mil para 94 mil pessoas. Eram migrantes internos, expulsos pela carência de trabalho no litoral e no nordeste argentinos, ou nos países limítrofes, que se empregavam como mão de obra não qualificada nos centros urbanos. Na década de 1950, a realidade urbana deixou de responder às expectativas dos migrantes. A “vila”, considerada até então um lugar de passagem para uma vida melhor, passou a se converter no lugar de residência definitiva. No final da era peronista, 30% da população argentina já se concentrava na província de Buenos Aires.

Durante o período de 1946-1955, a Argentina teve a mais equitativa distribuição de renda de sua história: a participação dos trabalhadores na renda nacional era de 48%, com índices de desemprego quase inexistentes. A situação mudou a partir da derrocada do peronismo. Em 1963, o desemprego era de quase 9% e a participação dos trabalhadores no PIB estava em 36%. A Argentina era um país desigual, mas, ainda assim, o mais equitativo da América Latina.

Em 1973, quando subiu o terceiro governo peronista, a distribuição da riqueza assinalava que os 10% mais ricos tinham uma renda doze vezes maior que os 10% mais pobres. Os níveis de pobreza e indigência deram um salto enorme no último quartel do século XX. Nesse longo período, a pobreza seguiu os movimentos do ciclo econômico, mas aumentou rapidamente nas recessões e diminuiu a um ritmo mais lento durante as expansões. Entre 1976 e 1981, a participação dos assalariados no PIB caiu de 50% para 29%. Esse processo continuou na democracia e se acentuou durante a década menemista, em que o desemprego subiu para 14,5% e os mais ricos passaram a ter renda 37,5 vezes maior do que os mais pobres. Durante o período recessivo que se iniciou em 1998, houve um profundo agravamento da crise social, que estourou em 2001. A pobreza e a indigência alcançaram um pico histórico em 2002. Segundo dados oficiais, nesse ano 57,5% da população urbana argentina era pobre e 27%, indigente.

A perda de renda, os aumentos de preços de consumo interno e o aumento da distância entre ricos e pobres foram os principais fatores do crescimento da pobreza. Em 2003, a Argentina tinha 20 milhões de pobres e 8 milhões de indigentes. A classe média havia se reduzido e a distância entre pobres e ricos era uma das maiores do mundo: os 10% mais ricos percebiam quase 38,8 vezes mais renda do que os 10% mais pobres.

Desde meados dos anos 1990 surgiram na Argentina os “nupos” (novos pobres; em espanhol, nuevos pobres), a classe média pauperizada. Essa situação de crise se fez sentir sobre uma população altamente educada. A educação laica, gratuita e obrigatória foi um dever que o Estado argentino assumiu com a sociedade em 1884, mediante a Lei n o 1.420, instituída pelo intelectual e estadista Domingo Faustino Sarmiento. O Estado garantia a igualdade de oportunidades, difundia os ideais liberais da Constituição de 1853 e se constituía como agente civilizador.

Puerto Madero à noite, visto da Reserva Ecológica de Buenos Aires (Luis Argerich/Wikimedia Commons)

Mudanças na questão social

Durante os primeiros sessenta anos do século XX, a escola foi a coluna vertebral da Argentina integrada. O país atingiu índices educacionais similares aos dos países mais desenvolvidos do mundo, mas a qualidade da educação não era homogênea. O ponto culminante da capacidade de produção de conhecimento científico ocorreu nos anos 1950 e 1960, quando a Universidade de Buenos Aires (UBA) formou cientistas e intelectuais de primeira linha, muitos dos quais foram para o exílio a partir de 1966. A “fuga de cérebros” começou nessa época e não se deteve.

Entre 1976 e 2002, emigraram cerca de 50 mil pessoas com formação universitária. Desde 1976, os níveis da educação superior caíram notavelmente e, na escola pública, ocorreram as primeiras tentativas de descentralização da educação. Tudo isso redundou em uma explosão de matrículas nos colégios privados, em detrimento das escolas públicas.

A classe média não empobrecida abandonou a educação pública. Nos anos 1990, concluiu-se a municipalização da educação e a autonomia local e escolar na Argentina, no contexto da reforma do Estado e da descentralização, desregulamentação e privatização dos serviços sociais. De qualquer modo, a Argentina manteve a educação pública como um dos pilares de sua identidade como nação. Nesse sistema se formaram os prêmios Nobel argentinos ligados à ciência, Bernardo Alberto Houssay (fisiologia e medicina, 1947), Luis Federico Leloir (química, 1970) e César Milstein (fisiologia e medicina, 1984). Além disso, nos piores anos de crise do fim do século passado, a escola pública teve um papel integrador: em 2003, cerca de 10 milhões de crianças, jovens e adultos – mais da metade deles provenientes de lugares pobres – estavam matriculados nas 40 mil escolas argentinas.

A saúde pública foi outro dos pilares do país. A evolução do sistema geral de saúde –­ integrado pelos subsistemas públi­co, de obras sociais e privado – teve quatro períodos: o modelo “descentrali­zado anárquico” (até 1945), o modelo “centralizado” (1945-1955), o modelo de­ “descentralização do sistema” (1955-1978), e o modelo de “descentralização fiscal motivada por objetivos de curto prazo” (desde 1978).

Até a ascensão do peronismo, o sistema de saúde era formado por uma ampla e diversa quantidade de instituições comunitárias e filantrópicas que respondiam a demandas pontuais. A função do Estado, subsidiária, consistia na formação de recursos humanos voltados para a atividade sanitária e na prestação de assistência. Ele se limitava a cuidar da higiene pública e a controlar epidemias. Durante o peronismo, a saúde passou a ser responsabilidade do Estado. A assistência à saúde foi estendida a toda a população, os estabelecimentos públicos foram nacionalizados, desenvolveu-se uma rede de centros de atendimento ambulatorial e instalaram-se novos hospitais. Ao mesmo tempo, continuavam existindo sistemas mutualistas de assistência, com forte predomínio sindical. A descentralização do sistema começou em 1955. Em 1970, o governo ditatorial de Onganía sancionou a Lei de Obras Sociais.

Em 1978, deu-se a descentralização da saúde, orientada por relações financeiras entre a nação e as províncias. A deterioração do sistema de saúde argentino teve início nesse ano e se intensificou a partir de 1990, durante o menemismo, quando o Estado descentralizou o setor – passando para as províncias a responsabilidade pelo atendimento à saúde –, privatizou o sistema previdenciário e desregulamentou as obras sociais.

A respeito do sistema previdenciário argentino, em 1944, na alvorada da ascensão do peronismo, só 7% da população economicamente ativa recebia benefícios de aposentadoria. Durante a década peronista (1946-1955) outorgaram-se benefícios de aposentadoria comum, por invalidez, pensões por viuvez e regimes de afastamento voluntário e antecipado e criou-se o Instituto Nacional de Previdência Social, para centralizar o sistema. A partir daí, quase toda a população ativa passou a gozar dessa cobertura social.

Em 1958, foi sancionada uma lei que modificou a remuneração dos aposentados, estabelecendo um critério de proporcionalidade entre salário e aposentadoria. Mas, em fins da década de 1960, tornaram-se visíveis os primeiros sintomas de erosão dos benefícios, já que o superávit obtido no novo sistema era utilizado para outros fins, em vez de ser reinvestido na previdência. A partir de então, o sistema previdenciário argentino viveu de crise em crise. A reforma mais significativa ocorreu em 1994. O governo de Menem aprovou o regime misto, um sistema de aposentadorias e pensões integrado por um regime previdenciário compartilhado e um regime previdenciário de capitalização. Privatizou-se o sistema previdenciário com a Administração de Fundos de Aposentadoria e Pensões (AFJP), modelo que desfinanciou o Estado para fazer frente a sua responsabilidade na saúde pública e na educação.

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Vista da baía de Ushuaia na Terra do Fogo, na Argentina (Leandro Neumann Ciuffo/Wikimedia Commons)

Excluídos em cena

Os migrantes internos e os estrangeiros foram, historicamente, os “outros” por excelência da sociedade argentina. Em 1914, os estrangeiros eram 30% da população argentina, e quase a metade dos habitantes de Buenos Aires era imigrante. As principais imigrações foram a espanhola e a italiana, mas havia também russos, franceses, judeus, poloneses e alemães. Ao longo do século XX, novas comunidades se incorporaram ao tecido social argentino: japoneses, chineses e coreanos, que chegaram nos anos 1940 e 1990; alemães, refugiados da Segunda Guerra Mundial; e bolivianos, peruanos e paraguaios, chegados sobretudo durante a década menemista, atraídos pela paridade entre o peso e o dólar.

Outra grande onda migratória, mas interna, ocorreu na década de 1930, quando uma incipiente industrialização substitutiva – decorrente da crise mundial daqueles anos – atraiu para as grandes cidades do país, especialmente Buenos Aires, migrantes provenientes das províncias, os chamados cabecitas negras .

Mas as correntes migratórias também conheceram o caminho inverso. Entre 1950 e 2003, emigraram quase 900 mil argentinos, segundo dados oficiais. As saídas ocorreram sobretudo por exílios políticos e econômicos. Entre 1975 e 1983, saíram do país 334.126 argentinos. Foi a maior emigração do século XX. Com a crise de 2001 e 2002, cerca de 100 mil argentinos decidiram emigrar. Em 2004, apenas 5% do total da população argentina – 36.261.000 habitantes – era de origem estrangeira. A migração dos países limítrofes não superava 3% do total da população, porcentagem que se manteve inalterada ao longo do século XX. A multiplicidade de culturas que convivem na Argentina é análoga às crenças. A maioria dos argentinos professa alguma religião, mas a majoritária é o catolicismo – 90% da população. Depois dele, o judaísmo e o islamismo são os principais cultos, mas existem outros, como os afro-brasileiros, os budistas e os hinduístas.

Surgidos nas crises, os piqueteiros e cartoneiros constituem os novos movimentos sociais da Argentina. Ambos são formados por trabalhadores desocupados. Os primeiros exigem do governo postos de trabalhos dignos e, no entanto, recebem dele planos de assistência social. Já os cartoneiros autogestionam seu trabalho – que consiste em recolher papéis e papelões nos cestos de lixo, para vender a empresas de reciclagem. A história do movimento piqueteiro remete a 1996, quando ex-trabalhadores de fábricas e minas da província patagônica de Neuquén fizeram piquetes para reivindicar a manutenção de suas fontes de trabalho. Com o passar dos anos, os piqueteiros deixaram de ser grupos heterogêneos e desorganizados e começaram a se agrupar. Em alguns casos, com apoio de partidos políticos de esquerda; em outros, organizados em coletivos. Estima-se que, de 1996 até a 2005, realizaram-se mais de 7 mil piquetes, a maioria na cidade de Buenos Aires e seu entorno.

Cinquenta milhões de livros

A Argentina, e, em particular, a cidade de Buenos Aires foram, desde fins do século XIX, a referência cultural da América espanhola e como tal se reafirmaram durante o século XX. A poderosa indústria editorial se firmou na década de 1930, em consequência da Guerra Civil Espanhola, que paralisou a produção de livros naquele país e atraiu para o exílio argentino muitos intelectuais republicanos. Entre 1937 e 1938, a produção de livros aumentou 143%. Em toda a América Latina, estudava-se com livros provenientes de Buenos Aires. Em 1953, ano recorde, foram colocados no mercado interno quase 51 milhões de livros. A explosão do mercado editorial na Argentina dos anos 1960 esteve estreitamente ligada ao projeto desenvolvimentista e à universidade.

Em 1958, foi criada a Editorial Universitária de Buenos Aires (Eudeba), dirigida por José Boris Spivacow, que revolucionou o mercado de livros por lançar edições maciças a baixos preços. Quando a Editorial sofreu intervenção do ditador Onganía, em 1966, havia posto em circulação 802 títulos e quase 12 milhões de exemplares em sete anos.

Já nos anos anteriores ao golpe militar de 1976, a indústria editorial havia entrado em crise, pelo menos em relação às extraordinárias cifras que havia alcançado durante a década anterior. O número de 50 milhões de exemplares impressos em 1974 caiu para 41 milhões no ano seguinte. Em 1976, registraram-se 31 milhões de exemplares impressos e nos três anos seguintes, 17 milhões. Durante a última ditadura, numerosos livros foram proibidos e muitas editoras fechadas.

Nas últimas décadas, o mercado de livros da Argentina seguiu um curso de transnacionalização, bem de acordo com esse período. Nos anos 1990, entraram no país grandes grupos internacionais, e a indústria editorial argentina reduziu notavelmente sua capacidade produtiva diante do crescimento da indústria de outros países ibero-americanos, como a Espanha, o México e a Colômbia. O volume de sua produção se situava, em fins da década de 1990, em cerca de 12 mil títulos anuais, com uma tiragem de cerca de 48 milhões de exemplares.

Economicamente dependente do Reino Unido e depois dos Estados Unidos, a elite argentina do período peronista tinha uma enorme fascinação pelas culturas francesa e inglesa. A figura mais brilhante da oligarquia foi Jorge Luis Borges (1899-1986). Outro dos intelectuais importantes da Argentina foi Arturo Jauretche (1901-1974). Ambos foram, em suas origens, yrigoyenistas. Mas Borges foi antiperonista e Jauretche peronista e um dos principais pensadores da Argentina. Dois temas cruzaram o espaço da intelectualidade argentina entre 1955 e 1976: a releitura do peronismo pela esquerda e a busca, por parte dos intelectuais, de uma nova legitimação, baseada na política. O escritor e jornalista Rodolfo Walsh – assassinado pela ditadura em 1977 – e o escritor e intelectual David Viñas levaram para o debate o papel dos intelectuais na política durante o pós-peronismo.

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Quino, criador de Mafalda, na abertura da Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, em abril de 2014 (Romina Santarelli/Secretaría de Cultura de la Presidencia de la Nación)
Durante os anos 1960 se deu uma ruptura cultural e uma modernização dos costumes e hábitos de consumo. As novas tendências eram difundidas nas páginas da revista Primera Plana, que, dirigida por Jacobo Timerman, revolucionou a forma de fazer jornalismo. Essa revista teve um papel-chave na modernização da linguagem jornalística e, ao mesmo tempo, contribuiu para popularizar a sociologia e a psicanálise, difundiu as atividades do Instituo Di Tella – o centro de arte experimental por excelência da década de 1960 –, realizou uma abertura para o cinema europeu – que recomendava em suas críticas – e divulgou os grandes escritores latino-americanos, entre eles os argentinos Julio Cortázar, Leopoldo Marechal, Ernesto Sábato, Haroldo Conti e Manuel Puig. A Argentina foi o primeiro país a publicar Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, em 1967. Também nos anos 1960 nasceu a afetuosa Mafalda, a tira de quadrinhos de Quino (Joaquín Lavado). Na década de 1970, a revista Crisis, dirigida por Eduar­do Galeano, exerceu o pensamento crítico e concentrou o melhor da intelectualidade latino-americana.

Na ditadura de 1976, houve um arrefecimento na intelectualidade argentina, fraturada pela repressão, a censura, o exílio e o medo. Assim, nos anos 1980, houve uma ausência de grandes obras, tendência que continuou nos anos 1990, embora nessa época se tenha começado a vislumbrar o auge da denúncia jornalística ou a non fiction, com expoentes como Horacio Verbitsky e María Seoane. Durante o governo de Alfonsín, a cultura e a educação foram políticas de Estado de suma relevância.

Da vanguarda à resistência cultural

Os anos 1990 foram de consolidação do neoliberalismo. As ideias vindas do Consenso de Washington eram defendidas também por instituições, em seminários e cadeiras universitárias de economia, e por influentes jornalistas econômicos e centros de formação liberal. Durante a década de 1990, a produção de livros caiu a 9 mil títulos anuais e houve um predomínio das ciências políticas e uma determinada sociologia vinculada ao jornalismo cultural. Depois da crise de 2001, deu-se um renascimento da cultura, pelas mãos de intelectuais consagrados e também de jovens artistas. Se no teatro o que caracterizou a década de 1950 foi o grotesco, na década de 1960 a Argentina foi pioneira na arte experimental, por meio do Instituto Di Tella. Esse pioneirismo estava presente nas artes plásticas do Centro de Artes Audiovisuais, dirigido pelo crítico Jorge Romero Brest; no teatro, por meio do Centro de Experimentação Audiovisual, sob direção de Roberto Villanueva, e na música, com o Centro Latino-Americano de Altos Estudos Musicais, a cargo do compositor Alberto Ginastera. Atingiu-se também o auge do realismo com dramaturgos como Roberto Cossa, Oswaldo Dragún e Carlos Gorostiza.

Em 1976, a ditadura proibiu a grande maioria das atividades culturais. A partir dos últimos anos do regime, destacou-se a experiência do Teatro Aberto, um grupo de artistas, autores, cenógrafos e trabalhadores do meio que respondeu às “listas negras” com um projeto cultural de resistência. A chegada da democracia, em 1983, deu impulso à cultura de massas. Em 1997, expediu-se a Lei Nacional do Teatro e criou-se o Instituto Nacional do Teatro (INT), encarregado de financiar cerca de mil grupos independentes.

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Cartaz do filme A História Oficial, de 1985 (Reprodução)
A história do cinema percorreu um caminho paralelo aos vaivéns econômicos e políticos. Os anos 1940 e 1950 foram marcados por uma dupla conjuntura: desde 1943, a indústria cinematográfica estava obstruída pela falta de provisão de celuloide virgem por parte dos Estados Unidos, mas o governo peronista impulsionou essa indústria na década de 1950. Foi a época das divas e dos telefones brancos. Em 1947, foi promulgada uma lei de proteção ao cinema argentino e criado o Instituto Nacional de Cinematografia (INCAA). Nas décadas seguintes, ao cinema descompromissado, que não tinha problemas com a censura, somou-se o cinema político, um produto típico dos anos 1960 e 1970, que, em geral, era exibido em condições de clandestinidade. Seus principais expoentes foram Raymundo Gleizer, de esquerda, e Fernando Solanas e Leonardo Favio, peronistas.


Durante o governo de Alfonsín foi forte o apoio estatal à produção cinematográfica, e os resultados foram visíveis. Entre 1984 e 1988, foram produzidos 188 filmes na Argentina e, pela primeira vez, em 1988, um filme argentino – A história oficial, de Luis Puenzo – ganhou um Oscar. Na década de 1990, houve um declínio da produção cinematográfica até que, em 1999, eclodiu uma renovação estética e filosófica do cinema, a qual a crítica chamou de “Novo Cinema Argentino”, com diretores como Lucrecia Martel (La ciénaga e La niña santa) [O pântano e A menina santa], Juan José Campanella (El hijo de la novia) [O filho da noiva], Daniel Burman (El abrazo partido) [O abraço partido] e Adrián Caetano (Mundo grúa), entre outros. A crise de dezembro de 2001 também deixou suas marcas na produção cinematográfica: foi o auge do documentarismo, e se desenvolveu o chamado cine piquetero. Outra das manifestações próprias da cultura argentina é o tango, que nos anos do peronismo teve um cultor-chave, Enrique Santos Discépolo (1901-1951), autor de Cambalache, poeta, compositor, ator e autor teatral. Nos anos 60, o tango mudou. Convencido de que era uma música mais para ouvir que para dançar, e com a ideia de fazer do bandoneón um instrumento nobre e clássico, Astor Piazzolla (1921-1992), de Mar del Plata, gerou uma verdadeira revolução no tango. Paralelamente, nascia o rock nacional. O expoente máximo do gênero foi Charly García nos grupos Sui Generis e Serú Giran e, mais tarde, em carreira solo.

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Casal dança tango nas ruas de Buenos Aires (Gustavo Brazalle)
Durante as décadas de 1960 e 1970, nos primeiros anos da democracia, entrou em vigência na Argentina a canção de protesto, que encontrou no rock um canal de interpretação. León Gieco – autor do hino pacifista “Só peço a Deus” –, Victor Heredia, Fito Paéz e Teresa Parodi foram alguns dos autores que empunharam a bandeira da reivindicação de liberdade do povo argentino, do mesmo modo que Mercedes Sosa, no folclore.

Nas artes plásticas, a Argentina registrou uma evolução similar à que tiveram as letras e a intelectualidade. Havia artistas plásticos argentinos vanguardistas, como Xul Solar, que introduziu o movimento surrealista; não figurativos, como Emilio Pettoruti; e os realistas, como Antonio Berni, que, na década de 1960, ganhou o prêmio de gravura na Bienal de Veneza e realizou suas séries de colagens e pinturas de Juanito Laguna e Ramona Montiel. Os artistas tendiam a se agrupar. Em meados dos anos 1940, surgiu o Madi, integrado por Carmelo Arden Quin – precursor da arte concreta – e Gyula Kosice; em 1952 se formou o grupo de Artistas Modernos da Argentina, iniciado por Aldo Pellegrini; em 1960, o argentino Julio Le Parc criou e dirigiu em Paris o Grupo de Pesquisa de Arte Visual, integrado por artistas franceses e argentinos. Destacaram-se, nos anos 1960, artistas como Carlos Alonso, Carlos Gorriarena, Eduardo de la Vega, Luis Felipe Noé e Ricardo Carpani. Nos anos 1980, entre centenas de outros artistas, Guillermo Kuitka se somou a eles.

Jornais, rádio e TV

Nos anos 1950, cerca de 90% dos argentinos liam um jornal por dia e a mesma proporção ouvia rádio. A imprensa moderna surgiu na Argentina em 1880. Os jornais mais tradicionais, que ainda circulam, são dessa época: La Prensa (1869), La Nación (1870) e La Razón (1905). Mas o jornal de maior tiragem é o Clarín , fundado em 1945, emergente do fenômeno de cultura de massas. Com ele coexistem outros, o mais conhecido em nível nacional é o Página/12 . Existem ainda outros jornais regionais.

A primeira transmissão televisiva aconteceu em 1951, mas até o início dos anos 1960 – os canais foram privatizados em 1958 – esse meio não se popularizou. Em fins da década de 1970 e começo da subsequente, chegou a televisão em cores. Os anos 1980 foram os da introdução e da expansão da TV a cabo, e atualmente, como em todo o mundo, assiste-se ao fenômeno da convergência entre serviços de telecomunicações e radiodifusão. Os canais de televisão argentinos são quatro: canal 13 (Telefé), canal 9, canal 7 (estatal) e América TV.

Em 2003, foi aprovada a Lei de Proteção de Bens Culturais, que tinha o objetivo principal de proteger os meios de comunicação nacional do avanço do capital estrangeiro cujo limite de participação, foi reduzido a 30%.

A agenda do século XXI

Entre 1945 e 1955, o esporte viveu o seu auge, em parte porque era política de Estado. O pato (esporte argentino – uma competição com duas equipes de quatro cavaleiros, parecida com o polo, mas que se joga com a mão, e não com o taco, e cuja bola tem seis alças) deixou de ser o esporte nacional de massas. Seu lugar foi ocupado pelo futebol, e nessa década também se popularizou o boxe, o automobilismo e o basquete.

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Diego Maradona segura a taça de campeão da Copa do Mundo de 1986, no México (prensa.argentina.ar)
Foi justamente por sua popularidade que se percebeu que o futebol, mais que entretenimento e paixão, podia ser um negócio. A Argentina ganhou dois campeo­natos mundiais: o de 1978, realizado no país e utilizado pelos militares para propagandear ao mundo a suposta paz e prosperidade que se vivia ali; e o de 1986, no México, cujo grande craque foi o ídolo Diego Maradona. Nos anos 1970, o tênis se popularizou. Seu grande divulgador foi Guillermo Vilas, que ao longo de sua carreira ganhou 62 torneios. Em fins do século XX, os esportes que se destacaram foram o rugby e o hóquei feminino. Nas Olimpíadas de Atenas-2004 o basquete masculino ganhou a medalha de ouro. 

Em 2005, a verdadeira revolução cultural que acontecia era no tango e no cinema. O festival de tango de 2004 reuniu mais de 200 mil pessoas. Os jovens protagonizaram esse movimento cultural, talvez o mais importante desde a década de 1970. Além disso, em 2005, existiam cinco escolas de cinema, com cerca de 10 mil estudantes. A cultura, devido à crise, transformou-se no baluarte decisivo de identificação do começo deste novo milênio.

A entrada no século XXI encontrou a Argentina ante numerosas encruzilha­das. Os problemas de desemprego, com 12,1% de desocupados, e a pobreza – 51% da população – continuam sendo inquietantes. O peso da dívida externa, de US$ 181 bilhões – quase US$ 5 mil por habitante – e a pressão dos centros de poder econômico ligados aos banqueiros, às empresas privatizadas e aos credores externos prometem ser obstáculos difíceis de serem superados.

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Vilas em ação no Campeonato Internacional de Tênis em Melkhuisje, em Hilversum, em julho de 1975 (Bert Verhoeff/ANEFO)

Nas últimas três décadas do século XX, os argentinos acreditaram em improváveis milagres econômicos, em soluções mágicas mais que no esforço coletivo; toleraram em silêncio, salvo exceções, matanças inaceitáveis de cidadãos e a entrega do patrimônio acumulado durante muitas gerações. A agenda do futuro inclui a melhora da qualidade institucional – a justiça e o Congresso foram instituições laceradas pelas crises –, a reformulação do sistema político, com uma nova lei eleitoral, e o combate à corrupção pública e privada. Do ponto de vista social, há a necessidade de inclusão de milhões no processo produtivo, a criação de empregos, o retorno do Estado como controlador e impulsor do desenvolvimento econômico e uma redistribuição de renda de acordo com a média histórica do país.

No plano internacional, fazem parte da agenda a política de não alinhamento automático com potências mundiais e o reforço dos organismos regionais como o Mercosul, privilegiando uma aliança estratégica com o Brasil. Essas eram, em linhas gerais, as perspectivas de uma política de longo prazo na Argentina na segunda metade dos anos 2000.

Nestor Kirchner ou o bater de asas de uma borboleta

No começo do século XXI, o kirchnerismo resgatou a Argentina da beira do abismo. Esse movimento de tração aconteceu, sabemos agora, porque houve um bater de asas de borboleta, uma pequena alteração impulsada pela decisão personalíssima de um homem e de uma mulher de modificar o curso da história; de dissolver o núcleo resistente do poder conservador e reparar, assim, as consequências da pilhagem neoliberal que vitimou o país durante, pelo menos, três décadas, de 1976 a 2003. Uma pilhagem que, na verdade, tinha se iniciado em 1955 com a derrocada do peronismo e se estendeu em etapas sucessivas – com golpes militares de baixa intensidade alternados com períodos democráticos efêmeros –, e alcançou o clímax com a instauração, em 1976, de uma ditadura burguesa terrorista, que com sua crueldade devastou milhares de vidas e bens.

A bomba atômica gestada no pacto entre as forças armadas, dirigidas por Jorge Rafael Videla, a burguesia agroindustrial e o capital estrangeiro – empresas e bancos –, representados por José Alfredo Martínez de Hoz, edificou a cidadela repressiva de centenas de campos de concentração, onde tiveram lugar torturas e assassinatos massivos, para o ingresso do capitalismo argentino à etapa de acumulação financeira. O modelo Videla-Martínez de Hoz jorrou sangue e especulação. A onda expansiva atravessou como uma flecha, sem limites, o período da restauração democrática, entre 1983 e 1989, até o alvo final durante a presidência de Menem, nos anos 1990, com a destruição capilar da Argentina inclusiva. A ditadura acabou numa tragédia econômica e social: 15% de desemprego, uma guerra perdida em vidas e bens, uma inflação de 719%, um endividamento externo de mais de US$ 45 bilhões, e a fuga de bilhões de dólares “baratos” financiados pelos argentinos, compondo o quadro mais pertinaz do capitalismo financeiro argentino. A sentença de Martínez de Hoz declarando o “intervencionismo estatizante e sufocante” como o inimigo a derrotar, prosseguiu durante o governo de Raúl Alfonsín. Sua extraordinária contribuição ao processar as cúpulas das juntas militares da ditadura, tendo o Nunca Más como testemunho daqueles crimes imperdoáveis e imprescritíveis, não se sustentou. Foram promulgadas as leis de Ponto Final e Obediência Devida, que estabeleceram por vinte anos a impunidade dos responsáveis por esse genocídio político. A crise econômica engoliu a credibilidade do radicalismo, partido do governo, que não conseguiu modificar a carga da dívida externa, sucumbiu as pressões do FMI e não levou a cabo a reconstrução de um Estado saqueado pelas corporações econômicas sob o rótulo de “país das grandes empreiteiras”. O dirigente mais popular e querido do Radicalismo teve de entregar o mandato antecipadamente, com o país sufocado por uma hiperinflação que chegou a 2.100 % em maio de 1989 e que provocou uma explosão social. O povo foi as ruas saquear lojas e supermercados para ter o que comer. Alfonsin repetiu o karma do Radicalismo no século XX: nenhum governo Radical, exceto o primeiro de Hipólito Yrigoyen (1916-1922) e o de Marcelo T. de Alvear (1922-1928), terminaria o seu período presidencial. Alfonsin sedimentou o caminho democrático como poucos dirigentes da história, mas foi devorado pela supremacia de um liberalismo reacionário no seio de seu partido, que se esforçou para não reverter o modelo econômico ditatorial, o esquema de valorização e especulação financeira que derivou num círculo perverso de meio século: endividamento, ataque contra as reservas para estancar a fuga de divisas, inflação, desemprego, recessão e golpe político.

A chegada do populismo conservador de Carlos Menem, em 1989, não mudou mas aprofundou o modelo econômico da ditadura. Martínez de Hoz foi seguido por Domingo Cavallo, operador do capital financeiro internacional. Os dois governos Menem (1989/1995 e 1995/1999), que o grande intelectual Eduardo Grüner definiu como menemato, tiveram como guia de ação o “Decálogo menemista” elaborado pelo seu ministro Roberto Dromi: “Nada do que tenha de ser estatal permanecerá nas mãos do Estado”. Assim, a reforma do Estado, na verdade privatizações em abundância para liquidar a preço vil o patrimônio social dos argentinos acumulado ao longo no século XX, foi marcado por uma corrupção sem limites que enriqueceu os funcionários menemistas com comissões ilegais. As concessões políticas às corporações – econômicas e midiáticas –, a ratificação das leis de impunidade às quais se somaram os indultos para os crimes contra a humanidade, foram o verdadeiro vade-mecum do menemismo, o ato final da ditadura cívico-militar de 1976, mas, desta vez, transformando o peronismo no partido da ordem que a burguesia necessitava para cooptar dirigentes e enganar cidadãos. Menem fez da pilhagem e da corrupção uma política de Estado. Nada sobrou: trens, petróleo (YPF), gás, água, aviões (Aerolíneas Argentinas), entre outros bens, foram privatizados. A Lei de Convertibilidade (um peso igual a um dólar) concebida por Cavallo em 1991, baixou a febre da inflação, mas deixou a Argentina sem proteção monetária para fazer frente à fuga massiva de divisas. O dólar barato, sustentado por um endividamento fatal, levaria o país à pior recessão de sua história no final dos anos 1990. Segundo Eduardo Basualdo e Matías Kulfas, é relevante lembrar que, em 1975, os capitais locais no exterior somavam menos de US$ 5,5 bilhões, enquanto que, em 1999, superavam os US$ 115 bilhões. A dívida externa chegou, em 1999, no começo do governo do radical conservador Fernando de la Rúa, a mais de US$ 145 bilhões, quase 60 % do PIB. O desemprego e o subemprego, ultrapassaram 25 %. No fim dessa década, 80 % das grandes empresas eram estrangeiras. Menem desenhou uma política internacional de “relações carnais” com os Estados Unidos, de submissão à estratégia de não integração com a América Latina. A Suprema Corte com seus nove membros era chamada de Corte da maioria automática, uma vez que se submetia docilmente às vontades presidenciais, garantindo que Menem governasse sem sobressaltos. Ele impulsionou a reforma Constitucional de 1994 para selar, com Alfonsín, a sua reeleição, mas, ao mesmo tempo, concedeu ao radicalismo e a outras forças algumas reformas de caráter progressista: mecanismos de consulta popular e incorporação do país a acordos internacionais, entre outras iniciativas. O objetivo foi tornar irreversíveis as reformas neoliberais que consumaram a liquidação espúria do Estado.

O anestesiamento social – quebrado pelas marchas dos trabalhadores e seus piquetes que resistiam ao desmantelamento das indústrias e do Estado nacional – mantinha-se na fantasia de que um dólar era igual a um peso. Os argentinos imaginavam, assim, estar protegidos da perda do valor do dinheiro. Durante o menemato acreditaram em espelhinhos coloridos, no ritmo do risco-país, acreditaram na estafa da convertibilidade cavallista e mergulharam no  mais formidável processo de desnaturalização ideológica. O Estado Hood-Robin, tal como foi chamado pelo jornalista Horacio Verbitsky, foi moeda corrente: tirar dos pobres para dar aos ricos. Acreditaram, como apontou Silvia Bleichmar no seu livro Dolor país, viver em The Matrix, esse país virtual das compras no exterior, da poupança em dólares, do dólar barato, da destruição do processo industrial, da liquidação do Estado como compensador social, que se sustentava na desgraça de milhões de compatriotas que reviravam o lixo para comer. The Matrix desembocou numa dissolução violenta, expressa na grande explosão social e política de dezembro de 2001, quando o governo não foi derrubado por um golpe de estado nem o presidente precisou antecipar a entrega do poder. Simplesmente renunciou e fugiu num helicóptero.

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A cidade de Bariloche vista das Piedras Blancas (Campola/Wikimedia Commons)

Nessas jornadas nefastas assistimos a milhares de argentinos povoar as ruas à noite, como soldados do exército da crise, lançados sobre o lixo: mulheres, crianças e homens raspando o fundo da condição humana. Vimos como a fome assolava crianças neste celeiro do mundo. Vimos nossos jovens partirem em direção a outras terras prometidas e nossos avós peregrinarem por uma aposentadoria escassa e tardia. Vimos milhares de pessoas baterem panelas em frente aos bancos que confiscaram suas poupanças, milhares se manifestarem nas estradas mais inesperadas com a sua demanda por trabalho. Vimos a fuga de presidentes, dirigentes escondendo-se da ira social. Vimos o Congresso incendiado e os responsáveis pela crise enfurecidos em razão das manifestações contra a marca indelével da sua corrupção. Vimos nossos juízes administrar a impunidade. Vimos a nossa classe dirigente alienar o patrimônio nacional. Conhecemos os índices de indigência e pobreza com o terror de quem perdeu a possibilidade de futuro. Um futuro pisoteado no presente e também no passado: já tínhamos assistido a um massacre, a desindustrialização, ao dinheiro fácil e uma guerra infame no Atlântico Sul. Foram 27 anos de um modelo depredador ao qual deram o nome de neoliberal, que começou na ditadura mas que se perpetuou na democracia. O paroxismo chegou com o sonho esbanjador do “agora somos Primeiro Mundo”, ilusão vendida por Menem e Cavallo e comprada por milhões de argentinos, e que foi usufruída apenas por alguns, os mandachuvas da política e os donos do poder econômico local e estrangeiro. Os argentinos foram desvalorizados e declarados maus pagadores, no maior default do capitalismo contemporâneo.

O governo de transição de Eduardo Duhalde, de janeiro de 2002, distribuiu programas sociais, desvalorizou a moeda, impulsionou leis para proteger as corporações e, com Roberto Lavagna, retomou certo controle sobre o Estado e sobre a política monetária, além de organizar uma transição modesta. Entre Carlos Reutemann e José Manuel De la Sota, o dedo sucessório do peronismo escolheu Néstor Kirchner. Para tirar a Argentina da beira do abismo, um então quase desconhecido dirigente patagônico tinha de ir na contramão daquela cidadela política e social de 1976, que persistiu também na democracia. Era uma necessidade imperiosa. Mas era possível?

E a história, concebida como o devir onde se entrelaçam causas e efeitos, a necessidade, a possibilidade e o acaso, foi o magma do qual emergiu Néstor Kirchner. Sua chegada ao governo em 25 de maio de 2003 pareceu unir – como parte de um rio subterrâneo – as pontas de uma linha de desenvolvimento econômico, social e político da Argentina cortada pelo Estado terrorista. Esse homem retomou tarefas inconclusas da geração dos anos 1970, à qual pertencia por idade, paixão e razão política. Na Argentina de 2003 era impossível ter um horizonte de previsibilidade sobre quem a governaria. Ou, para ser mais preciso, sobre quem e como deteria o poder, e não somente o exercício do governo. O sistema político de partidos – o bipartidarismo – baseado na representação de setores sociais, estava em crise terminal. E, embora Kirchner tenha chegado ao governo por acaso – foi o escolhido por falta de opção dentro do peronismo e por deserção do menemismo –, ele estava ali por uma necessidade imperiosa: resgatar a Argentina da crise. E era nessa necessidade que se fundava a possibilidade de seu governo. O certo é que esse peronista desajeitado – quase um desconhecido com apenas 9% de intenção de votos, que vinha do frio de Santa Cruz, que via a realidade torta como o seu olho esquerdo e talvez por isso via o que outros não viam –, chegou à Casa Rosada com apenas 22% dos votos.

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Vinhedo perto de Árboles no Uco Valley, em frente aos Andes em Mendoza, na Argentina (David/Wikimedia Commons)

 Ninguém desconfiava, talvez nem o próprio Néstor Kirchner, mas ele começava, então, a cumprir o destino de ser como um bater de asas de borboleta no horizonte previsível do poder conservador. Um bater de asas que desestruturaria o status quo a tal ponto que nada voltaria a ser como antes. Seu juramento se deu às 14h54, de 25 de maio de 2003, quando pousou a mão trêmula sobre a Constituição nacional. Estava ali o presidente eleito com a menor quantidade de votos de toda a história argentina. Da bancada de senadores, sua mulher o mirava com um olhar penetrante, que evidenciava uma fusão nascida muitos anos antes e que, a partir de então, seria objeto de toda sorte de teorias, interpretações e especulações. Além dos poucos votos, Kirchner representava um arranjo político de setores do justicialismo que ele mesmo rejeitava, como o duhaldismo, do qual divergia sobre o diagnóstico da crise e a maneira de superá-la.

 Naquele dia, uma grande quantidade de jornalistas havia montado guarda desde cedo nas imediações do apartamento da rua Juncal, entre Uruguay e Paraná, em busca de informações. Saberia-se depois o quanto Cristina Kirchner havia trabalhado na elaboração do anúncio do programa de governo e o quanto teve de lutar para que o marido aceitasse se vestir com o rigor protocolar exigido pela cerimônia de posse. Às 14h15, ao lado da filha Florencia, o casal recebeu os cumprimentos de cerca de 200 pessoas. No Salão Azul do Congresso Nacional aguardavam, entre outros convidados, os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Fidel Castro e Hugo Chávez, numa antecipação da direção que iria adotar o governo no campo das relações internacionais. Dez anos depois, Cristina diria que somente depois de assistir a uma gravação daqueles momentos de ingresso no Congresso Nacional, pode compreender a preocupação e a angústia que dominavam Néstor, que se apoiava permanentemente na presença de Florencia, procurando seus olhos e o seu braço, para o trajeto interminável pelos salões legislativos, até o momento de prestar juramento e de ser investido do poder presidencial.

Kirchner jurou sobre a Constituição Nacional à beira das lágrimas, enquanto Cristina o apoiava da bancada de senadora. Seu discurso marcou as linhas de ação que colocaria em marcha a partir do dia seguinte: “É necessário promover políticas ativas que permitam o desenvolvimento e o crescimento econômico do país, a geração de novos postos de trabalho e uma melhor e mais justa distribuição da renda. Como se compreenderá, o Estado assume nisso o papel principal. É que a presença ou a ausência do Estado constitui toda uma atitude política”, discursou Kirchner. Eram palavras que refletiam a sua ação como governador, que tinham sido transferidas às promessas de campanha e que começavam a definir um projeto de país com componentes políticos, econômicos, sociais e culturais.

Ele também citou uma das encruzilhadas do período, ao lembrar que a política tinha ficado reduzida à mera intenção de buscar resultados nas urnas e o governo “à mera administração das decisões dos núcleos de poder econômico com amplo eco midiático, ao ponto de que algumas forças políticas em 1999 puseram em foco a mudança em termos de uma gestão mais ordenada, mas sempre em sintonia com aqueles mesmos interesses.”

Porque ele sabia que essa combinação redundava num resultado visível, num Estado inerte e numa direção desinteressada em tomar as rédeas na mão. Tratava-se, como afirmou Kirchner, do “incremento do desprestígio da política”, que derivava na “destruição do país”.

As palavras daquele dia ratificaram ideias que se transformaram numa bandeira permanente: alcançar um capitalismo nacional capaz de reinstalar a mobilidade social ascendente, objetivo ausente em todos períodos de governo desde a recuperação da democracia, em 1983. Mais tarde, na Casa de Governo, logo depois de receber a faixa presidencial de Duhalde e de assinar as atas, não com uma caneta de ouro, tão usual entre dirigentes políticos dos anos 1990, mas com uma caneta esferográfica, de plástico, a famosa Bic, tão nacional e popular quanto o argentino que a inventou, Kirchner foi à Praça de Maio e literalmente mergulhou na multidão que o esperava, para desespero da segurança presidencial. Foi a primeira demonstração de sua relação nada convencional com o protocolo. “Há trinta anos eu estava aí, do outro lado das cercas. Por que não iria fazê-lo agora, se sou um deles?”, justificou.

 A frase de Kirchner parecia circunstancial, um comentário de passagem, sem maior profundidade, para explicar por que tinha feito aquilo, e foi dita na saída da enfermaria da Casa Rosada. Ao mergulhar na multidão, o presidente dera com a testa na câmara do fotógrafo Martín Acosta, do jornal Clarín. Mais comportado, seguindo o protocolo, Kirchner respondeu a saudação popular da sacada da Casa Rosada, o mirante privilegiado de todas as histórias do país, em companhia de Cristina e de Florencia, de Aníbal e Alberto Fernández, Oscar Parrilli e de alguns governadores.

O clima festivo, sustentado por uma parte ainda relativamente pequena da população que conhecia o novo presidente, só por pouco tempo deixou em segundo plano as evidências da crise política, econômica e social que Kirchner teria de enfrentar. O coeficiente GINI, que se refere a população empregada segundo a escala de renda da ocupação principal, alcançava então um número dramático: 0,475 (o índice permanece 0 se todas as unidades receberem a mesma renda e aumenta com a desigualdade na distribuição). Quase doze anos depois, graças a um processo sustentado de aumento de renda dos setores mais desfavorecidos, esse índice chegaria a 0,364.

Por sua vez, a dívida externa em 2003 representava 128,7% do PIB (44,4% em 1997) e 1.166,1% das reservas internacionais. A dívida pública nacional havia chegado a 106,1% do PIB. As reservas eram de apenas US$ 11.052 bilhões em 25 de maio de 2003. O desemprego constituía a evidência exasperante da crise: ele atingia 2,6 milhões de pessoas, fora um contingente similar que sobrevivia do subemprego. No total, um terço da população economicamente ativa não tinha uma ocupação formal. Diante desse panorama, Kirchner iniciava a tarefa de construir verdades e mantê-las. “Juntei-me às lutas políticas acreditando em valores e convicções que não tenho intenção de deixar na porta de entrada da Casa Rosada”, garantiu.

Foi esse, na verdade, o autêntico juramento de um presidente desconhecido, que chegou do frio patagônico disposto a resgatar a Argentina dos escombros de sua maior crise. 

Kirchner cumpria assim o teorema de Edward Lorenz, o efeito borboleta. Modificar com um bater de asas a previsibilidade do perfeito sistema de dominação ao qual tinham se submetido todos os líderes por décadas: respeitar, às vezes com resistências, quase sempre com cumplicidade, o status quo. Ou seja, servir aos interesses conservadores, a ideologia dos donos da terra, as empresas, a mídia, as finanças, o comércio e as corporações internacionais. O Kirchner inesperado pelo establishment esboçou as suas primeiras respostas recorrendo a uma imagem épica: “Viemos do sul, sabemos aonde queremos ir; aonde não queremos voltar”, prometeu.

Então, para reconstruir a Argentina, primeiro ele, e Cristina Fernández de Kirchner a partir de 2007, deveram caminhar no sentido inverso ao exigido pelo poder conservador, desmontando o modelo neoliberal. Deveriam consolidar o Nunca Mais mas exigir o Nunca Menos. Deveriam dissolver The Matrix, o país virtual alimentado na ilusão do dólar, da Argentina Primeiro Mundo, enquanto no país real milhões eram empurrados à marginalidade. Deveriam ser como Neo e Trinity: avançar sobre os restos resistentes do estado terrorista e do menemato; reconstruir o país industrial, reconstruir a política no seu poder territorial e moderno de representação social, corrigindo e recuperando velhos direitos e criando novos; limitar o poder das corporações de todo tipo e avançar sobre o poder virtual das corporações midiáticas que representam, como um estado maior político, à mesma virtualidade da especulação financeira: ao dólar como fetiche de acumulação de valor, contra o trabalho como produtor de valor, correspondendo-lhe não a realidade da gestão mas uma realidade virtual contada na capa de um jornal ou reproduzida até o cansaço como verossímil nas cadeias de rádio e televisão. Ali, como em The Matrix, os cidadãos deixam de ser sujeitos reais para se tornarem objeto do marketing, desenhos animados; e os partidos políticos da modernidade são representados por candidatos controlados por esse poder midiático.

Assim, as medidas tomadas em dez anos de kirchnerismo falam mais de Néstor e Cristina Kirchner do que todos os discursos e todos os registros virtuais. Nunca menos Estado, memória, verdade e justiça: aconteceram julgamentos célebres que levantaram a mais formidável cidadela de defesa dos Direitos Humanos reconhecida no mundo; mais distribuição de renda, desemprego no mesmo nível de 1975, e mais direitos sociais, políticos e individuais. O Nunca Menos incluía assim como piso histórico o Nunca Mais. Nesse caminho houve decisões, traições, baixadas de cabeça e deserções. Houve amor ao público e também certas corrupções que, salvo exceções, apareceram mais como carne para uma oposição política dispersa e minguada e para a ofensiva midiática. Onze funcionários nacionais foram processados em uma década e, antes mesmo de suas sentenças serem conhecidas, eles já tinham sido demitidos do serviço público. Assim, a tentativa da mídia de transformar casos de corrupção num estilo de gestão da coisa pública, por meio de um noticiário tendencioso e barulhento, não colou.

A contundência dos direitos e realizações conquistadas nos dez anos de kirchnerismo são avassaladores. A lista é longa: a Asignación por Hijo (variante do Bolsa Família), a nacionalização da YPF, a estatização das aposentadorias, a promoção da ciência e da tecnologia, com a repatriação de inúmeros cientistas, a distribuição de milhões de computadores para crianças e jovens, o restabelecimento de convênios coletivos dos trabalhadores, o casamento igualitário, a reforma da justiça, entre muitas outras iniciativas. Impulsou-se a massiva participação dos jovens na política. Romperam-se os laços que submetiam o país ao FMI, assim como se fortaleceu a unidade latinoamericana com o Mercosul e a Unasul. E foi sancionada a lei de meios da democracia e o fortalecimento da comunicação pública, na qual a informação é entendida como um direito humano básico e não como uma mercadoria. Ficou claro o perigo representado pelo monopólio das comunicações por corporações de mídia, capazes de moldar a opinião pública e submeter governos.

A morte de Kirchner em outubro de 2010 não deteve o processo de transformações. A dor popular, sintetizada num agradecimento extenso ao que foi conquistado durante aqueles anos, blindou o curso do governo de Cristina. O Nunca Mais ao esquecimento, à impunidade e à injustiça, se transformou no Nunca Menos de seu governo, em todas as áreas. Cristina ganhou as eleições presidenciais de 2011 com 55,15% dos votos – índice que a transformou na terceira candidata mais votada na história do país, depois dos ex-presidentes Perón e Yrigoyen.

Néstor Kirchner fez do Nunca Menos, da política e da defesa da democracia, a razão suprema para o exercício do poder. Ele travou uma batalha, às vezes sem sucesso, contra as intenções desestabilizadoras e de restauração conservadora, lutou para que a lei fosse igual para todos, para que as corporações respeitassem e cumprissem os direitos adquiridos. Essa foi e é a essência do kirchnerismo. As razões materiais pelas quais esse movimento resgatou a Argentina do abismo podem ser listadas. As outras, as simbólicas, as culturais, as do amor próprio do país recuperado, a ideia de que a “Pátria é o outro” como lema moral, se assentam sobre a materialidade do programa político, econômico, social, cultural e ético que define o relato kirchnerista como central neste século. As razões e paixões desta história, seus retrocessos, suas contradições, e a permanência de Néstor Kirchner no coração e na consciência dos argentinos, são como o bater de asas de uma borboleta, aquilo que não se espera mas acontece. Que não se espera mas define, quando acontece, o curso da história que está por vir.

Atualização

O empresário e ex-prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, venceu as eleições presidenciais em novembro de 2015, batendo o candidato da situação, Daniel Scioli, por uma margem estreita de votos, 51,46% a 48,54%. Macri tomou posse um mês depois, pondo fim a 12 anos de governo kirchnerista. Líder do Propuesta Republicana (PRO), partido de centro-direita, é o primeiro presidente não peronista e não radical a comandar o país depois do retorno à democracia, em 1983. Seu governo retomou, sob protestos dos movimentos populares, programas neoliberais similares aos que o país experimentou nos anos 1990.

 

Rua Caminito, atração turística no bairro La Boca, na cidade de Buenos Aires (Luis Argerich/Wikimedia Commons)

 

Dados Estatísticos

Indicadores demográficos da Argentina

1950

1960

1970

1980

1990

2000

2010

2020*

População 
(em mil habitantes)

17.150

20.624

23.979

28.120

32.625

36.903

40.374

43.835 

• Sexo masculino (%)

51,47

50,78

50,15

49,32

49,07

48,97

48,93

48,98 

• Sexo feminino (%)

48,53

49,22

49,85

50,68

50,93

51,03

51,07

51,02

Densidade demográfica
(hab./km²)

6

7

9

10

12

13

15

16

Taxa bruta de natalidade 
(por mil habitantes)**

25,38

23,20

23,37

23,12

21,22

17,99

16,80*

15,0 

Taxa de crescimento populacional**

1,98

1,56

1,67

1,52

1,31

0,92

0,86*

 0,71

Expectativa de vida 
ao nascer (anos)**

62,54

65,27

67,24

70,17

72,15

74,34

76,21*

78,0 

• Expectativa de 
vida masculina**

60,42

62,47

64,10

66,82

68,60

70,60

72,50*

74,6 

• Expectativa de 
vida feminina**

65,14

68,62

70,78

73,74

75,80

78,10

79,80*

81,3

População entre 
0 e 14 anos (%)

30,53

30,76

29,35

30,49

30,69

27,93

24,88

23,1

População com mais 
de 65 anos (%)

4,21

5,58

7,02

8,20

9,06

9,94

10,62

12,0

População urbana (%)¹

65,34

73,61

78,88

82,89

86,98

89,14

90,97

92,41 

População rural (%)¹

34,66

26,39

21,12

17,11

13,02

10,86

9,03

7,59 

A população do país 
na América do Sul (%)

15,25

13,96

12,52

11,67

11,03

10,60

10,25

10,09 

O país na população 
latino-americana (%)***

10,22

9,36

8,34

7,72

7,33

7,01

6,77

22,49

Participação na população 
mundial (%)

0,679

0,681

0,649

0,632

0,613

0,602

0,583

0,568

Fontes: ONU. World Population Prospects: The 2012 Revision Database.
¹ Dados sobre a população urbana e rural retirados de ONU. World Urbanization Prospects, the 2014 Revision.  
* Projeções. | ** Estimativas por quinquênios. | *** Inclui o Caribe.

Obs.: Informações sobre fontes primárias e metodologia de apuração (incluindo eventuais mudanças) são encontradas na base de dados indicada.

 

Indicadores econômicos da Argentina

1960

1970

1980

1990

2000

2010

2020*

PIB (em milhões de US$ a 
preços constantes de 2010)

213.522,4

319.491,0

464.616,4

...
 

• Participação no PIB 
latino-americano (%)

8,07

8,92

9,34

...

PIB per capita 
(em US$ a preços
constantes de 2010)

6.544,4

8.656,9

11.509,0

... 

Exportações anuais 
(em milhões de US$)

...

1.773,2

8.021,0

12.354,0

26.341,0

68.187,2

...

• Exportação de produtos 
manufaturados 
(em milhões de US$)

...

245,9

1.856,4

3.592,3

8.523,2

21.963,0

... 

• Exportação de produtos 
manufaturados (%)

...

13,9

23,10

29,10

32,50

33,20

...

• Exportação de produtos primários 
 (em milhões de US$)

...

1.527,3

6.162,7

8.759,2

17.721,7

44.211,3

...

• Exportação de produtos 
primários (%)

...

86,1

76,90

70,90

67,50

66,80

... 

Importações anuais 
(em milhões de US$)

9.394,0

3.726,0

23.889,1

54.158,8

... 

Exportações-importações 
(em milhões de US$)

-1.373,0

8.628,0

2.451,9

14.028,4

... 

Investimentos estrangeiros 
diretos líquidos 
(em milhões de US$)

788,0

1.836,0

9.517,3

10.368,0

...

População Economicamente 
Ativa (PEA)¹

7.410.400

8.823.200

10.015.867

12.630.394

15.574.307

18.924,770

21.907.194 

• PEA do sexo masculino (%)¹

78,26

74,79

72,67

66,87

60,80

57,66

55,95 

• PEA do sexo feminino (%)¹

21,74

25,21

27,33

33,13

39,20

42,34

44,05 

Taxa anual de 
desemprego urbano (%)²

5,9

14,8

7,7

... 

Gastos públicos em 
educação (% do PIB)

1,46

2,61

1,07

3,78

4,61

... 

Gastos públicos em saúde 
(% do PIB)³

...

...

4,96

5,25

... 

Dívida externa total 
(em milhões de US$)

27.162,0

62.233,0

155.014,5

130.818,9

... 

Fontes: CEPALSTAT.
¹ Para os anos de 1960 e 1970 a fonte é LABORSTA. ² Para 1990, a estatística se refere à área metropolitana; para os anos 2000, à 29 aglomerações urbanas. ³ Calculado a partir dos dados de Global Health Observatory da Organização Mundial da Saúde.  
* Projeções. | ** Estimativas por quinquênios. | *** Inclui o Caribe.

Obs.: Informações sobre fontes primárias e metodologia de apuração (incluindo eventuais mudanças) são encontradas na base de dados indicada.

Indicadores sociais da Argentina

1960

1970

1980

1990

2000

2010

2020*

Índice de Desenvolvimento 
Humano (IDH)¹

...

0,665

0,694

0,753

0,799

...

Analfabetismo urbano na 
população acima de 15 anos (%)²

...

...

...

2,10

1,50

1,00

...

• Analfabetismo 
 urbano masculino (%)²

...

...

...

1,70

1,40

1,00

...

• Analfabetismo 
urbano feminino (%)²

...

...

...

2,50

1,60

1,00

...

Matrículas no 
ciclo primário³

...

3.385.790

3.917.449

4.965.395

4.727.557**

4.697.752

...

Matrículas no 
ciclo secundário³

...

976.979

1.326.680

2.160.410

3.427.731**

3.693.688

...

Matrículas no 
ciclo terciário³

...

274.634

491.473

1.766.933**

2.520.985

...

Professores

...

332.670

668.456

...

Médicos

30.295***

45.340

79.216

...

Fonte: CEPALSTAT.

¹ UNDP. Countries Profiles. ² Para 1990, a estatística se refere à área metropolitana; para os anos 2000, à 29 aglomerações urbanas. ³ UNESCO Institute for Statistics. 
* Projeções. | ** A partir do ano de 1998 os dados de matrícula passaram a ser calculados segundo nova classificação, sendo os dados até 1997 não estritamente comparáveis com os dados dos anos seguintes. | *** Para o ano de 1960 o dado se refere aos médicos registrados, nem todos sendo residentes ou trabalhando no país.

Obs.: Informações sobre fontes primárias e metodologia de apuração (incluindo eventuais mudanças) são encontradas na base de dados indicada.

 

Mapas

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argentina-2.png

argentina-3.png

 

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