Música

Na história universal da música, o último século foi, sem dúvida, da hegemonia das músicas da América. Entre os séculos XVII e XIX, a música elaborada europeia – que se tornou conhecida simplesmente como “música clássica” – experimentou um processo tão extraordinário de desenvolvimento que parecia que seus princípios constitutivos se converteriam na base “universal” de todas as formas de expressão sonora, ofuscando outras tradições musicais, a tal ponto que estas pareciam condenadas a desaparecer ou a tornar-se folclóricas. É significativo que os desafios mais decisivos à hegemonia absoluta dessa música surgissem não a partir de outras tradições musicais, tampouco dos conflitos internos do centro da modernidade europeia, mas das margens de sua própria expansão territorial, as margens americanas do que se veio a chamar de “Ocidente”.

Do mundo afro-americano – que é e não é (simultaneamente) “Ocidente” –, por décadas discriminado e marginalizado, foram-se constituindo práticas e expressões sonoras analisadas aqui como “músicas mulatas” que, inclusive em tempos de acelerada globalização, impediram a hegemonia previamente inquestionável das práticas sonoras da “alta cultura” europeia. Em fins do século XIX, a afro-caribenha habanera (em suas vertentes de dança, merengue e “danção”); na primeira metade do século XX, o jazz dos Estados Unidos, de nítida influência afro, a rumba e o bolero afro-caribenhos, o tango afro-americano (do Cone Sul) e o samba afro-brasileiro; e na segunda metade, os afro-americanos (do norte) rock e hip-hop (rapidamente internacionalizados por terem acontecido no seio do país americano que no início dessa segunda metade de século se converteu no novo centro hegemônico do “Ocidente”), mas também a bossa nova brasileira, o pop “tropical” do Miami Sound, o calipso, o reggae, o reggaeton, o souk, a salsa e o jazz latino do Caribe, bem como as músicas “clássicas” sincopadas de Gershwin, Heitor Villa-Lobos, Ernesto Lecuona, Astor Piazzolla, Leo Brouwer e Ernesto Cordero, entre outros, tocaram uma fibra fundamental na sensibilidade não só dos naturais de suas origens, mas de pessoas de todas as partes do mundo, envolvendo inclusive os próprios centros da cultura “Ocidental”. Esses fenômenos serão examinados no decorrer deste verbete

Sobre o termo

Pelo seu valor descritivo e de síntese, foi cunhado, aqui, o termo músicas “mulatas”, mas sempre colocando a segunda palavra entre aspas, pois são compartilhados reparos comuns no continente a esse conceito. Mulato foi originalmente uma forma depreciativa de referência à mestiçagem “racial” entre europeus e africanos, e, denominando dessa maneira alguns tipos de música, poderia se dar a impressão de que sua característica definidora se constitui na “impureza” da combinação entre elementos, à maneira dos traços somáticos na genética. Mas o léxico popular latino-americano tem se caracterizado por transformar positivamente termos pejorativos em sua origem. Neste texto, a “mulatice” musical designa um processo enriquecedor da hibridez.

Músicas “mulatas”: modernidade e mercado

Antes do surgimento da modernidade, a produção, circulação e utilização da música constituíam um fenômeno quase simultâneo, gerando-se uma ampla variedade de expressões sonoras, territorialmente definidas. A descrição da rica multiplicidade de músicas tradicionais latino-americanas fica fora do alcance desta Enciclopédia, que examina os processos do último século e se concentra nos das últimas décadas. A música, ao ser invadida pela cultura letrada, com o desenvolvimento da notação ou escritura musical, deu início a um importante processo de diferenciação entre essas esferas: a elaboração e expressão sonora de significados passaram a estar mediatizadas pela comunicação. O processo alcançou proporções dramáticas por meio da – parafraseando Walter Benjamin – reprodução mecânica da arte dos sons: com o surgimento da mídia moderna (rádio, gravação, televisão, vídeo etc.) e concomitantemente de uma aguda penetração do mercado, que alguns analistas preferem chamar de “cultura de massas”. Esse fenômeno se iniciou por volta de 1920, com as gravações comerciais, a vitrola e o rádio, precisamente quando foram se cristalizando e popularizando as músicas “mulatas” da América. A relação entre sua produção, sua circulação e seu consumo resulta analiticamente inseparável dos significados sociais que expressam.

Poderia ser considerada uma enorme limitação de uma estreita visão sociológica passar por cima da dimensão estética e artística da música. Havendo, porém, atravessado um processo de diferenciação entre sua geração e sua realização, é igualmente limitante ignorar a existência das teias estabelecidas pela comunicação social e o mercado, por meio das quais seus significados se realizam. Os significados das músicas da América nestes tempos estão, pois, tanto em sua sonoridade, quanto em suas práticas.

A partir do capitalismo (e particularmente em sua etapa fordista de consumo maciço), diversas artes – e de maneira muito especial, a música – tornaram-se também mercadorias. A arte musical é atualmente uma importante geradora de receitas, e as músicas da América apropriam uma imensa proporção das rendas totais. As “estrelas” da performance, muitas delas de origem latino-americana, ganham fortunas; certos gêneros musicais converteram-se em uma das mais importantes vias de melhoramento econômico e ascensão social, e o sonho do estrelato, em uma das mais poderosas ilusões no mundo popular.

Apresentação de músicos de rua em Callejón de Hamel, em Havana, Cuba, em dezembro de 2011 (Sachi Gahan/Creative Commons)

Raízes das sonoridades americanas

As músicas “mulatas” da América constituem sonoridades basicamente “ocidentais” em suas expressões melódicas e harmônicas. Edificam-se – como a música “ocidental” – sobre um universo sonoro de doze sons organizados em escalas de sete. Mas, diferentemente da sucessão temporal linear ao redor da qual se estruturam as melodias e harmonias no “Ocidente” – isto é, suas métricas predominantes de 3/4 e 4/4 (parcelas de soma de sete e múltiplos de doze), constituídas por combinações de unidades equivalentes “with a regularly recurrent accent on the first beat of each group”, nas palavras do Harvard Dictionary of Music –, as músicas “mulatas” da América adotaram de sua outra tradição constitutiva, a África, o sistema metronômico de células. Este é formado por padrões de unidades – golpes ou silêncios –, de variadas dimensões temporais, nos quais os acentos não se estabelecem necessariamente no início do padrão, mas se encontram disseminados de acordo com os distintos tipos de combinações de tempo. A célula 3-2, que define a métrica da maior parte da música hispano-caribenha, representa-se em notação “ocidental” da seguinte forma:

Outros exemplos de células, entre numerosas variações, são as células do samba:

e a célula 2-3:

utilizada na bomba holané porto-rique­nha – originária de Curaçau –, ­no guaguancó habanero (de Havana) e no ma­tancero ­(de Matanzas) e na maior parte­ da música da santería cubana.

Ao contrário do tempo linear da ideia de “progressão” da modernidade “ocidental”, as células ordenam o desenvolvimento temporal das melodias e suas progressões harmônicas em uma concepção heterogênea do tempo: não em fluxo como uma onda, mas à base de células constituídas de pulsações variadas, expressando uma multiplicidade de entrecruzamentos temporais. Tal concepção do tempo, herdada na América das músicas africanas, representa melhor a realidade histórica – vivida no cotidiano – das sociedades do “novo mundo”: a simultaneidade de tempos históricos que expressaram magistralmente dois de seus mais importantes movimentos culturais, a literatura latino-americana do boom do realismo mágico e a mais destacada sociologia da dependência.

Ao tentar ordenar na notação da modernidade “ocidental” composições em métrica de célula, produz-se uma irregularidade nas acentuações que sua musicologia designou como formas “sincopadas”, que caracterizariam – segundo essa musicologia – todas as músicas “mulatas”. A métrica em células gera, para ouvidos eurocêntricos acostumados a medidas que expressam um tempo linear, a imagem de uma particular disposição ao caos. Citando novamente a “autorizada” voz do Harvard Dictionary of Music: “Syncopation is [… ] any deliberate disturbance of the normal pulse of meter”.

Entendendo-se por “normal”, obviamente, as medidas que expressam um tempo progressivo linear.

Os ritmos, a dança e a percussão

A métrica de células estimula a elaboração rítmica, mas não deve confundir-se com o ritmo. Sobre cada célula elaboram-se numerosos ritmos diferentes e combinações polirrítmicas que caracterizam diversos gêneros formadores de uma tradição musical. Por exemplo, a célula 3-2, em diferentes tempos, subjaz metricamente tanto a algumas senhoriais danças e românticos boleros, quanto à mais comovente guaracha, ao son cubano, ao tamborito panamenho, à plena festiva e ao melancólico seis mapeyé porto-riquenhos, e à maioria das combinações polirrítmicas da salsa.

Como a métrica de célula estimula a elaboração rítmica, a herança sonora africana na América se manifestou não apenas em expressões daquela maior variedade rítmica que diferencia as músicas “mulatas” de sua raiz “ocidental”, como também em uma maior associação aos timbres da percussão (os agentes de elaboração rítmica por excelência). Nas três grandes famílias culturais que se encontraram na América existiam tambores. Mas enquanto na tradição europeia, com sua ênfase em tempos simples, organizados em uma regularidade métrica, foram relegados paulatinamente ao papel de acompanhantes, na africana se tornaram fundamentais para a elaboração musical. Não é surpreendente que em lugares tão distanciados entre si como Nova Orleans, Caribe, Equador, Brasil e Paraguai, palavras cuja etimologia remete a denominações africanas de tambor (bamboula, tumba, bomba etc.) foram aquelas com as quais se denominaria a música tradicional mais apegada a tal herança étnica.

Do Uruguai até a bacia do Caribe, as músicas profanas tradicionais dos grupos afrodescendentes são quase invariavelmente rituais de comunicação entre tocadores de tambor e dançarinos. Nelas, um tambor marca o ritmo de base ou toque, e outro elabora numerosas variações do ritmo básico em repiques improvisados, enquanto os dançarinos em conjunto seguem o toque e individualmente ou em casais “dialogam” com o tambor improvisador. Na África, existiam também músicas de elevada elaboração melódica, mas as práticas de aculturação desenvolvidas pelo sistema escravagista, que agrupava cativos de distintas procedências para dificultar sua comunicação, resultaram em que sua herança sonora principal na América se desse no nível dos ritmos, cujas práticas compreendiam áreas geográficas mais amplas que os territórios das famílias linguísticas. As músicas das populações afrodescendentes da América são, pois, muito elaboradas rítmica e coreograficamente, ainda que simples em termos melódicos. As músicas “mulatas” herdaram das músicas negras sua riqueza rítmica e coreográfica.

Roda de samba nas ruas de Salvador, na Bahia (Luciana Batista/Creative Commons)

Práticas musicais descentradas

Em termos de estrutura e práticas de elaboração musical, as culturas “mulatas” americanas desenvolveram elementos compartilhados próprios, distintos de suas tradições. A conflituosa hibridez de sua colonização constitutiva e a multiplicidade de entrecruzamentos temporais em seu cotidiano e suceder histórico geraram uma formação cultural descentrada, que se chocou com a crescente cosmovisão iluminista da trajetória de suas metrópoles coloniais, identificadas com a modernidade e o progresso: com a visão de um tempo linear que conduzia a estados “superiores” de bem-estar. A música “ocidental” experimentou uma sistematização racional em torno dos princípios iluministas ordenadores do conhecimento que, na expansão territorial do “Ocidente”, apresentavam-se como “universais”. Estes se basearam na noção centralizadora de sistema, como conjunto complexo organizado por suas leis racionais básicas reguladoras por meio do qual tudo gravitaria em direção de um centro: monismo laico, sequela de sua tradição monoteísta.

A partir do século XVII, o processo racionalizador “ocidental”, com sua secularização progressista, liberou a expressão sonora de seu âmbito comunal imediato do ritual e do mito, facilitando a criatividade individual e fortalecendo sua dimensão autônoma como arte. Começou a primar a ideia da composição: um criador individual que antes que se “interpretasse” a música, pensava e elaborava os possíveis desenvolvimentos de algumas ideias sonoras. Isso pressupunha a noção da peça musical como universo definido delimitado, com princípio, desenvolvimento, clímax e final identificáveis pelo ouvido; como uma forma “arredondada”, um sistema, o que presumia, por sua vez, relações recíprocas entre seus componentes e suas leis racionais que governavam tais relações. O monocentrismo conceitual da “modernidade ocidental” pressionava, como na lei da gravidade de suas ciências físicas newtonianas, para que todos os elementos sonoros gravitassem em torno do princípio central da expressão individual, que é a toada. Em todo desenvolvimento dos diversos recursos sonoros – harmonia, ritmo, texturas, timbres etc. – visualizava-se “complementar” e, portanto, subordinava-se à melodia e às suas leis da tonalidade.

Durante o século XIX, a crescente complexidade da divisão social do trabalho na Revolução Industrial se manifestou, em nível sonoro, na transformação do canto uníssono em conjuntos vocais polifônicos cada vez mais complexos e hierarquizados. A grande música sinfônica apresentava a imagem da grande indústria. Como aquela, manifestava a tensão entre a produção coletiva e o desenho ou controle individual (muitas pessoas tocando o que uma compunha e dirigia); entre o enriquecimento extraordinário das capacidades individuais (do compositor) e o empobrecimento ou crescente passividade do papel da maioria (os músicos e receptores da sonoridade) na produção. Esse desenvolvimento representou no “Ocidente” o predomínio do canto sobre a dança, da composição sobre a improvisação, da expressão individual sobre a intercomunicação comunal, e do verbal sobre o corporal, que na cosmovisão iluminista significava também o predomínio do conceitual sobre o impulsivo ou da mente sobre a natureza.

Por outro lado, a formação cultural descentrada das sociedades “mulatas” se fortaleceu com o politeísmo animista em muitas expressões da religiosidade afro-americana, principalmente em Cuba, no Haiti, em Trinidad e Tobago e no Brasil, e com um catolicismo popular em que as diversas virgens e santos eram cultuados por si mesmos, relegando o central(izante) Deus pai a plano secundário. Essa estrutura sentimental anticentralista manifestou-se em práticas de elaboração musical – ou as gerou – nas quais se outorgou voz própria à harmonia e, sobretudo – pela força de sua herança sonora africana – ao ritmo, além da que expressava a melodia. Ou seja, a elaboração musical não se subordinou a um princípio ordenador unidimensional, estabelecendo-se práticas de diálogo entre os diversos elementos sonoros. Ao questionar a pretensão centralizadora “ocidental”, o diálogo descentrado entre toada, harmonia e ritmo representou – diante do universo sistêmico newtoniano, como conjunto integrado de relações recíprocas infinitamente repetíveis – um explorar das complexidades entre o ser e o converter-se; daí a importância também nessas músicas “mulatas” da sedução na dança, como “convite” erótico sugerido, sem desenlace determinado.

Composição “aberta” e improvisação

As músicas tradicionais dos grupos afrodescendentes da América Latina se conformam em torno dos chamados eventos sonoros “abertos”, nos quais, em uma recuperação ritual da memória, diversos executantes começam um intercâmbio musical improvisado com duração imprevisível: seu desenvolvimento depende da intensidade da intercomunicação. As músicas “mulatas” integram a riqueza dessa espontaneidade tradicional à intensidade dramática da composição, por meio de práticas musicais que combinam as sonoridades “abertas” com a forma sistêmica “arredondada”. Vejamos algumas dessas práticas “mulatas” partilhadas.

Nessas músicas existe, como no “Ocidente”, a composição, mas não se pretende que o compositor determine tudo. Sua prática de composição se baseia no reconhecimento da presença de outros e, intrinsecamente vinculado a isso, em uma visão da música não só como expressão individual, mas também como comunicação multidirecional. A composição “mulata” promove a participação ativa entre músicos e cantores, aos quais é permitida a incorporação de voltas e frases em que manifestam seu virtuosismo e estilo próprios. Ademais, combinando as formas “aberta” e “arredondada”, incluem-se seções específicas dedicadas à manifestação do virtuosismo dos diversos componentes de um conjunto musical, o que é conhecido no jazz como as jam sessions, na música tropical caribenha como as descargas e, no nível vocal, os soneos.

Nessas práticas, a improvisação é um fenômeno de comunicação, pois os soneos se improvisam com base no que o compositor quer expressar, e as descargas se baseiam também em jogos com a improvisação dos demais instrumentistas. Gera-se um encadeamento de improvisações virtuo­sísticas nas quais cada instrumentista que se lança na roda deve dialogar tanto com o compositor quanto com os instrumentistas que o precederam no encadeamento. Tais improvisações – presentes na maioria das músicas “mulatas” – não são então manifestações individuais, mas expressões de individualidade em um trabalho de conjunto. A composição não é, portanto, individual, mas uma prática de colaboração, que quebra, na produção simbólica, a teoria do individualismo possessivo, tão importante para a organização política nas sociedades ocidentais modernas! A improvisação é uma relação comunicativa que expressa reciprocidade, característica do comunal, em que a individualidade se constitui não em termos do que busca ou do que recebe (como na cosmovisão burguesa), mas do que oferece, do que dá. As individualidades não se diluem na coletividade, mas só têm sentido nos termos desta.

A comunicação pela qual se elabora a sonoridade nas músicas “mulatas” não se dá unicamente entre os que produzem a música (compositor, cantores e instrumentistas), mas também entre esses e seus receptores, os que a utilizam, ou consomem. O público das músicas “mulatas” – contrariamente à tradição clássica ocidental – poucas vezes é passivo. Comunica-se constantemente com os músicos de diversas formas, mas, sobretudo (seguindo sua herança das músicas negras), dançando. Tal comunicação é muito importante para o desenvolvimento espontâneo da improvisação, pois os músicos reagem a essas “vibrações” em resposta ao que estão tocando ou cantando e, nesse sentido, quebra-se a divisão entre produtores e consumidores na elaboração musical. Essa prática rompe também com a concepção de composição como universo predeterminado infinitamente repetível pela partitura, diante da incorporação constante da surpresa.

Uma última prática da elaboração musical compartilhada pelas músicas “mulatas” da América se encontra no valor que dão à heterogeneidade dos timbres, isto é, a quebrar a hierarquia entre os distintos agentes sonoros. As músicas “mulatas” aproveitam a tradição polivocal e a riqueza instrumental desenvolvidas pela modernidade ocidental, quebrando as hierarquias que aquela estabeleceu. Elas foram rompendo com a ideia de que alguns instrumentos tocam “a voz cantante”, enquanto outros “acompanham-nos”. Em vez disso, desenvolveram uma sonoridade de conjunto baseada em uma descentrada multiplicação integrada de timbres, exercendo – cada um – sua voz própria. A liderança desses conjuntos, contrariamente à tradição do concertino na grande música da modernidade ocidental, pode ser exercida a partir do baixo, do trombone, da percussão, do piano ou da voz. Na elaboração virtuosística das jam sessions ou das descargas podem participar tanto os instrumentos melódicos historicamente valorizados pela modernidade ocidental, como o violino ou o piano, quanto aqueles que esta havia subvalorizado – em especial os fora do universo tonal, os de percussão.

Nas sociedades latino-americanas –­ cujas músicas tradicionais entremesclam diversas heranças étnicas –, os distintos instrumentos foram se associando com identidades sociais particulares. Na maioria dos países, o violino se identificou com a tradição europeia, a percussão com a africana, e as flautas, principalmente, com a indígena; o violão, o quatro, o três e o guiro com o campesinato, e os sopros de metal com os trabalhadores urbanos de ofícios, ar­tesãos etc. Isso em termos gerais, ocorrendo importantes variações regionais (por exemplo, o violino no Brasil – com a rabeca – associou-se ao campesinato, como em lugares dos Estados Unidos e entre os indígenas guaranis). O valor que as músicas “mulatas” outorgaram à heterogeneidade de seus timbres contém implicações fundamentais no que diz respeito às concepções da sociabilidade: reafirma a utopia do comunal e de uma democracia social que valoriza o respeito às diferenças.

Por meio de um rico polirrítmico de voz própria, do diálogo tenso (não sistêmico) entre melodia, harmonia e ritmo, de uma métrica de células, e da combinação do sentido dramático da canção “arredondada” com a abertura improvisadora dos soneos, jam sessions ou descargas, as músicas “mulatas” afro-americanas tentaram reunir o canto com a dança, o romantismo com o erotismo, a composição com a improvisação, o conceitual estruturado com a espontaneidade corporal, e a expressão individual com a intercomunicação comunal.

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Mariachis tocando em Tenampa, no México (Guillaume Corpart Muller/Wikimedia Commons)

Plebeus e burgueses no salão de baile

A emergência e a trajetória das músicas “mulatas” da América estão indissoluvelmente vinculadas ao desenvolvimento da dança social, em casais, de salão. Na literatura histórica, existem numerosas referências à importância da dança nas músicas tradicionais da América Latina, mas nestas a dança se manifestava fundamentalmente como uma atividade grupal, similar aos country dances europeus e a suas danças aristocráticas de figuras, como a gavota ou o minueto. Dava-se em contextos sociais muito variados, como as celebrações de colheitas e os rituais religiosos ou de incorporação dos jovens na puberdade à sociedade.

Na vertente afrodescendente dessas músicas tradicionais existia já a importância e a autonomia do indivíduo e do par, mas sem se abraçarem, pois na herança africana o abraço simboliza o clímax dos ritos de fertilidade: a cópula. Conta-se, por exemplo, com descrições de rumbas nas quais um par dança sem se tocar: ela incitando e ao mesmo tempo esquivando-se do abraço diante do assédio erótico insistente do bailarino varão.

A dança em casais, associada aos ritos de fertilidade em músicas consideradas “primitivas”, não chegou a fazer parte das danças de salão europeias até bem tarde no século XVIII. No começo, por meio de uma combinação de passos em casais com figuras grupais na contradança e, posteriormente, com o desenvolvimento da valsa (waltz, inteiramente de casais), como parte da transformação burguesa da cultura aristocrática – um deslocamento fundamental na conformação das relações entre gêneros da modernidade.

A dança de casais abraçados foi introduzida na sociedade latino-americana em começos do século XIX como, segundo fontes da época, um “eco repetido da Europa”. Nesse sentido, seguindo a oposição binária dicotômica ocidental entre civilização (identificada com o raciocínio) e barbárie (associada à natureza e, portanto, em termos humanos, ao corpo), a dança de casais entrelaçados canalizou-se como dança de salão, diante das “bárbaras” danças populares que não se distanciavam da natureza, como eram em geral as dos afrodescendentes. Do salão burguês ou senhorial, moveu-se aos demais setores sociais, alguns dos quais participavam também daquela outra trajetória de dança que partia da herança africana. Combinando ambas as trajetórias, até meados do século XIX, sobretudo no Caribe e no Brasil, foram-se criando – de maneiras irremediavelmente problemáticas – novas danças de salão de casais entrelaçados com um distinto caráter americano, cujo ritmo mais difundido em escala internacional foi a habanera.

Essas primeiras danças de salão americanas surgiram de uma particular relação entre classes sociais em sociedades marcadas pela presença da escravidão negra. Seus principais criadores e músicos foram os trabalhadores urbanos de ofício – os artesãos –, entre os quais predominavam os negros livres e os mulatos. No entanto, os destinatários, em medida considerável, foram as classes “superiores” de fazendeiros, comerciantes e profissionais, em cujos cassinos os salões serviam para o encontro social entre sua descendência feminina e masculina para a perpetuação da classe entre “famílias de bem”. Na formação dos Estados nacionais, uma das maneiras mais comuns de integração dos negros livres e mulatos à cidadania se deu por meio da participação deles nos Exércitos (“carne de canhão”); e a formação dos negros em uma música nacionalmente compartilhada ocorreu sobretudo nas bandas militares. O timbre principal de expressão sonora foi então o dos instrumentos daquelas bandas: os sopros, principalmente os sopros de metal. Os artesãos viviam do trabalho manual e nesse sentido eram considerados – como os camponeses – “trabalhadores”, mas compartilhavam com as classes dominantes a urbanidade, a civilização que os distinguia da barbárie natural. Chegaram portanto a possuir também seus salões de baile.

Corpos sob controle

As classes “superiores” enfrentaram com certa ambiguidade o surgimento dessas novas “contradanças do país”, que geralmente combinavam uma introdução em métrica europeia ou passeio com uma seção dançante sincopada que foi se tornando cada vez mais prolongada, a ponto de, em Cuba e no México, ser chamada de “danção”. Por um lado, nos marcos de um crescente nacionalismo musical na Europa, viram com bons olhos a consolidação de danças de salão autóctones que os representaram como países com sua própria identidade e cultura. Essas novas danças ganharam rapidamente assentos privilegiados na simbologia nacional dos Estados emergentes: a valsa peruana, o merengue na República Dominicana e a dança criolla em Cuba, Curaçao e Porto Rico, entre outros. Por outro lado, temiam a barbárie erótica que pudesse introduzir-se com seus ritmos sincopados.

Tentou-se resolver essa tensão mediante dois processos na conformação das culturas cívicas nacionais. Os músicos artesãos que cobravam a menos-valia histórica da herança escravagista em sua complexidade “racial”, lutando pela respeitabilidade que permitisse que fossem considerados parte da emergente sociedade civil nacional, camuflaram os ritmos sincopados por meio de instrumentos melódicos. Nos conjuntos ou nas orquestras de baile, os ritmos jamais se expressavam com tambores – com os timbres identificados com a herança africana –, mas eram “melodizados” entre os arpejos das harmonias dos instrumentos de sopro, timbres herdados das bandas militares.

Em segundo lugar, pretendeu-se suprimir o erotismo subjacente à dança sincopada com a somatização dos modos. Enquanto a distinção civilização-barbárie na Europa identificou-se com a urbanidade diante do campo e se codificou, sobretudo, em modos à mesa que diferenciavam esses mundos nos umbrais entre o público e o privado que constituem as relações interpessoais “em sociedade”, na conformação das sociedades civis americanas, marcadas pela escravidão “racial”, a distinção centrou-se nos comportamentos sociais associados ao corpo. A consolidação das danças de salão criollas deu-se de modo paralelo à emergência de uma codificação propriamente americana da etiqueta: o Manual de urbanidade e boas maneiras, conhecido como “O Carreño”, escrito em meados do século XIX, na Venezuela – a primeira região hispano-caribenha a experimentar um processo de constituição nacional a partir do centralismo do Estado –, e logo difundido por toda a América Latina. Seu autor, Manuel Antonio Carreño (1812-1874), era um músico proveniente de setores médios, “elevado” à respeitabilidade de ministro de governo nacional. “O Carreño” ditava que o controle cultivado sobre o corpo e seus impulsos naturais era a base da civilidade: a continência, que a Real Academia Espanhola definiu como:

virtude que modera e refreia as paixões e os afetos do ânimo, e faz com que se viva na sobriedade e na moderação […] Diz-se continência porque contém o homem em sua dignidade, e não deixa que seu apetite o leve a ser besta […] Por antonomásia entende-se a moderação do apetite venéreo.

Os grandes debates sobre os modos na América “mulata” não aconteceram no que diz respeito à mesa, mas na inter-relação social do movimento e da aproximação corporal por excelência: a dança de casais e suas primeiras músicas “mulatas” – merengue, cumbia, maxixe, valsa criolla, dança do país e danção.

As gravações e o rádio: bolero e tango

A partir das músicas “mulatas” da América, a dança de casais tem sido um dos cenários cotidianos das lutas sociais no terreno movediço da hegemonia. A harmonia negociada nas construções nacionais iniciais na América Latina, entre as classes proprietárias que requeriam a deferência dos subalternos, e um artesanato “de cor”, que lutava para ser reconhecido como digno membro da sociedade civil, foi-se desvanecendo com as transformações associadas à passagem de uma economia marcada pelas relações escravistas e senhoriais para uma economia dominada pelas relações capitalistas de produção. A proletarização dos artesãos foi distanciando seu cotidiano das relações antes compartilhadas com as classes “superiores”; ao mesmo tempo em que houve a transformação interna das músicas nacionais de salão na direção de livrar-se de seu caráter respeitoso, abandonando a camuflagem da percussão e a dissimulação do erotismo. Por outro lado, a desintegração da agricultura tradicional gerou migrações camponesas para os centros urbanos. Mas as cidades do subdesenvolvimento não proviam empregos suficientes para atender à proletarização, e foi emergindo nestas uma plebe favelizada que afogava as penas de seu desenraizamento em cafés e prostíbulos, onde a dança de salão exacerbava – diante de olhos moralistas – seu erotismo.

Essas transformações sociais das primeiras décadas do século XX transcorriam paralelamente ao desenvolvimento da reprodução mecânica da música. Nos anos 1890, começou-se a produzir em escala comercial o fonógrafo. Os primeiros discos foram gravações para os setores abastados, com suficientes recursos para comprar a nova máquina. Destacaram-se as gravações de árias de óperas, generalizando a importância ocidental da canção diante das formas “abertas” e dançantes, que o pequeno formato do disco de então não podia conter. Mas a economia norte-americana já enveredava pela trilha que lhe daria eventualmente o predomínio mundial: a produção em massa para o consumo pessoal ou familiar. Uma economia em expansão não podia conformar-se com a limitada produção de luxo nem com a satisfação das necessidades básicas, as quais exibiam limites naturais. Era imprescindível converter, com a produção em massa, antigos produtos seletos em artigos de uso diário. Em vista disso, por volta da segunda década do século XX, a Companhia Víctor lançou-se a popularizar internacionalmente sua Victor’s talking machine ou vitrola. Depois, a produção de discos adquiriu importância por si mesma, quer dizer, não somente para estimular a venda de vitrolas, mas por seu próprio potencial comercial. Isso veio acompanhado pelo surgimento do rádio. Em 1922, estabeleceu-se em Havana a primeira estação de rádio latino-americana (a terceira no mundo); em San Juan, poucos meses depois, e no ano seguinte no México. O rádio difundia tipos de música e intérpretes, na fugacidade da transmissão, que os ouvintes tentariam preservar com a compra do disco.

Para as companhias de disco, era con­ve­niente gravar e difundir tipos de música que­ representassem um mercado amplo; que­ pudessem vender em vários países e diversos contextos sociais. Esse processo serviu de base para a substituição do predomínio das músicas nacionais de salão por gêneros que respondessem à sensibilidade continental. Na transferência do nacional ao nômade se generalizaram, sobretudo, o bolero e o tango “abolerado”, que combinavam o papel protagonista da canção – fortalecidos pelo formato inicial­ do disco –, o ritmo afro-caribenho e o­ acompanhamento violonístico de todo o campo latino-americano, conseguindo expressões ao mesmo tempo líricas e dançantes, no encontro transclassista da intimidade. Ao contrário das músicas nacionais de salão, de início correspondentes à hegemonia das classes “superiores”, o bolero e o tango expressavam a estrutura sentimental plebeia da população favelizada.

Antes do desenvolvimento da comercialização da música, os intercâmbios musicais entre países se davam principalmente por meio das migrações, das companhias itinerantes de espetáculos e, em um nível cotidiano mais generalizado, dos marinheiros mercantes, que levavam a música mais recente de um porto a outro. Nos três níveis, mas de maneira especial no último, predominou a interpretação de formato pequeno: a canção com acompanhamento de instrumentos que fossem fáceis de transportar e pudessem prover por si só elementos melódicos, harmônicos e rítmicos. Destacaram-se o violão e a sanfona de mão ou bandoneon.

Por volta de 1920, os principais portos da América hispânica eram Havana, com sua exportação açucareira, que atravessava um período de auge conhecido como “a dança dos milhões”, e Buenos Aires, que com sua exportação de carnes e cereais convertia a economia argentina e uruguaia em uma das mais prósperas do mundo. A música caribenha, segundo se elaborava em Cuba, e os tangos e milongas da Argentina e do Uruguai tiveram – em seu ágil formato pequeno de trios de violão ou violão acompanhando um bandoneon – uma ampla difusão nos portos do mundo, inclusive antes da generalização comercial do disco. A habanera, por exemplo, chegou a converter-se em gênero típico do porto de Barcelona. Quando se iniciou a difusão do disco, com o auge econômico que atravessa­vam esses países – nos quais setores médios relativamente amplos consideravam já a vitrola e o rádio parte fundamental do equipamento do lar –, a reprodução comercial de uma música considerada latino-americana concentrou-se nos polos de Havana e Buenos Aires. Em começos de 1920, o catálogo latino-americano da Companhia Víctor incluía cerca de trezentas gravações de Cuba e por volta de 350 do binômio Argentina-Uruguai para poucas dezenas de gravações dos demais países.

A cor e o som da nação: mestiçagem

As músicas “mulatas” da América, conhecidas e importantes inicialmente na península Ibérica, começaram a penetrar em outras regiões europeias no início do século XX, e por volta de 1920 e 1930 causavam furor em Paris, chegando a dominar os salões de dança das grandes capitais. As big bands do jazz swing alternavam com as grandes orquestras de rumbas, boleros e sambas. Proliferaram também as escolas de tango, e o erotismo dançante americano balançava as engomadas figuras das danças de salão europeias. Os músicos, que até então apenas complementavam com suas apresentações suas receitas como trabalhadores, foram-se profissionalizando, dedicação cotidiana que elevou a qualidade interpretativa.

O quase imediato reconhecimento popular europeu veio acompanhado pelo redescobrimento do valor da estética africana e afro-americana pelas grandes figuras do mundo artístico ocidental. Pablo Picasso e Henri Matisse, entre outros, nas artes plásticas, Igor Stravinsky e Darius Milhaud, entre muitos, na arte dos sons (ao contrário do filósofo Theodor Adorno, que descartou o valor das músicas “mulatas” por sua intrínseca vinculação com a cultura de massas e o mercado). Os choros de Pixinguinha e Os Oito Batutas, a negra norte-americana Josephine Baker, assim como a cubana Rita Montaner acompanhada pelas “mulatas” sonoridades da orquestra de Don Azpiazú, fizeram estremecer muitos europeus insatisfeitos com a contraditória (e então muito perigosa!) trajetória que exibia a modernidade (e seus pressupostos epistemológicos).

Esse surpreendente reconhecimento, inusitado aos olhos racistas de culturas marcadas pela tara da escravidão, teve importantes repercussões na intelectualidade latino-americana, em especial nos países com um mundo popular mais claramente atravessado pela herança cultural africana: os caribenhos e o Brasil. Como examinou com lucidez a jovem pesquisadora Mareia Quintero, os mais destacados e progressistas intelectuais de tais países se lançaram por campos e bairros populares a redescobrir em seu “outro interior” a cor e o som da nação (título do livro de Quintero, cujo subtítulo é A ideia de mestiçagem na crítica musical do Caribe hispânico e do Brasil 1928-1948). É significativo que os mais importantes intelectuais nos debates em torno da questão nacional nesses países tenham sido estudiosos da mestiçagem e de sua música: Pedro Henríquez Ureña e Enrique de Marchena, na República Dominicana; Tomás Blanco, em Porto Rico; e sobretudo Fernando Ortiz e Alejo Carpentier, em Cuba; e Mário de Andrade, no Brasil.

Esse redescobrimento de seu “outro interior” não se deu somente entre os analistas. Nesses anos surgiu também uma escola de compositores da tradição erudita ou “clássica” que tentaram integrar criativamente as diversas heranças étnicas de seus países, destacando-se Alejandro García Caturla e Amadeo Roldán, em Cuba; Heitor Villa-Lobos, Francisco Mignone, Lorenzo Fernandez e Mozart Camargo Guarnieri, no Brasil; Manuel Ponce, Silvestre Revueltas e Carlos Chávez, no México; e, um pouco depois, Héctor Campos Parsi, Amauri Veray e Jack Delano, em Porto Rico. Ainda que todos valorizassem suas heranças “folclóricas”, tenderam a escutar com suspeitas as expressões “mulatas” comercializadas.

As big bands e o cinema sonoro

O surgimento do cinema sonoro na América Latina esteve indissoluvelmente ligado a sua música. Em 1931, nasceu a indústria cinematográfica no México “sob o signo de suas canções”, nas palavras da historiadora Yolanda Moreno Rivas. De fato, a primeira película sonora, Santa, baseou-se em uma composição de seu mais celebrado compositor de boleros, Agustín Lara. Um ano antes se tinha iniciado a publicação anual no México – a ser difundido por toda a América hispânica – do Cancioneiro do sal de uvas Picot, que vinculou a então nascente indústria editorial da palavra impressa popular, com a indústria do cinema, em uma precoce “globalização” da comercialização de produtos manufaturados e da música popular.

O cinema mexicano começou difundindo em nível latino-americano sua música de charros e mariachis, e a mesma coisa fez o argentino com os seus tangos. Mas ambos logo descobriram a importância de incorporar a dança das músicas “mulatas”, sobretudo as grandes rumbeiras cubanas, que alcançavam celebridade em clubes noturnos de sua efervescente indústria turística, como o Tropicana. O diretor de orquestra cubano Dámaso Pérez Prado, que acompanhava sempre suas apresentações com espetáculos dançantes no palco, estabeleceu-se no México, e foi desde essa época e de sua indústria cinematográfica que internacionalizou o mambo. O cinema iniciou na América Latina o star system popular na música. Os argentinos Carlos Gardel e Libertad Lamarque, os mexicanos Jorge Negrete, María Félix e María Antonieta Pons, a brasileira Carmen Miranda, o cubano Benny Moré e o porto-riquenho Bobby Capó, entre outros, tomaram os postos no estrelato que haviam ocupado antes as grandes sopranos e os tenores da ópera italiana.

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O cantor e músico equatoriano Julio Jaramillo Laurido, cerca de 1956 (Maty1206/Wikimedia Commons)
Entre 1918 e 1933, foram proibidos nos Estados Unidos a venda e o consumo de bebidas alcoólicas, e foi por meio de seu negócio ilícito que os grandes cartéis da máfia ítalo-americana construíram suas fortunas. Havana, situada a apenas 150 km de Miami, e onde a bebida não era proibida, converteu-se em uma das praças principais do crime organizado. Sua música “tropical” viu-se associada aos grandes capitais do “baixo mundo”, o que fortaleceu a identificação inicial dos tangos e boleros à boêmia dos cafés, bares e prostíbulos. Mas esses eram também os anos da Grande Depressão, e o “baixo mundo” latino-americano entrelaçava contraditoriamente duas caras – a vida alegre e a vida trágica –, percorridas ambas por suas “estrelas” da música mais mimadas, como “o chefe” Daniel Santos. Oriundo do bairro proletário de Trastalleres, em San Juan, iniciou sua carreira em Nova York e alcançou o estrelato como cantor da Sonora Matancera, em Cuba, e depois como solista, alternando apresentações em célebres nightclubs com apresentações nas mais obscuras casas marginais das diversas capitais da América Latina “tropical”. Em todas essas cidades surgiram versões locais do internacionalizado “chefe”: o equatoriano Julio Jaramillo foi, talvez, sua mais emblemática figura.

A partir dos anos 30 proliferaram também casas de disco locais, e essa música de forte apelo urbano se difundiu por todos os bairros – inclusive rurais –, nos cafés, por meio das máquinas de disco conhecidas também por sua marca comercial Wurlitzer.­ Mas a receita principal dos músicos continuava a ser gerada por suas apresentações ao vivo. A música “tropical” mantinha seu caráter de intensa intercomunicação entre os intérpretes e o público.

O íntimo e o social: trios e migrações

Além de Buenos Aires, Rio de Janeiro, Cidade do México e Havana, o desenvolvimento de uma música amplamente latino-americana teve um quinto centro urbano de enorme importância: Nova York. Em 1917, os Estados Unidos concederam aos habitantes de sua colônia caribenha Porto Rico a cidadania, em grande medida para que servissem de “carne de canhão” na Primeira Guerra Mundial. O Exército estadunidense, como muitas esferas institucionais naquele país, era segregado racialmente, e os porto-riquenhos foram integrados nos batalhões negros. Em 1918, o mulato Rafael Hernández, então trombonista de bandas de aldeias, foi recrutado pelo Exército e tomou parte em sua banda de músicos. Nesta, entrou em contato com os extraordinários trabalhos de vozes dos spirituals e os atrevidos experimentos harmônicos do ragtime e do jazz emergente. Ao término da guerra, Hernández se estabeleceu em Nova York como operário fabril, em um período em que a imigração latino-americana na cidade não estava ainda segmentada por país de origem. Porto-riquenhos, cubanos, mexicanos e outros latinos viviam nos mesmos bairros e frequentavam os mesmos clubes. Neles predominavam os conjuntos musicais constituídos por artistas de diversas procedências. Assim, foi surgindo a noção de “latino” como termo comum abarcador.

Tanto o aparecimento e as necessidades da indústria do disco quanto a formação de uma comunidade hispânica mista nutriam uma intercomunicação musical mais intensa e fomentavam o desenvolvimento de formas comuns de expressão. Além disso, vários países latino-americanos experimentavam então importantes migrações do campo e de pequenos povoa­dos para as cidades portuárias, onde os gêneros folclóricos se punham facilmente em contato com as formas popularizadas pelo intercâmbio comercial. No México, por exemplo, a trova da península de Yucatán, em constante comunicação anterior com Havana, começou a migrar também para a Cidade do México.

Rompidos os contextos comunitários tradicionais da música, a expressão sonora tornou-se mais individual, e os bailes dos clubes sociais emergentes se converteram nos contextos de uma nova comunidade urbana. Embora o bolero tenha começado a se desenvolver em fins do século XIX, no intercâmbio entre os portos caribenhos de Havana, Veracruz, Cartagena e San Juan, foi por volta de 1920 que experimentou sua enorme difusão continental. Emigrantes como Rafael Hernández e a mexicana María Grever a partir de Nova York, com Guty Cárdenas, constantemente movendo-se entre Mérida, Havana, a Cidade do México e os Estados Unidos, estiveram entre seus primeiros grandes artífices.

A emigração “latina” para Nova York foi fundamentalmente operária. Os recém-chegados não contavam com instituições que apoiassem o formato da orquestra ou da banda, como tinham feito os governos municipais, o sistema escolar ou as instituições como os bombeiros em seus países de origem. E como comunidade operária, seus bailes poucas vezes contavam com os recursos para contratar uma orquestra. Os conjuntos dessa leva inicial foram então principalmente de formato pequeno, constituídos por trabalhadores que complementavam suas receitas com a música. Uma das grandes contribuições de Rafael Hernández à expressão musical latino-americana foi o desenvolvimento do formato pequeno, trio e quarteto. Combinando a música negra dos Estados Unidos com sua formação inicial nas bandas de aldeia, o jibarito Rafael incorporou ao formato pequeno a riqueza da elaboração harmônica. Com os jogos de vozes e a combinação de violões (instrumento de amplo registro, no qual se pode combinar em duo arpejos agudos secundados por variados acordes nos registros graves) logrou uma riqueza de sons raras vezes experimentada antes em conjuntos de tão poucos integrantes. A elaboração harmônica das vozes e dos acompanhamentos violonísticos, combinada com o lirismo melódico da canção e a riqueza rítmica afro-caribenha, fizeram da música de trios (e quartetos) um extraordinário veículo de expressão da criatividade popular. O mundo emigrante, na instabilidade de sua mobilidade, sua precariedade econômica e desenraizamento, encontrou identificações com esse formato musical também no nível simbólico: seus instrumentos populares, seu aspecto democrático de reunião de amigos e sua aparência de caminhantes – os trios tocavam, e seguem, atualmente, tocando, sempre em pé.

O cantor, compositor e instrumentista porto-riquenho Rafael Hernandez (Reprodução/Archivo Sala Museo Rafael Hernández)

Depois de Nova York, o jibarito Rafael viveu em Cuba e no México. Seu trio, constituído por dois porto-riquenhos e um dominicano, que em Nova York se chamava Trio Borinquen (nome indígena de Porto Rico), quando tocava na República Dominicana se rebatizava como Trio Quisqueya (nome indígena de Santo Domingo). Em todos esses países compôs canções que chegaram a ser emblemáticas: para Santo Domingo, seu mais difundido hino popular – Quisqueya, tierra de mis amores… ; no México foi oficialmente comissionado para escrever o hino regional de Puebla; e em Cuba, quem não considera “El cumbanchero” ou “Cachita” como duas das mais representativas canções cubanas?

A primeira gravação do Trio Borinquen foi uma guaracha que conta a tragédia íntima de um personagem popular que ganhava a vida mostrando de povoado em povoado sua deformação física: Monchín del alma . Múltiplos dramas de caminhantes povoam suas composições, com referências diretas ou indiretas aos mais variados contextos do fenômeno migratório. O deslocamento, a separação e a ausência são temas centrais também do segundo grande compositor de boleros porto-riquenho, Pedro Flores, e do samba-canção de Noel Rosa. A temática migratória atravessou repetidamente os boleros mexicanos: “ella se fué…” Vereda tropical de Gonzalo Curiel, 1936; do célebre Bésame mucho de Consuelo Velásquez, 1941: “piensa que tal vez mañana te encuentres muy lejos…”. Não foi coincidência que o trio que alcançou maior sucesso em toda a América Latina – Los Panchos – tivesse nascido em Nova York, formado por dois mexicanos e um porto-riquenho.

A bossa nova, o feminino e o feeling

Com exceção das compositoras mexicanas de boleros María Grever e Consuelo Velásquez, e da criadora das mais famosas valsas peruanas, Chabuca Granda, durante a primeira metade do século XX as mulheres latino-americanas se destacaram sobretudo como atrizes e bailarinas, primeiro do teatro bufo (com ênfase para as criações de Chiquinha Gonzaga no Brasil), e depois do cinema. Isso se fortaleceu com a ofensiva de investimentos dos Estados Unidos no pós-guerra na América Latina, liderada pelo nova-iorquino Nelson Rockefeller, e o crescente interesse de Hollywood em filmar a hegemonia do novo polo da modernidade civilizadora em seu complexo jogo simbólico com a alteridade do exotismo exuberante, mas por fim trivial, de seus recém-descobertos “bons vizinhos”. Em 1943, os filmes da meca do cinema com tema latino-americano somavam trinta; por baixo, dois anos depois, o número cresceu para 84. A maioria incluía jubilosas cenas de dança sob os acordes das grandes orquestras de latin beat. As relações de poder político-econômicas entre os Estados Unidos e seus “bons vizinhos” se representaram pelas relações de gênero desiguais: homem norte-americano (sobriedade, civilização e raciocínio) e mulher latina (sensualidade, primitivismo e barbárie). Como manifestava a estrela brasileira Carmen Miranda, com sensuais vestidos carnavalescos e chapéus com exóticas frutas tropicais, ao ensinar sóbrios e elegantes oficiais navais norte-americanos a dançar o “Uncle samba”: Well, there’s your Good Neighbor Policy. Come on, honey, let’s Good Neighbor it.

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Capa da trilha sonora do filme Garota de Ipanema, de 1967 (Reprodução/cinelatino.revues.org)
Os períodos pós-guerra tendiam a fortalecer as concepções da feminilidade como maternidade, o lar como o espaço feminino por excelência e a mulher como “complemento” do homem público. Traduzidos aos princípios da sonoridade ocidental, a mulher seria para o homem o que representavam para a melodia suas harmonias correspondentes. As descentradas músicas “mulatas” da América tiveram no pós-guerra de 1950 um papel fundamental na camuflada impugnação de tal princípio patriarcal. “Samba de uma nota só”, de Tom Jobim, constituiu-se no mais eloquente testemunho de como podiam ser protagonistas a harmonia e o ritmo. Toda a bossa nova, com a sucessão progressiva de escalas do armazém harmônico do jazz (músicas em constante intercomunicação, aliás), foi a expressão destacada do caráter descentrado das músicas “mulatas” em relação à harmonia.

No bolero, esse processo se manifestou com o surgimento do movimento denomi­nado feeling que, não por coincidência, elevou o papel protagonista feminino, tanto na interpretação quanto na compo­sição. Diante da tão poderosa tradição rum­­beira feminina anterior, a harmonia não só ofuscou a melodia como também o ritmo: as principais intérpretes do feeling (e mesmo os homens) se caracterizaram por um estilo de cantar parlatto. As cordas de metal do violão foram substituídas por cordas de náilon, e o rasgado rítmico por finos “tirandos e apoiandos”, enchendo de sutilezas de timbre os atrevidos experimentos harmônicos que faziam parecer “arcaicos” os tradicionais “acompanhamentos” de tônica dominante-subdominante que tinham inicialmente adotado os boleros de harmonia ocidental. Além dos cubanos Antonio Méndez e César Portillo de la Luz, os principais compositores de feeling foram as porto-riquenhas Myrta Silva, Puchi Balseiro e, de uma maneira especialmente destacada, Sylvia Rexach.

Da big band ao combo

O conceito abrangente de música latina, que começou a se desenvolver na época dos boleros e trios em Nova York, foi se fortalecendo, também nos Estados Unidos, com as big bands da espetaculosidade “tropical” de meados do século: as orquestras dirigidas pelos violinistas catalães Xavier Cugat e Enric Madriguera, as dirigidas pelo clarinetista Mario Bauzá (cubano), o pianista Noro Morales (porto-riquenho) e pelos timbaleiros Tito Rodríguez (porto­-riquenho) e Tito Puente (nova-iorquino-latino). Como em geral tocavam para grandes audiências norte-americanas e para emigrantes de diferentes países latino-americanos – gente de diferentes faixas de idade –, o repertório incluía gêneros de épocas e origens diversas. As orquestras de Tito Rodríguez e Tito Puente foram particularmente importantes. Com toda a espetaculosidade da sonoridade hollywoodiana das orquestras de Madriguera e Cugat e seguindo como aquelas o formato básico da orquestra de swing com sua percussão ao fundo, como estupendos percussionistas que eram, devolveram à sonoridade “tropical” made in USA um claro papel de protagonista no ritmo, e um sentido de identidade próprio – latino-caribenho amplo –, que não se sentia obrigado a se manifestar como um “outro amigável e exótico” diante da cultura anglo-americana dominante.

Nos anos das big bands protagonistas, especificamente em 1954, o congueiro e timbaleiro negro porto-riquenho Rafael Cortijo iniciou uma revolução tímbrica nos formatos das músicas “mulatas” combinando, em um conjunto que denominou “combo”, a tradição percussiva espontânea do rumbón de esquina com a tradição das orquestras latinas para a dança de salão, predominantemente de sopros de metal (combinação que se havia começado a ensaiar em vários países sem muito êxito, poucos anos antes, como foi o caso do ­maestro negro Abigail Moura, no Brasil). No combo de Cortijo, como no de Moura e em outros nesses mesmos anos, foi colocada, pela primeira vez na história da música popular “comercial”, na linha frontal uma combinação de percussão, canto e dança. Era constituída por congueiro, timbaleiro e bongozeiro, e o cantor principal com dois outros que lhe faziam “coro”, e que também tocavam a chamada “percussão menor” – maracás, guiro, clave e campana – e coreografavam a música, isto é, dançavam, reforçando a tradição do imprescindível diálogo entre dançarino e tambozeiro das músicas negras latino-americanas. Em um lado se colocavam o piano e o baixo, e na parte posterior os instrumentos de sopro (metais): trompete, trombone e saxofone. O papel protagonista do ritmo, em Cortijo y su Combo, não se manifestava apenas em sua linha de frente, mas também na contribuição dos instrumentos melódicos e dos cantores à complexa conformação polirrítmica. Os contrapontos entre baixo e piano, entre saxofone e trompete, e entre solista e “coro” exerciam uma evidente função rítmica, incorporando a composições descendentes de sonoridades negras a tradição de melodização de ritmos das primeiras músicas “mulatas” para a dança de casal.

Negritude

Cortijo y su Combo foi o primeiro grupo popular “comercial” – de que se tem notícia – a pagar os mesmos salários aos percussionistas e aos instrumentistas de formação acadêmica. Foi também pioneiro em levar à esfera midiática do disco e da então nascente televisão – como música popular dançante, não como folclore ou música “tradicional” – composições do momento da música negra principal de seu país, a bomba, gênero que de fato predominou em seu repertório, composto além disso pelas músicas “mulatas” de guaracha, merengue, plena, bolero, samba, cumbia e calipso. Foi ainda o primeiro grupo latino a interpretar canções em inglês; mas não o da metrópole, e sim o “cocolo” (do inglês criollo ) das Antilhas menores. Sua irrupção inovadora chamou a atenção do pedreiro mulato Ismael “Maelo” Rivera, que era então o cantor da mais reputada orquestra de baile de Porto Rico, significativamente batizada de A Orquestra Pan-Americana. Não por acaso apelidado de “Sonero Maior”, Maelo renunciou à distinta posição que tinha alcançado para ir cantar com um conjunto de maioria negra que tocava principalmente em prostíbulos.

As descargas dos sopros de metal, a riqueza harmônica do piano e as modulações vocais de Ismael Rivera e seus soneos­ deram uma complexidade e riqueza melódico-harmônica até então insuspeitadas a uma música fundamentalmente percussiva de “rua e esquina”. A sofisticação melódico-harmônica veio acompanhada de um enriquecimento das letras. Na bomba tradicional, como composição “aberta”, a canção praticamente não existia. Coro e solista alternavam frases referentes, sobretudo, a realidades míticas. O esquema manifestava a realidade cultural de um mundo social ao qual se tinha tentado despojar da palavra. Na guaracha, o populacho urbano do século XIX, e na plena e no calipso, o proletariado móvel das primeiras décadas do século XX elaboraram uma forma-canção antifonal que combinava não mais frases, mas estrofes do solista com estrofes do coro, mesclando a forma “aberta” com a estrutura “arredondada” em algumas composições que cantavam principalmente épicos do cotidiano dos bairros. As bombas, guarachas e plenas de Cortijo y su Combo anteciparam uma combinação de esferas temporais que haveria de alcançar dimensões revolucionárias na salsa: combinações do mítico e do cotidiano com o histórico.

O épico dos bairros manteve em Cortijo y su Combo um caráter central, porém enriquecido tanto em nível endógeno quanto exógeno, com canções que incorporavam a intimidade ou que integravam à sensibilidade local acontecimentos internacionais:

En qué pararán ¡Dios! en qué pararán las cosas, los rusos han tirado un satélite a la vuelta del mundo. (Onde pararão, Deus! onde pararão as coisas, os russos mandaram um satélite ao redor do mundo.) Ou Allá en Katanga hay un revolú, entre Lumumba y Kasavubú. (Lá em Katanga há uma revolú , entre Lumumba e Kasavubú.)

Em meados dos anos 50, enquanto começava a cobrir o mundo a sonoridade roqueira anglo, precisamente quando milhares de porto-riquenhos iniciavam as migrações maciças para as metrópoles que haveriam de caracterizar a realidade social internacional das décadas seguintes, Cortijo y su Combo popularizou seu olhar da mobilidade ascendente a partir do entrecruzamento de diversos tempos históricos. Obviamente presentes os intensos movimentos migratórios que se viviam, mas em evidente referência à grande migração constitutiva do Caribe – o tráfico de escravos –, a ritmo de bomba com tímbrica “mulata” sentenciava:

¡Déjalo que suba a la nave, déjalo que ponga un pié! ¡Que van a llevar latigazos, hasta los que están por nacer! (Deixe que subam à nave, deixe que ponham um pé! Que vão levar chicotadas, até os que estão por nascer!)

Nova York, o bairro e a salsa

As orquestras de Machito, Tito Puente e Tito Rodríguez representaram as mais elaboradas estilizações do maior desenvolvimento alcançado pelas músicas “mulatas” nos Estados Unidos. No entanto, expressavam o establishment musical latino, orquestras somente de grandes salões para momentos especiais.

Adotando o formato de combo que Cortijo havia introduzido na década anterior, economicamente mais viável para músicos experimentais e mais de acordo com uma sonoridade não de grande espetáculo ou ocasião, mas de cotidiano do bairro, os jovens da grande migração latina para Nova York, em contínua comunicação e intercâmbio com os músicos de seus paí­ses de origem, desenvolveram maneiras de conjugar uma enraizada e valorizada tradição cultural com algumas impugnadoras identidades de geração, sociais e étnicas. A salsa pegou da tradição das big bands seu sentido de identidade latina, amplamente extraterritorial, e seus ingredientes: os gêneros negros e “mulatos” anteriores. Não obstante, revolucionou sua sonoridade, mais por suas práticas que por seus conteúdos – sobretudo por meio de uma livre combinação de formas e ritmos com a qual “faltava com o respeito” à integridade de cada gênero, ao transgredir seus limites, as fronteiras entre um e outro, com um entrelaçamento combinatório em que se tornava difícil determinar qual gênero se estava tocando: se uma guaracha, um son, uma rumba, uma cumbia, uma guajira, um chachachá, um tamborito, um bolero, um samba, um merengue, um hip-hop, uma plena ou um guaguancó. De fato, eliminou-se a prática generalizada de identificar cada canção por seu gênero nas capas dos discos. As outras duas inovações fundamentais da salsa foram transformações mais criativas e indeterminadas das antigas práticas de improvisação vocal ou soneos e de improvisação instrumental ou descargas.

Concebendo como definitórios somente os conteúdos, e entendendo-os apenas em termos de estruturas e fórmulas que identificavam tradicionalmente os distintos gêneros, muitos músicos e comentaristas autorizados chegaram a argumentar que a salsa não existia. Não havendo de fato um ritmo que propriamente se pudesse chamar salsa, mas escutando como “salsa” variados ritmos afro-americanos identificados com gêneros prévios, outros a entenderam como um conceito “guarda-chuva”, que agrupava distintos gêneros da música tropical. E houve também quem a visse como um disparate nova-iorquino. Passaram-se anos antes que afinal se compreendesse a salsa como um movimento musical heterogêneo e variado, e mais identificado com “alguns sons” que como um gênero. “Alguns sons”, produto mais de uma novidade na maneira de fazer música (ou seja, uma prática) que de alguma estrutura ou “fórmula”. Mais ainda, quando a prática central que a definia – a livre combinação de ritmos, formas e gêneros afro-americanos tradicionais – evitava ou evadia sua possível fossilização em fórmulas.

Essa inovadora maneira de fazer música latina expressou suas práticas também em sua lírica. Nos anos 60 e 70, suas letras em geral constituíam afirmações da necessária unidade entre latinos e latino-americanos, expressões impugnadoras da desigualdade social e da discriminação racial, e de aspirações utópicas por um mundo mais justo e mais livre. De fato, uma de suas primeiras gravações importantes se intitulou “Justicia”, de Eddie Palmieri.

A salsa se difundiu com rapidez pela América Latina e a seguir pelo mundo todo. Em 2001, a web evidenciava clubes de dança que se anunciavam como de salsa em quase todos os países do Norte, Centro e Sul da América, em 23 dos países da Europa e em outros 15 ao redor do globo. Havia clubes de salsa em pelo menos 36 dos 50 Estados norte-americanos, e entre 8 a 10 cidades da Grã-Bretanha. Londres abrigava 53 estabelecimentos comerciais onde se dançava salsa (ainda que não exclusivamente); e 57 faziam parte da rede de cidades da pequena Holanda. Em 60% dos países citados se registravam também escolas ou professores de dança que se concentravam em ensinar salsa, desbancando a anterior hegemonia do tango, assim como da rumba, do samba, do jazz, das danças folclóricas e do balé, como o gênero de dança que mais pessoas se interessavam em praticar e aprender.

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A cantora brasileira Elis Regina (Reprodução)

O “homem novo” e a Nova Canção

Paralelamente à conformação da salsa entre os jovens latinos de Nova York, surgiram outros importantes movimentos musicais juvenis na América Latina. Um dos de maior impacto se autodenominou Nova Canção ou Nova Trova.

Diferentemente da salsa, que nunca se visualizou como expressão militante, ainda que suas composições fossem atravessadas por – e implicassem – claras repercussões políticas, esse outro movimento se concebia como “político” de maneira explícita, e em muitos países foi conhecido inicialmente como “canção de protesto”. De fato, seu aparecimento se associou a acontecimentos políticos de enorme transcendência: as grandes lutas estudantis de 1968 – que foram na verdade internacionais, mas com experiências latino-americanas dramáticas, como o Tlatelolco mexicano –, a construção socialista a partir das guerrilhas, identificada com Cuba, e a iminente possibilidade de uma via de massas para o socialismo que representou a vitória de Salvador Allende, em 1970, no Chile. Os focos iniciais do movimento foram precisamente esses países.

Em março de 1969, pôs-se em marcha o Grupo de Experimentação Sonora do Insti­tuto Cubano de Artes e Indústria Cinema­tográficas (ICAIC), que serviu de base para a consolidação do intercâmbio entre jovens cantores e compositores identificados com a utopia de Ernesto Che Guevara: a construção do “homem novo” que se iniciava em Cuba. Os principais artífices da Nova Trova foram Pablo Milanés, Noel Nicola e Silvio Rodríguez.

Diante da enorme difusão internacional da expressão juvenil roqueira que hegemonizavam os Estados Unidos e a Inglaterra, esses cantores e compositores tentaram fincar sua expressão juvenil revolucionária nas tradições sonoras nacionais mais afins à sua concepção do “homem novo”. A principal – e daí seu nome, trova camponesa – privilegiava a palavra e a expressão “séria” de seus anseios e suas lembranças. A Nova Trova se caracterizou, como a trova antiga, pelo violão como protagonista e pelo caráter poético de suas letras. Como grupos de jovens letrados, cultos na literatura e na música, estes não reproduziram a trova antiga tal e qual; esta foi enriquecida literária e musicalmente e por isso “nova”, termo que também remetia ao compromisso político com “a nova sociedade” socialista. O artista na Cuba socialista era um empregado das instituições do Estado, o que ajudou a fortalecer sua – também –­ nova concepção como “trabalhador cultural”, livre da “ignominiosa prisão do mercado e dos interesses mercenários capitalistas” (Tumas-Serna). Ou seja, a Nova Trova se caracterizou ainda pelo rechaço à chamada música comercial, o que diferenciava a trova camponesa “pura” das expressões “mulatas” atravessadas pela indústria musical.

A grande tradição cubana das músicas “mulatas” do Tropicana Nightclub, historicamente vinculada a uma Havana de vida alegre, ao turismo da máfia e à prostituição, que estereotipava um exotismo tropical, foi associada ao descaramento e ao relaxamento, que a Revolução se propunha a erradicar: as músicas negras dos carnavais, o guaguancó, e a santería, com o atraso da superstição ou a alienação do escapismo da “falsa consciência”. A mulatice da Nova Trova esteve vinculada apenas à mulatice da trova antiga: as síncopes da trabalhadora camponesa ou do migrante (do campo para a cidade) são temas de improviso da trova de Santiago. Pablo Milanés, o único evidentemente não branco do movimento, resgatou do bolero sua vertente feeling – harmonia como protagonista –, como solapada impugnação da tão poderosa ideologia cubana da suposta harmonia racial que tanto defendia a Revolução.

Esses princípios centrais da construção sonora do “homem novo” se replicaram por todo o continente em sua Nova Canção: o resgate das sonoridades camponesas como depositárias da alma de cada nação, o acompanhamento de violão e o papel protagonista – sobre a dança – da canção, da expressão poética, de tanto apelo junto aos estudantes. Tais princípios caracterizaram a obra de Enrique García Godoy, na Nicarágua; Amparo Ochoa, no México; Daniel Viglietti, no Uruguai; Mercedes Sosa, na Argentina; as primeiras composições de Edu Lobo e Chico Buarque de Holanda, no Brasil; grupos como Taoné e Haciendo Punto en Otro Son, em Porto Rico; e sobretudo os grupos e cantores e compositores vinculados às lutas políticas da Unidade Popular (UP), no Chile.

O Cone Sul contava com dois importantes antecedentes: o argentino rural Atahualpa Yupanqui – de porte absoluta­mente contrário ao urbano portenho – e a chilena Violeta Parra, no extremo oposto da gente embonecada dos bairros de elite de Santiago. Nas décadas anteriores ao surgimento da Nova Canção, os dois tinham-se dedicado a conhecer e difundir o folclore rural de dois dos países mais urbanos do continente. Inspirados sobretudo por Violeta – irmã ademais, de um reconhecido poeta “nacional”, Nicanor Parra –, estabeleceram-se peñas (espécie de bares que cumpriam o papel de círculos culturais: neles se cantava, recitava e lia peças de teatro), primeiro em Santiago em fins dos anos 60, e em todas as capitais do continente na década seguinte. Nelas, estudantes com pretensões poéticas celebravam a Revolução e o “homem novo” aos acordes de violões, charangos e flautas andinas. Os irmãos Ángel e Isabel Parra, Victor Jara e os grupos Inti-Illimani e Quilapayún, entre outros, com os cantores e compositores de outros países anteriormente mencionados, tornaram-se amplamente conhecidos entre os grupos estudantis de todo o continente. Após o golpe de Estado e a consolidação da ditadura no Chile, do fracasso das guerrilhas, do desgaste da Revolução Cubana e do triunfo do neoliberalismo, a utopia do homem novo foi se refugiando na intimidade. Nesta, alguns expoentes da Nova Canção conseguiram reciclar-se com composições de um elevado lirismo e sofisticação sonora, como o “Unicórnio”, entre muitas, de Silvio Rodríguez, “Árboles” de Roy Brown (um dos fundadores do Taoné) e muitas na ampla discografia de Pablo Milanés… ainda que alguns (já não tantos) jovens estudantes seguissem insistindo na Nova Canção de protesto original.

O percurso do tropical à Tropicália

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A cantora Maria Bethânia, em 1972 (Heinrich Klaffs/Creative Commons)
A Nova Canção teve também uma importante vertente “mulata”. A primeira produção de Manuel Monestel na Costa Rica – Cantamérica – seguiu fielmente as linhas da Nova Trova. Mas na busca compartilhada das raízes folclóricas, em um país de tão marcada – e ao mesmo tempo silenciada – segregação étnico-racial, maravilhou-se com a riqueza dos calipsos do inglês criollo da costa atlântica (na realidade, Caribe), e sua segunda produção se baseou nessa outra cara primitiva da alma nacional. Esse elemento da incorporação de tradições folclóricas afro à Nova Canção deu-se também entre outros expoentes como Alí Primera, na Venezuela; o grupo Convite, na República Dominicana; e entre alguns participantes dos grupos Taoné e Haciendo Punto, em Porto Rico. Diz muito do caráter da Nova Canção o fato de que muitos desses valiosos trabalhos “mulatos” passaram despercebidos no resto da América. Não tanto o de outras vertentes que conseguiram alcançar um distanciamento em relação a alguns dos princípios constitutivos do movimento: seu caráter eminentemente estudantil, o rechaço ao comercial, um sentido político estreitamente limitado às lutas pelo controle do Estado, sua identificação da alma nacional com um idea­lizado campesinato e a preponderância dos timbres violonísticos.

Seria possível incluir nessa outra vertente recriações líricas das músicas negras, como as de Susana Bacca a respeito do mundo afro-peruano e Totó “La momposina” acerca do afro-colombiano, em comunicação “espiritual” com a “diva descalça” Cesaria Evora das ilhas de Cabo Verde, produções posteriores aos anos de auge do movimento. No entanto, devemos nos concentrar nas três grandes expressões “mulatas” da Nova Canção da América, contemporâneas ao apogeu da canção de protesto: a “nova canção” salsera de Rubén Blades, o reggae jamaicano e o movimento brasileiro Tropicália.

O Brasil, assim como Cuba, viveu a problemática de uma generalizada imagem tropical estereotipada internacionalmente, mas em 1964, em contraste com uma política governamental confrontada a tais estereótipos por parte da Revolução, o controle do Estado no Brasil era exercido por militares de direita, sem uma política clara a respeito.

Diferentemente de Cuba também, na década anterior, a música popular brasileira (MPB) experimentou uma notável renovação por meio da bossa nova de Jobim e João Gilberto, as letras – com camufladas conotações de esquerda – de Vinicius de Moraes e a recuperação de uma trova “mulata” baiana, muito mais complexa que a guajira, sobretudo por Dorival Caymmi. Os principais fundadores da Tropicália em 1968, Caetano Veloso e Gilberto Gil, produziram discos na “onda” da MPB em 1966 e 1967, e consagrados cantores da MPB, como Elis Regina, gravaram algumas de suas composições. Também da MPB surgiram por essa época exemplos estupendos de canções de protesto: o mais destacado, entre vários, foi Chico Buarque.

A Nova Canção da Tropicália não teve de buscar no campesinato sua “alma”, mas ao contrário, enfrentar-se à banalização do ruralismo tropical, dando-lhe um caráter mais evidentemente urbano, transnacional e contemporâneo ao extraordinário trabalho realizado antes por um movimento renovador do qual se fazia parte. Isso por meio da incorporação do rock – e seus timbres de guitarras elétricas – e do reggae, a adoção de símbolos internacionais de protesto (como os dashikis de Gil, que reforçavam sua africanidade e a vestimenta “futurista” com os adornos “primitivos” de Caetano) e um estilo paródico altamente impregnado de humor. Além deles, distinguiram-se na Tropicália Maria Bethânia – irmã de Caetano e como intérprete inicialmente mais destacada do que ele –, Gal Costa e Tom Zé. A ditadura militar os expulsou do país em 1969, e o exílio em Londres os ajudou a fortalecer suas propostas e internacionalizar seus protestos sonoros, que se mantiveram vigentes até os dias atuais.

Reggae de protesto e salsa poética

Paralelamente à consolidação da salsa no mundo hispanofalante e da Tropicália no Brasil, surgiu o reggae na anglófona ilha tropical da Jamaica. Como a Tropicália, o reggae expressou, nos timbres contemporâneos do rock, ritmos autóctones e formas culturais desenvolvidas por sua negritude e seu “mulatismo”: no caso da Jamaica, principalmente sua religião e visão do mundo rastafári. Seu maior expoente foi o cantor e compositor e guitarrista mulato Bob Marley. Como a Nova Canção chilena, no que diz respeito a Allende, o movimento reggae participou ativamente da campanha eleitoral do então político socialista Michael Manley em princípios dos anos 70. Suas canções mais difundidas foram expressamente de protesto social, mas, ao contrário da canção de protesto hispano-americana, enfatizavam o pacifismo, tocando a sensibilidade antimilitarista da oposição à Guerra do Vietnã. Tornaram-se, pois, muito populares entre a juventude e os setores progressistas dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. Marley foi muitas vezes convidado a dividir o palco com continuadores da tradição anti establishment do rock progressista, como Bob Dylan, Marvin Gaye, Eric Clapton e Bruce Springsteen.

A grande estrela do reggae morreu muito jovem, em 1981, e sua presença internacional no Ocidente decaiu. Mas o gênero seguiu se desenvolvendo na Jamaica e expandindo-se por todo o Caribe. Mantém-se, atualmente, como um dos principais gêneros do mundo tropical.

O mais claro expoente da Nova Canção na sonoridade “mulata” salsera foi o panamenho (filho de cubana e cocolo de Santa Lucia) Rubén Blades, talvez seu único cantor e compositor propriamente. Alguns dos mais destacados cantores salseros – Héctor Lavoe, Ismael Miranda,­ Cheo Feliciano etc. – compuseram ex­­traordinárias canções, mas como parte de um repertório constituído fundamentalmente por músicas de outros compositores. Sua função criativa nesse tipo de prática de elaboração sonora, que combinava a composição “arredondada” com a improvisação “aberta”, encontrava-se principalmente nos soneos (a improvisação no cantar). Entre fins dos anos 60 até os anos 80, Lavoe foi o principal continuador e inovador do novo soneo salsero, iniciado pela ponte imediata entre a música tropical tradicional e a salsa: Ismael Rivera – o “Sonero Maior”. Os cantores que alcançaram maior notoriedade continua­ram sendo sobretudo grandes soneros: o dominicano José Alberto, “o Canário”, e os porto-riquenhos Gilberto Santa Rosa e Cano Estremera entre fins dos anos 1980 e 2000; e na atualidade Coco Orta, Domingo Quiñones e Víctor Manuelle, todos porto-riquenhos. Blades foi o único que se distinguiu como intérprete de suas próprias composições; mas sua notoriedade foi possível pelo fato de ser também um grande sonero. Seus improvisos em duas das poucas canções que popularizou de outros compositores – “Ojos”, de Johnny Ortiz e “Plantación adentro”, de Catalino “Tite” Curet Alonso – são dos mais ex­traordinários exemplos de soneos salseros da história.

À parte, cerca de três grandes compositores – os porto-riquenhos Ortiz e Curet Alonso, nas primeiras décadas da salsa, e o panamenho Omar Alfanno, nas mais recentes –, a composição salsera surgiu sobretudo dos instrumentistas dos conjun­tos, principalmente de seus diretores de orquestras: os nova-iorquinos-latinos Eddie Palmieri (pianista), Tito Puente (timbaleiro) e Willie Colón (trombonista), o pianista porto-riquenho Ralphy Leavitt, o flautista dominicano Johnny Pacheco e o baixista venezuelano Oscar D’León. Muitas composições de alguns deles compartilham as preocupações sociopolíticas da Nova Canção, mas as coincidências são muito mais explícitas na obra de Blades, que foi apelidado de “poeta da salsa”. É significativo que o disco mais vendido e difundido em toda a história da salsa tenha sido Siembra, de seu cantor e compositor Blades com a orquestra (e arranjos) de Willie Colón.

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O músico jamaicano Bob Marley, em um show em Dublin, em julho de 1980 (monosnaps/Creative Commons)

O rock nacional e o pop latino

O rock-and-roll foi inicialmente uma música “mulata” dos Estados Unidos que combinava a tradição negra dos rythms and blues com a tradição camponesa (hill-billy) da sonoridade country. Seus primeiros grandes expoentes foram os negros Little­ Richard e Fats Domino, e o branco “mulatizado” – proveniente do centro da tradição country – Elvis Presley. Surgiu em um contexto histórico no qual a identidade juvenil primou sobre outras identidades sociais, e logo começou a difundir-se internacionalmente como expressão de grupos jovens, principalmente brancos, dos países centrais do mundo anglofalante, como Rolling Stones e Beatles.

Como parte dessa rápida difusão internacional, foram surgindo os equivalentes latino-americanos que inicialmente cantavam em inglês ou traduziam para o espanhol ou o português êxitos comerciais anglos. Em extremos do continente lançaram os mesmos epítetos vulgarizadores: tanto a jovem guarda brasileira quanto a nova onda porto-riquenha foram conhecidos como referência ao “yeah yeah yeah” dos Beatles: iê-iê-iê no Brasil e a-ye-ye em Porto Rico. Nesse momento, Teen Tops (ao qual pertencia Enrique Guzmán), do México, foi o grupo mais popular no continente. Nas origens do rock latino destacou-se também a comunidade chicana dos Estados Unidos, sobretudo Ritchie Valens, que sacudiu o mundo com “La bamba”, e Carlos Santana, que adquiriu notoriedade interpretando – no célebre festival de Woodstock – uma versão roqueira do mulato-latino “Oye como va!”, do timbaleiro nova-iorquino-latino Tito Puente.

Desde fins dos anos 60 até princípios dos anos 80, o rock latino-americano padeceu diante da emergência da salsa e da Nova Canção, ainda que alguns de seus expoentes fusionassem elementos de rock com suas músicas nacionais, como Roberto Rohena na salsa e o movimento Tropicália no Brasil (fenômeno que se replicou com menor êxito em muitos países latino-americanos). O rock influenciou também outros que pouco mais tarde decolariam como importantes cantores pop: Sandro, na Argentina; Roberto Carlos, no Brasil; e Chucho Avellanet, em Porto Rico, entre muitos. Também na Argentina começou a destacar-se Charly García, com uma espécie de Nova Canção roqueira. O rock-and-roll anglo começou a diversificar-se em tendências como o heavy metal, o punk, a new wave, o ska e o techno pop, todas as quais geraram seus imitadores na região.

Foi diante das ditaduras militares do Cone Sul que nos anos 80 se conformou um rock nacional contestatório em espanhol que continua tendo vigência até os dias atuais: Los Prisioneros no Chile e numerosos conjuntos e músicos na Argentina – Los Enanitos Verdes, Los Fabulosos Cadillacs, Fito Paez, Miguel Mateos e Soda Stereo. Paralelamente, foram formados no Brasil Os Paralamas do Sucesso, no México Maná e Café Tacuba, no Peru o grupo de Miki Gonzalez e muitos conjuntos com filosofia parecida em quase todos os países. Nessa década começaram os festivais interamericanos de rock nacional, e se foi gerando maior intercâmbio entre os grupos, consolidando-se o gênero. Tanto na América Latina, quanto entre emigrantes latinos nos Estados Unidos (King Chango, banda venezuelana-americana de Nova York, Volumen Cero, chileno-peruana de Miami e Maria Fatal, basicamente mexicana da Califórnia), a proliferação de grupos continuou. O rock nacional pode ser dividido em duas grandes tendências: a que segue o estilo paródico – meio hippie – ­da Tropicália e a que se considera herdeira modernizada da Nova Canção.

Uma das mais impactantes fusões entre o rock e a música “mulato-latina” foi o Miami Sound Machine, iniciado pelo casal cubano-americano Gloria e Emilio Estefan. Eles dinamizaram o soft-rock pop romântico com um back beat “latino”, incorporando a força e a espetaculosidade da dança a um rock que raiava a balada. Sua canção “Conga!”, do disco Primitive love, foi a única na história a estar simultaneamente nas listas da Billboard de pop, dance, latin e soul. Pode-se sugerir que o Miami Sound foi precursor do estilo dançante junto às grandes figuras internacionais do pop rock, como Michael Jackson e Madonna. Nessa linha destacam-se, atualmente, os porto-riquenhos Ricky Martin e Chayanne, a nova-iorquina-latina Jennifer López, a mexicana Paulina Rubio e a colombiana Shakira, que têm ocupado os primeiros escalões do hit-parade mundial.

Outra vertente do pop latino é constituí­da por cantores e compositores que outorgaram maior amplitude temática à tradição da Nova Canção. Inicialmente, os mais destacados foram o brasileiro Roberto Carlos, o argentino Alberto Cortés e os porto-riquenhos Lucecita Benítez e Danny Rivera. Atualmente, o mais destacado é – com uma maior agressividade juvenil roqueira – o cantor e compositor porto-riquenho Robi “Draco” Sosa, compositor, além disso, das mais difundidas canções do astro pop Ricky Martin, como “María, la copa de la vida” e “Living la vida loca”.

Uma última vertente do pop latino canaliza sua expressão por meio da modernização tímbrica e harmônica de velhos gêneros latino-americanos, como Carlos Vives com o vallenato colombiano, Luis Miguel com os boleros mexicanos e porto-riquenhos e destacando-se amplamente sobre os demais, Juan Luis Guerra, com os merengues e as bachatas dominicanas.

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O argentino Fito Paez, em abril de 2012 (Manucalderon94/Wikimedia Commons)

O jazz latino

A inter-relação musical entre a cultura afro-estadunidense e o Caribe data pelo menos do princípio do século XX. O porto de Nova Orleans servia de fervedouro dessas relações, e Jelly Roll Morton – nascido nessa cidade e de descendência haitiana –, que muitos estudiosos consideram “o primeiro grande compositor de jazz” e “ponte entre o ragtime e o jazz”, era conhecido por seu latin tinge e incorporava habaneras a seu repertório. O estudioso e colecionador cubano Cristóbal Díaz Ayala assinala que ao surgirem as grandes orquestras de jazz, seus diretores costumavam visitar Porto Rico para contratar músicos, pois estes combinavam o swing afro-americano com uma formação musical que lhes permitia tocar bem as partituras. Assim, por exemplo, incorpo­rou-se, em 1929, à orquestra de Duke Ellington o trombonista Juan Tizol, que compôs entre outras duas das peças que no­ jazz são consideradas standards (sobre as quais improvisam todas as formações): “Caravan” e “Perdido”, os primeiros vislumbres do que haveria de desenvolver-se depois como o jazz latino.

A inter-relação continuou desenvolvendo-se ao longo do século, e se ampliou e fortaleceu com a bossa nova em começos de sua segunda metade. O congueiro cubano Chano Pozo se integrou, nos anos 40, à orquestra de Dizzy Gillespie, para a qual produziu, em 1947, a composição “Manteca”. O compositor cubano Chico­ O’Farrill foi nos anos 50 o arranjador das mais célebres orquestras – as dirigidas por Count Basie, Benny Goodman e Stan Kenton –, e muitas de suas composições foram interpretadas por instrumentistas do calibre de Charlie Parker e Dizzy Gillespie. Por essa época, o violonista brasileiro Laurindo de Almeida, que havia chegado aos Estados Unidos acompanhando Carmen Miranda, incorporou-se à orquestra de Stan Kenton e com ela produziu, em 1953, Brazilliance, “uma releitura dos ritmos brasileiros associados ao jazz”, segundo o estudioso Nat Chediak. Em 1963, Tom Jobim, João e Astrud Gilberto gravaram com o saxofonista Stan Getz o LP Getz/Gilberto que tirou os Beatles do primeiro lugar das paradas de sucessos.

A salsa se desenvolveu em estreita comunicação com o jazz. Quando pressões comerciais foram tornando cada vez mais difícil gravar suas prolongadas descargas jazzísticas, muitos de seus melhores diretores e instrumentistas começaram a consolidar um novo gênero, no qual o latino não seria uma simples influência do jazz, e o jazz não seria uma mera influência do tropical, mas seu elemento central: o jazz latino, gênero fundamentalmente instrumental. Seus grandes expoentes em um primeiro momento foram os nova-iorquinos-latinos salseros Eddie Palmieri (pianista), Tito Puente (timbaleiro), Ray Barreto (congueiro), Andy González (contrabaixista) e Dave Valentín (flautista). Logo se incorporaram outros músicos, destacando-se os pianistas Michel Camilo (dominicano) e Gonzalo Rubalcaba (cubano), e muitos instrumentistas do Grupo Irakere de Cuba (o clarinetista Paquito D’Rivera, o pianista Chucho Valdés e o trompetista Arturo Sandoval). Com a consolidação do gênero ressurgiram como jazzistas latinos muitos instrumentistas que sempre foram influenciados pela intercomunicação com o jazz, como os cubanos Cachao (contrabaixista) e Bebo Valdés (pianista), e o argentino Gato Barbieri (saxofonista).

Re-significação do universo cultural afro-americano, o jazz latino é provavelmente a mais complexa e sofisticada elaboração sonora do mundo contemporâneo. Destacam-se atualmente o pianista panamenho Danilo Pérez, e as experimentações com a fusão entre o jazz e as músicas tradicionais afro-latino-americanas dos porto-riquenhos William Cepeda (trombonista) com a bomba, David Sánchez (saxofonista) com os boleros e a música clássica sincopada de Villa-Lobos, Ginastera e Piazzolla, e Carlos Zenón (saxofonista) com a “mulata” música camponesa do Caribe hispânico.

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Bob Dylan, Joan Baez e o mexicano Carlos Santana em apresentação em Hamburgo, na Alemanha, em maio de 1984 (Heinrich Klaffs/Wikimedia Commons)

hip-hop, revolução nos guetos

Essa rica inter-relação entre o negro estadunidense e as músicas latino-americanas que o jazz expressou (e manifesta) requereu instrumentistas de uma sólida formação musical, vedada para muitos jovens dos guetos urbanos da América do Norte. O virtuosismo alcançado na salsa e no jazz latino tornava duplamente difícil incorporar-se a suas formações, assim como iniciar bandas juvenis dentro dessa tradição. As necessidades expressivas da intercomunicação entre os jovens afro-estadunidenses e os jovens emigrantes (ou descendentes de emigrantes) jamaicanos e latino-caribenhos foram conformando no Bronx nova-iorquino dos anos 80 um complexo de práticas artísticas que seus forjadores denominaram “cultura hip-hop”. Era composta de quatro elementos centrais: Djing (ou produzir música combinando seções de LPs e ritmos “scratchiando”, os discos), MCing (ou cantar uma improvisada poesia musicada no estilo do rap), Grafite (ou murais com pinturas de aerossóis) e B-boying (a acrobática break-dance em comunicação com a música do DJ e do MC, revivendo a ancestral tradição das músicas negras na América Latina). Um quinto elemento (secundário) foi a chamada beatboxing, que é a técnica de imitar com a boca sons instrumentais, especialmente de percussão (presente antes na tradição salsera e que faria famoso o grupo cubano Vocal Sampling).

O Djing (termo surgido de disc jockey) é uma forma inovadora de fazer música por meio da predominância contemporânea de sua reprodução mecânica. Inicialmente, misturavam-se pedaços de faixas de LPs tiradas da música disco, funk, jazz, afrobeat e reggae; mas logo começaram a ser incorporadas também gravações de salsa e outras músicas afro-latino-americanas. Os DJs começaram a utilizar os MCs (mestres de cerimônias) para esquentar os ânimos com poesia de rua oral improvi­sada, na tradição do toasting jamaicano e sua dub poetry, e os poetry slams do Nuyoricans Poets­ Café. O talento do MC, representante do público no cenário, foi denominado flow: gerar um fluxo artístico rítmico de palavras. Entre os primeiros MC do Bronx se destacaram os “latinos” Kid Frost, Mellow Man Ace e Big Pun, que incluíam em um mesmo disco temas em espanhol, inglês e spanglish, junto com afro-americanos como Afrika Bambaataa e Public Enemy.

Já no fim dos anos 70, companhias de disco independentes começaram a gravar esses encontros e o disco Rapper’s delight, do Sugar Hill Gang, teve extraordinária acolhida internacional. As grandes companhias se interessaram então em aproveitar comercialmente essa expressão da rua. Diante da amplitude midiática de suas audiências, a rebeldia do rap enfatizou – como no seu começo a salsa – uma paródia exacerbada do estereótipo do gueto como o “baixo mundo da criminalidade”. Niggas With Attitudes (que se poderia traduzir como “negros orgulhosos”) lançou o disco que se converteu em uma espécie de hino dessa geração, Gangsta gangsta, que em apenas seis semanas vendeu mais de meio milhão de exemplares. Em 1988, iniciou-se o I MTV Raps, que facilitou ao mundo inteiro o acesso televisivo instantâneo aos chamados “estilos urbanos” – crus, violentos, sexistas, intencionalmente ofensivos – dos guetos de afro-americanos, chicanos e nova-iorquino-latinos.

O reggaeton

Em fins dos anos 80, jovens dos cortiços (public housing projects) de San Juan e dos bairros do Panamá, que foram imigrantes em Nova York, começaram a gravar versões caseiras (underground) de rap em espanhol. Destacaram-se especialmente o panamenho (de mãe cocola e pai colombiano) Edgardo Franco, “o general”, e o nova-iorquino-latino “de retorno” Armando Lozada, “Vico C”, o primeiro com letras de alto conteúdo sexual e o segundo expressando violentas críticas sociais, que o levaram a ser chamado de “filósofo do rap”. Nos anos 90, eles receberam os mais prestigiosos prêmios da indústria musical: discos de ouro e de platina, prêmio Grammy etc. É significativo que ambos tenham tentado ajudar outros jovens do gênero. Vico C apadrinhou a carreira das primeiras rappers de sucesso – Liza M­ e Franceska – e outros DJs. “O general” estabeleceu no Panamá a fundação “Crianças pobres sem fronteiras” para ajudar o desenvolvimento de crianças em bairros como aquele em que se criou, e seu estúdio de gravação abriu as portas gratuitamente para jovens talentos sem recursos.

Em princípios dos anos 90, o hip-hop encontrou seu segundo centro importante de produção e difusão em Los Angeles. Ali se destacaram, com expoentes estadunidenses, grupos chicanos, sobretudo, Cypress Hill, cuja combinação de rap e rock foi imitada por grupos mexicanos como Molotov. Atualmente, a cultura hip-hop está universalizada principalmente – ainda que não exclusivamente – entre setores sociais marginalizados. Entre os rappers atuais distinguem-se os porto-riquenhos Welmo Romero e Siete Nueve e, de maneira especial (pois não só sua “lírica” é extraordinária, como também sua música), o grupo cubano Orishas.

O grupo de hip hop latino Cypress Hill em turnê na Alemanha, em 1998 (Mika-photography/Wikimedia Commons)

Do hip-hop surgiu em Porto Rico uma variante com ritmo e características próprias denominado reggaeton por sua ênfase inicial no reggae. Este é mais dirigido ao “comercial” e, diferentemente do hip-hop, foi desenvolvendo uma sonoridade instrumental, independente do mixing e scratching com LPs anteriores. Essa sonoridade incorporou tradições afro-caribenhas como a bomba e a salsa, ultrapassando o próprio reggae. De fato, os expoen­tes do reggaeton, como os latinos do hip-hop, sentem-se musical e socialmente herdeiros e continuadores da tradição salsera. O reggaeton veio acompanhado de um tipo de dança de explícito conteúdo sexual denominado perreo, no estilo da antiga tradição anglo-caribenha (sobretudo de Trinidad e Tobago) do waining dos carnavais. Essa forma de dançar, intencionalmente provocativa e para escandalizar as identidades sociais e de geração dominantes, replica-se em numerosas expressões juvenis na América “mulata”, como a denominada champeta do Caribe colombiano.

O reggaeton alcançou rápida popularidade mundial, e seus mais destacados expoentes – até os dias atuais, todos porto-riquenhos – Daddy Yankee, Don Omar e Tego Calderón, entre outros, são considerados grandes estrelas.

O culto e o popular

No alvorecer do século XXI, não é raro que se incorpore na América Latina – ainda que quase sempre como encore – alguma canção popular em um concerto de bel canto; como tampouco é raro escutar algum virtuoso da música popular, sobretudo do jazz latino, interpretar ou gravar composições da chamada “música culta”. Em nível de composição, essa porosidade é mais problemática, mas conta com importantes antecedentes na música “clássica”, já mencionados. Especialmente interessante é que esse processo esteja se dando também em direção inversa: músicas populares que “invadem” o campo do chamado “culto”.

Em 1977, o salsero nuyorican Willie Colón, autor de várias composições que aludiam ao tema da marginalidade social, produziu a música para um balé, que chamou de “balé latino”. Ele se inspirou em um poema antirracista muito difundido do escritor venezuelano Andrés Eloy Blanco, “Píntame angelitos negros”, que nos anos 40 o cubano Antonio Machín tinha musicado em forma de bolero. O balé se intitulou Baquiné de los angelitos negros, em referência à tradição afro-camponesa de celebrar a morte de uma criança que em sua inocência vai direto para o céu. Isso foi tema do mais importante óleo porto-riquenho do início do século XX, El velorio, de Francisco Oller, marco fundamental das artes plásticas no país. Essas referências inter-relacionadas, indiscutíveis valores da mais alta tradição artística (parte do que se considera o cânone), fortaleceram a­ intenção do “balé latino” de estabelecer a sonoridade popular salsera no âmbito da cultura, quebrando a dicotomia binária excludente entre o popular e o culto. Ambas as referências selecionadas – ainda que já canonizadas – constituíram expressões artísticas de inspiração democrática e claro protesto social.

O Baquiné de los angelitos negros foi um experimento sonoro que surpreendeu em sua combinação de timbres: uma poderosa seção (e descargas ) de percussão –  bongôs, congas e timbales – alternava o papel protagonista com o instrumento símbolo do mundo camponês, o quatro. Cumpriam um papel importante os sopros de metal em jogo com violinos e violoncelos. Ainda que os violinos tenham sido utilizados na música latina e no jazz, era muito raro escutar violoncelos no Caribe fora da música erudita. Entre os sopros de metal predominavam, como em geral na salsa, os trombones e os trompetes, mas cumpriam um papel importante outros timbres mais identificados com o jazz, como os saxofones alto e barítono. Utilizavam-se também outros instrumentos comuns das orquestras de salsa, como o piano, os baixos acústicos e a flauta, além de outros associados à experimentação tímbrica contemporânea do rock, como o baixo elétrico e o sintetizador. E finalmente, a guitarra elétrica e a bateria.

Por meio desse conjunto de timbres tão complexo e variado, o Baquiné de los angelitos negros incorporou ao “balé latino” elementos das tradições do jazz e da música erudita à livre combinação de formas da salsa. Não se recriou, portanto, um baquiné tradicional.

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A cantora Jennifer Lopez, em seu primeiro show no Brasil, em junho de 2012 (Ana Carolina Kley Vita/Creative Commons)

Uma outra maneira de ver e ouvir

Em 1973, o compositor popular porto-riquenho negro, Henry Álvarez, e o pianista salsero Larry Harlow, judeu e nova-iorquino, uniram esforços para produzir uma ópera. Ainda que se pudesse considerá-la mais influenciada pela tradição norte-americana do musical, os compositores dessa tentativa de dramatização salsera insistiram em apropriar-se do termo “clássico” de ópera. Assim como o balé de Willie Colón, considerou-se adjetivar o conceito “erudito” em termos de identidade: seria uma ópera latina. O argumento de Hommy, a latin opera é uma recriação afro-caribenha da ópera rock inglesa Tommy, muito interessan­te pela multiplicidade simbólica de suas variações. O personagem principal de Tommy era um menino cego e surdo-mudo que maravilhava por sua habilidade no jogo de pinball. Para Hommy (pronunciado Omí para remarcar sua negritude), sua deficiência não o impedia de manifestar-se como um virtuoso do bongô. A música não é, portanto, somente um meio pelo qual se expressa um argumento; converte-se em um elemento central deste. Hommy vê e escuta outras realidades, ou por outros registros ou filtros, com os quais interage, comunica-se ou “fala” pelo ritmo. A música – o ritmo, particularmente – converte-se na dimensão em que se manifesta seu “lugar” no mundo e na história. A malévola “Acid queen” de Tommy se transforma, interpretada por Celia Cruz, na maravilhosa e bondosa “Gracia divina”, perpassada de numerosas referências afrorreligiosas da santería cubana, do shango-cult em Trinidad e Tobago ou do candomblé do Brasil. Assim, a subcultura juvenil urbana da roqueira Tommy se transforma em todo um universo étnico-civilizacional alternativo. A latin opera culmina em um apoteótico finale exortando: “Olha-me, ouve-me!”. Uma referência a outra maneira de ver e de ouvir.

Em 1977, Harlow incursionou na suíte sinfônica, novamente com a definição identitária. La raza latina, a salsa suite, enfatiza o caráter nômade dessa identidade e o étnico-“racial” em tal nomadismo. Trata sobre o trânsito da África a Nova York, via Caribe. Sua primeira peça, que evocava a África, é um guaguancó com uma combinação de timbre simples de três vozes: coros, quatro e canto. Na medida em que a suite vai elaborando uma crescente complexidade sonora no trânsito territorial, La raza latina não é uma referência genética à perpetuação das origens, mas à complexidade crescente, em termos históricos, dessas origens em seus deslocamentos. Remete sobretudo a um processo de formação cultural que a salsa suíte tenta expressar por meio de uma elaboração sonora in crescendo. Essas três invasões salseras nas formas da “música clássica” se deram em torno de temáticas de índole étnico-racial, expressadas por mitos e arquétipos. Uma segunda tentativa de apropriação salsera da ópera, Maestra vida, de Ruben Blades, com o apoio musical de Willie Colón, localizou as mesmas problemáticas na vida diária.

A particular marginalização latina nos Estados Unidos levou a essa invasão explícita das formas eruditas. Atualmente, não apenas na salsa como também no jazz latino, nas variadas escolas de bossa nova, no pop latino-americano e inclusive no reggaeton, a maioria de seus instrumentistas – ainda que em geral provenientes de setores sociais populares – tem formação musical acadêmica, e incorpora as leis da harmonia, do contraponto e da elaboração melódica, extraordinariamente desenvolvidas pela composição clássica, à sua elaboração sonora popular simultaneamente “aberta” e “arredondada”. Por outro lado, os compositores clássicos das culturas “mulatas” – o cubano Leo Brouwer, o haitiano Frantz Casseus, o argentino Astor Piazzolla, o uruguaio Miguel del Águila, o mexicano Ernesto García de León, o dominicano Bienvenido Bustamante, o nova-iorquino-latino William Ortiz, os porto-riquenhos Roberto Sierra e Ernesto Cordero, entre muitos – têm incorporado, cada vez mais, não apenas motivos das músicas populares (o que historicamente se fez sempre na música clássica internacional), mas as práticas de elaboração sonora das músicas “mulatas”. Isso significa a camuflagem melodizada de ritmos, o diálogo descentrado entre melodia, harmonia e ritmo, a abertura para a improvisação, a valoração democrática da heterogeneidade dos timbres, as métricas de células (e seu efeito sincopado), a livre combinação de formas e tempos etc. Parafraseando o norte-americano Elie Siegmeister, autor de um dos mais fabulosos concertos para clarinete do século XX, estruturado sobre o jazz, tais compositores participam da tarefa de destruir a caduca divisão taxativa entre música erudita ou de arte, de um lado, e música tradicional ou popular de outro. Com isso, ajudam a destruir as diferenças sociais que essas divisões musicais têm simbolizado e ajudado a perpetuar.

 

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