O projeto neoliberal na América Latina teve sua origem na crise do capitalismo dos anos 1960. Seus fundamentos são o anticomunismo da Guerra Fria e o repúdio das políticas públicas keynesianas, que atribuem um papel decisivo ao Estado no desenvolvimento econômico. Se para Keynes o desenvolvimento dependia de políticas sociais voltadas a assegurar o pleno emprego e a redistribuição da renda por meio do controle estatal de preços, da inflação e dos salários, para os neoliberais foi a oposição e a crítica a esses princípios que fez surgir sua doutrina.
A hegemonia keynesiana descartou por quatro décadas (1930-1970) as teorias clássicas e neoclássicas de David Ricardo, Adam Smith, Alfred Marshall e Walras. Os centros de produção de conhecimento, os empresários e a elite se socializaram na linguagem keynesiana. Poucos chegaram a questionar o papel dinâmico do Estado no crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e no desenvolvimento técnico-científico. Seus opositores ocuparam um lugar secundário nos debates e ficaram à margem das principais propostas. Apesar disso, firmaram as bases do que seria o neoliberalismo do final do século XX.
A primeira associação surgiu na França, pouco antes da Segunda Guerra Mundial. O Centro Internacional de Estudos para a Renovação do Liberalismo teve como finalidade atacar a planificação e o coletivismo estatal.
De curta duração, foi o precedente que Hayek utilizou para criar em Mont-Pèlerin, pequena estação suíça de veraneio, a sociedade de mesmo nome. Constituída em 1947 para lutar contra o Estado social europeu e o New Deal norte-americano, reuniu-se pela primeira vez em abril daquele ano. Hayek procurou unir e organizar os que abdicavam do keynesianismo e queriam expressar sua repulsa às políticas baseadas em uma concepção social da democracia.
Os membros mais destacados da nova associação foram historiadores, economistas e filósofos. Entre seus fundadores estavam Maurice Allais, Milton Friedman, Walter Lippman, Salvador de Madariaga, Ludwig von Mises, Michael Polanyi, Karl Popper, William Rampard, Wilhem Ropke, Joseph Stigler e Lionel Robbins. As reuniões periódicas e a divulgação das obras do próprio Hayek, basicamente O caminho da servidão, escrita três anos antes, e as de seu mestre e amigo Ludwig von Mises, A ação humana (1949) e A mentalidade anticapitalista (1956), foram as ocorrências mais relevantes dessa sociedade.
As propostas keynesianas só não encontraram concorrência nos anos 50 e 60 em razão da dinâmica expansionista que o capitalismo central demonstrou depois de assumidas as recomendações intervencionistas. O acesso das classes sociais menos favorecidas ao consumo de bens duráveis somado ao aumento da demanda devido ao maior poder aquisitivo dos salários mostraram uma fisionomia amável do capitalismo. Este, dizia-se, havia superado os limites de um sistema excludente e desumano.
O otimismo generalizado no progresso e na revolução técnico-científica era um argumento consistente para demonstrar essa hipótese. Mais ainda, o acesso à educação, à saúde, ao trabalho e à moradia pelas novas gerações de trabalhadores teria modificado a estrutura social e de classes. O tempo das grandes greves e do confronto direto entre o capital e o trabalho foi substituído por uma estratégia conciliadora. O conceito de Estado de bem-estar social se estendeu, promoveu a integração social e lançou a tese de terem sido superadas, nos países de capitalismo avançado, a luta de classes e a exploração.
Na Europa ocidental, a assinatura de convênios de direitos humanos, econômicos, sociais e culturais – reconhecendo os direitos sindicais, de greve, formação profissional, proteção à saúde, seguridade social e assistência social – constituiu o marco de atuação política dos agentes sociais (1950-1954). Essa tendência se consolidou com a assinatura, em 1965, da Carta Social entre Reino Unido, Noruega, Suécia, Irlanda e Alemanha Federal. O capitalismo avançava com passos firmes. Keynes e seus discípulos eram seus arquitetos.
Na América Latina, a luta contra o subdesenvolvimento foi travada com base em uma perspectiva keynesiana. Em 1948, foi criada a Comissão Econômica para a América Latina das Nações Unidas (CEPAL), sob a égide de Raúl Prebisch. Industrializar e transformar as estruturas oligárquicas por meio de uma intervenção do Estado era o caminho para superar as relações centro–periferia. O processo de modernização fez-se acompanhar por altas taxas de crescimento econômico em meados da década de 1960, o que permitia vislumbrar a possibilidade de romper o círculo do subdesenvolvimento.
Dentre as doutrinas desenvolvimentistas, adquiriu notoriedade a obra de W. W. Rostow: Etapas do desenvolvimento econômico. Um manifesto não comunista. Suas formulações eram o complemento às políticas keynesianas no tocante à atuação do Estado. Sua proposta foi simples e atraente. A etapa de decolagem econômica seria acompanhada por um processo de poupança com altas taxas de investimento e uma tecnologia de elevado rendimento e baixo custo. A etapa seguinte, a marcha rumo à maturidade e à era do consumo de massas, levaria a América Latina a ingressar em um processo generalizado de desenvolvimento autossustentável. Nessa dinâmica, o Estado interviria planificando o investimento e assumindo princípios democráticos representativos ao favorecer uma opção de mudança social – liderada por uma burguesia nacional cujos valores culturais e anseio de modernidade a integrariam às sociedades ocidentais.
Hegemonia do mercado
Esse ciclo, no entanto, esgotou-se. As contradições entre os centros e as periferias, entre países dominantes e dependentes se aprofundaram a ponto de abalar política e socialmente todo o continente. A Revolução Cubana serviu de aviso, e a vitória da Unidade Popular, no Chile, em 1970, evidenciou o limite das reformas keynesianas tão bem defendidas pelo governo democrata-cristão de Eduardo Frei Montalva, cujo lema de “revolução em liberdade” havia sido criado para diferenciar-se da proposta de desenvolvimento socialista defendida por Havana. Em seu conjunto, esse período, extraordinário na evolução do capitalismo, buscou superar as contradições inerentes a uma ordem de dominação fundada na exploração do trabalho pelo capital.
Ainda que fossem anos de expansão, a crise da década de 1970 impôs um duro golpe às políticas keynesianas. Um novo ciclo recessivo questionava seus argumentos. O modelo keynesiano, elaborado com o propósito de resolver os problemas das economias ocidentais, enfraquecia diante da inesperada coexistência de inflação e desemprego. Sua aplicação na América Latina, filtrada pelas propostas da CEPAL, deparava com dificuldades específicas para realizar as transformações da estrutura produtiva, que tinham como objetivo uma aplicação de tecnologia excessivamente poupadora do fator trabalho, e que impedia uma redistribuição intersetorial equilibrada do trabalho e altas elasticidades da demanda que provocavam uma significativa entrada de produtos de alto valor agregado, deteriorando a balança de pagamentos e a relação de troca.
Para os detratores do modelo keynesiano, era o momento de propor uma nova ordem para o desenvolvimento do capitalismo, centrada na hegemonia do mercado. Em plena Guerra Fria e em um clima de anticomunismo radical, aqueles economistas, sociólogos e cientistas políticos que haviam sido ridicularizados por defender o mercado como fonte de equilíbrio político e social foram alçados a salvadores do capitalismo. Em 1974, Hayek seria agraciado com o Prêmio Nobel de Economia. Dois anos mais tarde, seu discípulo, em Chicago, Milton Friedman, obteria o mesmo prêmio. O keynesianismo terminava seu reinado com a crise do Estado de bem-estar.
A recessão fez do capitalismo uma ordem social vulnerável e, para seus seguidores, sua crise interna supunha uma mudança na guerra contra o comunismo. Inverter esse processo estimulou um discurso apocalíptico no qual o pensamento político reacionário e conservador foi complementado com as doutrinas econômicas liberais. Era preciso recriar o sistema, atribuir um outro papel ao Estado e construir um novo pacto social. Não se tratava de reeditar o liberalismo antiquado, e sim de mudar os rumos do capitalismo, da Guerra Fria, de buscar a derrota do comunismo. O pensamento neoliberal diferenciou-se do pensamento liberal original, que se encontrava direcionado contra o pré-capitalismo e era progressista, enquanto o neoliberalismo surgiu como doutrina reacionária, que condicionava a legitimação da sociedade burguesa à ilegitimação do projeto socialista.
O neoliberalismo se propôs então a tarefa de impor sua linguagem e divulgar seu pensamento. As universidades redefiniram planos e programas de estudos. A formação dos economistas assumiu um perfil crítico em relação às doutrinas intervencionistas do Estado de bem-estar. O mercado converteu-se na coluna vertebral sobre a qual seria edificado o capitalismo pós-keynesiano. Suas categorias essenciais seriam economia e democracia de mercado, liberdade de escolha, justiça com equidade e igualdade de oportunidades. Hayek, Von Mises, Friedman e John Rawls, os pais fundadores, enfatizaram em seus escritos o irracionalismo expresso na necessidade de as pessoas serem submetidas às forças impessoais do mercado dotadas de coordenação intrínseca e que transcenderiam o conhecimento humano e sua capacidade de decisão. Elas conduziriam à combinação entre liberdade e desigualdade econômica mediante os intentos de nivelação e criação de uma igualdade de resultados, apontando para a supressão da primeira e o estabelecimento do arbítrio socialista.
Com o fim da Guerra Fria, o capitalismo adquiriu um novo significado. Considerado vencedor, foi apresentado como alternativa de reconstrução nos países do Leste Europeu. Foi a transição do comunismo para o capitalismo de livre mercado. Novos conceitos foram acrescentados ao neoliberalismo. Não seria a crítica ao Estado de bem-estar nem a luta contra o socialismo o que moveria a doutrina neoliberal – agora seu discurso cobria todo o planeta.
Até mesmo a China, embora comunista, viu-se imersa nessa dinâmica. Proclamou-se o fim da história e a globalização se impôs como um processo irreversível, com seu eixo girando em torno do neoliberalismo como força de gravidade. Já não era mais uma doutrina política; transformou-se em conhecimento científico-racional sobre o qual se deveria levantar a nova ordem mundial. A última década do século XX envolveu o mundo no totalitarismo neoliberal. Foi seu momento de máximo esplendor. Mas, uma vez implementadas suas políticas, o começo do século XXI demonstrou os limites desse projeto. O aumento da exploração, da pobreza e da desigualdade foi acompanhado pela deterioração do meio ambiente e da qualidade de vida de mais de dois terços da população mundial. A ilusão neoliberal foi questionada e entrou em crise.
Origens antidemocráticas no continente
Se a crise interna do capitalismo era evidente, os defensores do neoliberalismo não tiveram problemas em culpar por todos os males as políticas keynesianas de intervencionismo estatal. O diagnóstico neoliberal foi contundente: o desemprego é o resultado das políticas de pleno emprego e dos direitos trabalhistas; o empobrecimento é resultado das políticas distributivas que limitam a concorrência e o crescimento econômico; o subdesenvolvimento é fruto do protecionismo estatal que bloqueia o desenvolvimento do setor privado; e a deterioração do meio ambiente é consequência de sua insuficiente privatização. Esse intervencionismo derivava de uma suposta dinâmica socialista inerente aos democratas que buscavam impor a lógica da política, suas negociações e seus compromissos, sobre a lógica econômica, baseada na competição. O neoliberalismo propunha uma democracia de mercado, em que imperavam a lei da oferta e procura e a soberania do consumidor.
Com esses diferenciais, em meio à Guerra Fria e à busca de uma alternativa ao socialismo, o neoliberalismo se apresentou como a solução definitiva ao comunismo, à crise do capitalismo e às políticas intervencionistas. Na América Latina, sua implementação foi acompanhada pela quebra das ordens constitucionais e por uma involução política antidemocrática. Primeiro no Chile e, em seguida, na Argentina, no Uruguai, no Brasil, na Bolívia e no Paraguai.
As mudanças ocorreram sob os regimes militares. O assassinato, o cárcere, o desterro, o exílio e as demissões foram a resposta para eliminar os opositores. Seus próprios ideólogos não ocultaram esse princípio articulador do neoliberalismo na América Latina, interpretando-o como uma qualidade específica. Assim, apresentaram as Forças Armadas como instituições comprometidas com a modernização neoliberal, concebida como “projeto libertário”.
Se no Chile seus ideólogos se ufanavam de ser cúmplices e colaboradores da política de morte e desaparecimento de adversários políticos, insistiam na necessidade de considerá-la um fator relevante e necessário, ainda que de transição, para obter êxito no processo de modernização neoliberal. Tratava-se de diminuir o peso da violação dos direitos humanos e de atribuí-la às condições específicas daquele país, onde se destruiu uma importante ofensiva socialista, absolvendo o neoliberalismo de qualquer compromisso definitivo com a ditadura.
Para seus partidários, o reconhecimento e o sucesso mundiais obtidos pelo neoliberalismo eram razões suficientes para redimi-lo de seu pecado original. Em seu ensaio “Los economistas y el presidente Pinochet”, Arturo Fontaine, apologista da doutrina, constatou a unidade de critérios entre os ideólogos do neoliberalismo e as Forças Armadas na hora de não colocar limites à violação dos direitos humanos como critério para refundar a ordem neoliberal. Impôs-se uma divisão do trabalho: uns matam e outros aplicam as políticas econômicas neoliberais.
O neoliberalismo se impôs pela força. Apesar disso, alguns de seus defensores em países com regimes constitucionais buscaram matizá-lo, distanciando-se da experiência chilena. Foram os casos do Peru, da Venezuela e do México. Outros países pouco contribuíram para a articulação teórica da doutrina na América Latina. A construção mais elaborada ocorreu no Peru, com Hernando de Soto, e no México, com René Villareal, Enrique Krauze e Luis Aguilar Villanueva.
Germes revolucionários e nova sociedade
Hernando de Soto, ideólogo de Mario Vargas Llosa e Alberto Fujimori, apresentou o neoliberalismo como articulação do capitalismo popular assentado no desenvolvimento da informalidade, na iniciativa individual e no “autoemprego”. Argumentou que, dentro das fronteiras do Peru, existiriam três países: um mercantilista e decadente, baseado em um empresariado restrito e articulado aos privilégios do Estado; um segundo país, fundado na tecnocracia estatal, que buscava um capitalismo de Estado, mas se perdia entre os objetivos de destruição da violência terrorista e as exortações, carentes de soluções práticas de muitos progressistas; e um terceiro país, baseado em uma economia de mercado, que constituía o “outro caminho”, que trabalhava duro, era inovador e ferozmente competitivo, democrático e cujo espaço mais destacado era o da informalidade, em que estavam os autênticos empresários capitalistas.
Esses três “países” representavam três maneiras de entender o desenvolvimento no Peru e na América Latina. Para Hernando de Soto, a comparação entre mercantilismo, capitalismo de Estado e economia de mercado demonstrava a superioridade desta última como solução para os problemas do subdesenvolvimento. O autor ressaltou que o sistema em que vivemos na América Latina é “mercantilista”, e não capitalista. Com isso, absolveu o capitalismo de qualquer culpa histórica pelo subdesenvolvimento e considerou que seria dele o futuro.
De Soto afirmou ainda que do próprio seio do “mercantilismo” já surgiram os germes “revolucionários” que haveriam de nos conduzir à “nova sociedade” e cujos portadores seriam os “informais”, “empresários incipientes” destinados a fundar um capitalismo popular tão logo conseguissem derrotar esse Estado “redistributivista” e “intervencionista” para instaurar em seu lugar o reino puro do neoliberalismo. O autor enfatizou que esse “caminho” não só era desejável, mas também viável, e que sua trajetória repetiria a que ocorreu nos países capitalistas desenvolvidos, com idênticas etapas e percalços.
De Soto destacou também que os mercados não eram monopólio ocidental, e sim uma tradição antiga e universal. Afirmou que dois mil anos atrás, Cristo podia reconhecer um mercado quando o via, e que expulsou os mercadores precisamente por terem convertido o templo em um mercado. E, ainda, que os mexicanos levavam seus produtos ao mercado muito antes de Colombo chegar à América. No entanto, ao se questionar por que o capitalismo só prosperou no Ocidente, assinalou que isso se deveu ao fato de que nos países ocidentais a conversão dos ativos em títulos de propriedade é muito ampla e intensa, o que permitiria impulsionar o crédito e o investimento ao proporcionar garantia, fator de que careciam o Terceiro Mundo e os antigos países socialistas. Essas conclusões foram avaliadas pelos prêmios Nobel de Economia Ronald Coase e Milton Friedman como “poderosas e totalmente convincentes”, algo que “oferece aos políticos um projeto que pode conduzir ao bem-estar do país, e ao mesmo tempo proporcionar-lhes benefícios políticos, uma combinação maravilhosa”.
No México, o ideólogo do neoliberalismo, René Villareal, apresentou a proposta do Partido Revolucionário Institucional (PRI) e de seu presidente Salinas de Gortari como liberalismo social. Nele seriam garantidas as liberdades individuais, mas se reconheciam as imperfeições e limitações do mercado livre como mecanismo para resolver com equidade os problemas distributivos. Propôs-se então que o Estado assumisse um papel mais ativo na correção das desigualdades sociais. Villareal afirmou que, no liberalismo político do laissez-faire ou neoliberalismo, a liberdade individual e o livre mercado foram acompanhados pelo darwinismo social como filosofia e prática. Já no liberalismo social, a liberdade individual e o livre mercado foram acompanhados por um Estado de Direito, que procurava corrigir as desigualdades sociais e imperfeições do mercado para dar ao desenvolvimento uma orientação social. Eficiência e equidade se conjugariam para ser possível alcançar dois princípios fundamentais: a liberdade e a justiça social.
A imposição do neoliberalismo foi o começo para se adotar todo tipo de reformas reunidas sob o rótulo de processo de liberalização. Com essa expressão, houve a transformação das estruturas sociais e econômicas. O entusiasmo neoliberal chegou a considerar como seu momento de fundação a derrubada do presidente chileno Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973. No Chile, naquele ano, o comunismo sofreu uma derrota na Guerra Fria, e foi iniciada uma liberalização radical da economia e da sociedade. Demonstrou-se que existia no mundo ocidental a vontade de deter o que, até então, parecia ser o avanço incontido do socialismo marxista e das estratégias de crescimento baseadas na substituição de importações e no intervencionismo estatal. Anos depois, Margaret Thatcher na Grã-Bretanha, Ronald Reagan nos Estados Unidos, e Felipe González na Espanha aprofundariam essas megatendências liberalizadoras.
O saldo negativo da década de 1990
As políticas liberalizadoras impulsionadas no final dos anos 70 e princípios dos anos 80 teriam um ponto de inflexão na década de 1990. A crise da dívida externa, a partir de 1982, foi a desculpa dos governos neoliberais para privatizar, reduzir as barreiras alfandegárias e flexibilizar o mercado de trabalho. Assim, às características excludentes e antidemocráticas das políticas neoliberais e à descapitalização pelo pagamento da dívida externa deve-se acrescentar o processo de privatizações e desnacionalização específicos dos anos 90 – fator que aprofundou as repercussões do processo de liberalização.
Se em princípio, segundo os governantes, a venda ao setor privado das companhias estatais de eletricidade, água, telefone, aviação, minério e dos setores industrial e financeiro permitiu aos países contar com liquidez e passar a imagem de Estado eficiente, “saneado e sem déficit”, por meio de uma contabilidade de curto prazo, a idílica situação de superávit acabaria por entrar em colapso. Com as privatizações vieram as crises e a regulação do emprego, o fechamento de empresas e a entrega de setores estratégicos como a água, o gás, ou a flora e a fauna das florestas subtropicais a companhias transnacionais – para sua administração, seu usufruto e benefício privado.
O processo de desindustrialização abriu as portas ao descontentamento social. O neoliberalismo entrou em contradição com suas propostas. As promessas de um futuro melhor foram colocadas em dúvida. Serviços essenciais como saúde, educação e moradia tiveram seus recursos reduzidos e, com isso, deterioraram-se até hospitais, escolas e a construção civil, todos entraram em colapso. Tudo isso somado a índices de pobreza que superaram os 44% para o conjunto da região. O discurso de governos e organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial ou a Organização Mundial do Comércio (OMC), apelou para pactos de responsabilidade e políticas de ajustes estruturais, pelos quais os trabalhadores limitariam suas expectativas de melhorias salariais e aceitariam a “precariedade” como sua contribuição na etapa de “globalização produtiva”.
O neoliberalismo dos anos 90 deixou um saldo negativo. Desarticulou e desmontou as estruturas produtivas fundadas no processo de industrialização, iniciado nas décadas de 1930 e 1940. A venda em leilão de bens públicos e a reconversão industrial mudaram a fisionomia das estruturas produtivas dos países da América Latina. Voltaram a se manifestar os mesmos problemas da era oligárquica. A abertura financeira e comercial e a eliminação de barreiras alfandegárias favoreceram o processo de desnacionalização e um maior grau de dependência das economias latino-americanas em relação ao mercado mundial.
Não é difícil entender que as estruturas produtivas sejam atualmente mais primário-exportadoras do que há meio século. Os produtos exportáveis são uva, maçã, pera e manga, e não café, banana ou açúcar. O neoliberalismo submeteu a região a uma situação semelhante às formas de dependência industrial e financeira do século XIX, só que atualmente adota a forma tecnológico-financeira. O fim dos anos 80 anunciou como seria a década de 1990, e a primeira grande demonstração do limite do neoliberalismo começou com a crise do segundo governo de Carlos Andrés Pérez, na Venezuela, conhecida como Caracaço.
Naquele país, em 16 de fevereiro de 1989, depois da assinatura de acordos com o FMI e o Banco Mundial, concretizou-se a aplicação dos planos de ajuste e das políticas de emprego e privatização. A resposta foi um protesto espontâneo e maciço dos cidadãos nas ruas de Caracas e de toda a Venezuela. O social-democrata Pérez respondeu enviando o Exército para repelir o descontentamento. O resultado foi a morte de mais de mil pessoas, vítimas dos disparos das forças de segurança do Estado, em 27 de fevereiro de 1989. O projeto neoliberal estava sendo questionado.
O projeto neoliberal
Existe uma versão idílica sobre a maneira pela qual o neoliberalismo construiu sua hegemonia na América Latina – um relato histórico que remete a seus criadores no Chile. Havia um grupo de jovens economistas decididos a mudar os rumos dos acontecimentos em seu país e na América Latina, com o objetivo de combater com fé e disciplina as políticas keynesianas. Um caminho árduo de formação intelectual e de ascetismo nas frias ruas de Chicago. Eles estavam predestinados a mudar o futuro do mundo a partir da assinatura dos acordos entre a Universidade Católica do Chile e a Universidade de Chicago, por volta de 1955, que contemplou a permanência no Chile de professores da Universidade de Chicago, a formação de um Centro de Investigações Econômicas e a seleção de bolsistas de pós-graduação para Chicago e de investigadores centrados na análise da realidade econômica chilena.
Em junho de 1955, chegaram ao Chile membros do Departamento de Economia da Universidade de Chicago: T. W. Schultz, presidente do departamento e futuro Prêmio Nobel de Economia; Earl J. Hamilton, catedrático de história da economia; Arnold Harberger, futuro decano de economia de Chicago e que seria o principal mestre e guia dos bolsistas chilenos; e Simon Rottenberg. Essa comissão discutiu com as autoridades da universidade chilena o convênio com a Universidade de Chicago, celebrado em 29 e 30 de março de 1956.
Sergio de Castro e Arturo Fontaine tornaram-se os primeiros bolsistas. Depois do golpe de Estado de 11 de setembro de 1973, atribuiu-se a eles a autoria intelectual de “El ladrillo”, documento da política econômica da tirania, redigido entre 1969 e setembro de 1973 e considerado a cartilha do neoliberalismo. Assim, a partir de 1956 e até o golpe de Estado, três gerações de ex-bolsistas e alunos da Universidade Católica foram formados na doutrina neoliberal da Universidade de Chicago – massa da qual Pinochet se nutriu durante todo o seu regime.
A lista começa com Sergio de Castro (ministro da Economia e depois ministro da Fazenda) e vai até Pablo Baraona (presidente do Banco Central, ministro da Economia e mais tarde da Mineração), Álvaro Bardón (presidente do Banco Central, subsecretário de Economia e presidente do Banco do Estado), Rolf Lüder (ministro da Fazenda e da Economia), Sergio de la Cuadra (ministro da Fazenda), Cristián Larroulet (chefe de Gabinete do Ministério da Fazenda), Martín Costabal (diretor do Orçamento e ministro da Fazenda), Jorge Selume (diretor do Orçamento), Andrés Sanfuentes (assessor do Banco Central e diretor do Departamento de Economia da Universidade do Chile), José Luis Zabala (chefe do Departamento de Estudos do Banco Central), Juan Carlos Méndez (diretor do Orçamento), Álvaro Donoso (diretor da Oficina de Planificação Nacional – Odeplan), Álvaro Vial (diretor do Instituto Nacional de Estatística), Álvaro Saieh (assessor do Banco Central), Juan Villarzú (diretor do Orçamento), Joaquín Lavin (assessor da Odeplan, editor de Economia e Negócios do jornal El Mercurio e decano da Faculdade de Economia da Universidade de Concepción), Ricardo Silva (chefe de Contas Nacionais do Banco Central), Juan Andrés Fontaine (subdiretor da Odeplan), María Teresa Infante (ministra do Trabalho) e Miguel Kast (ministro do Trabalho e ministro da Odeplan).
Existiram poucos neoliberais alheios à Escola de Chicago. Entre eles, cabe mencionar os ministros Jorge Cauas, Hernán Büchi e José Piñera. No entanto, segundo a versão oficial, foram todos, em seu conjunto, os artífices do triunfo do neoliberalismo na América Latina.
O êxito ou o fracasso de uma doutrina
As reformas neoliberais são equiparáveis entre si, partilham diagnósticos, propostas e objetivos. As diferenças não questionam o rumo nem o desenho da política econômica. Seus princípios ideológicos e políticos expostos no documento “El ladrillo” sintetizaram o ideário neoliberal. Em sua apresentação, os autores chamaram a atenção para a dimensão global do projeto para o qual confluíam três objetivos: promover uma mudança na estrutura social, articular um novo consenso ideológico-político e impor outra forma de exercício do poder político.
Para os criadores da alternativa neoliberal, o programa não poderia ser segmentado nem aplicado em parte, ou haveria o risco de se perder a identidade do projeto refundador de uma economia de mercado. Sua recusa em introduzir modificações ou aceitar propostas de atuação contrárias a seus objetivos fez do pensamento neoliberal uma doutrina excludente e totalitária. Para seus realizadores, o êxito do programa sempre esteve condicionado ao repúdio de qualquer outra opção de análise da realidade social e econômica. Seu programa transformou-se em um conjunto de dogmas de ação redentora. Construído sob esses postulados, não se pode negar ao neoliberalismo o qualificativo de doutrina totalitária, quando seus próprios articuladores fizeram desse significado a maior virtude do programa.
Sergio de Castro afirmou em “El ladrillo” que o programa neoliberal constituía um todo harmonioso e não aplicável de modo parcial; sua aplicação parcial ou limitada poderia dar origem a um sem-número de efeitos indesejáveis. A coerência e a unidade dos diferentes aspectos da política econômica eram requisito básico de seu programa de ação, e ele salientou que em muitas ocasiões a aplicação limitada ou parcial de políticas foi o elemento determinante de seu fracasso total. Castro sempre enfatizou que a política monetária não era independente da política fiscal; que as políticas cambial e de comércio externo estavam indissoluvelmente ligadas à política interna de preços; que a distribuição de recursos exigia concordância entre políticas monetárias, de mercado de capitais, de preços, de tributação e de comércio externo.
Seu apelo para refundar a ordem política implicava construir uma sociedade capaz de assumir os princípios sistêmicos de seu ordenamento jurídico e institucional. Economia de mercado e sociedade de mercado tornaram-se as duas faces do neoliberalismo, tal como Karl Polanyi expressou em sua crítica. Segundo esse autor, o mecanismo oferta–demanda–preço, cuja primeira aparição deu origem ao conceito profético de “lei econômica”, converteu-se rapidamente em uma das forças mais poderosas que já influenciaram o panorama humano e que, ao aplicar-se ao trabalho e à terra, transformou a própria essência da sociedade. Esse artifício institucional, que chegou a ser o motor da economia, deu origem a outro desenvolvimento ainda mais extremo, uma sociedade inteira embutida no mecanismo de sua própria economia: a sociedade de mercado.
Para realizar o projeto neoliberal, seus artífices propuseram um conjunto articulado de cinco reformas estruturais no ordenamento sociopolítico, com vistas à instauração de uma sociedade de mercado embutida em uma economia de mercado: conseguir a retirada do Estado na esfera econômica, diminuindo o gasto público na criação de riqueza social; estabelecer a preeminência do capital privado e das relações de mercado na produção e atribuição de recursos; impor a total abertura externa comercial e financeira; desenvolver a reforma do mercado de capitais internos acelerando a privatização completa que regulasse o preço do dinheiro como mercadoria por meio de taxas de juros livres; e conseguir o estabelecimento do mercado “livre” do trabalho, permitindo a contratação flexível do trabalhador.
Essas cinco reformas, consideradas definitivas para os objetivos do neoliberalismo, deviam ser postas em prática de maneira simultânea, caso se quisesse obter resultados positivos e um êxito global. Ao analisar as dificuldades para implementar a totalidade do programa, Sergio de Castro reafirmou a adoção integral como estratégia a ser seguida em regimes democráticos. Aconselhou aplicar, desde o primeiro momento, todas as políticas descritas, com o argumento de que seria no início de um governo que a população se mostraria mais disposta a realizar grandes sacrifícios. Para manter seu prestígio, afirmou ser importante que o custo de uma retificação se associasse à política passada e não aos propósitos e objetivos da nova política.
A reforma do Estado em três dimensões
O projeto neoliberal, porém, ficou sintetizado em sua elaborada proposta de reforma do Estado. Foi o primeiro passo para construir uma racionalidade política de novo formato, a partir da qual seriam legitimadas as políticas de ajuste, flexibilidade da mão de obra, desnacionalização e privatização da economia. Nesse sentido, assumiu um outro valor com três diferentes dimensões: reforma do processo de governo ou gestão pública, reforma do regime político e reforma da constituição política do Estado.
A reforma do processo de governo ou gestão pública foi pensada com o objetivo de construir um novo tipo de gestão ou políticas públicas em que as funções estatais se ajustassem a uma lógica imposta pelo mercado. Para isso, era preciso leiloar seus bens mediante um processo de reconversão industrial. A privatização, a descentralização administrativa e a desregulamentação seriam as ferramentas. O espaço em que melhor poderia atuar seriam as políticas de seguridade. Por essa razão, deveria favorecer a ação protagonista de investidores e consumidores em sua governabilidade. A única ação social do Estado legitimada pelo neoliberalismo, na gestão pública, foram os programas paliativos voltados para a extrema pobreza. Nisso consistia a reforma da gestão pública.
A reforma do regime político se inscreveu no marco de uma nova divisão de poderes e funções estatais. Consideraram-se as leis eleitorais dos partidos políticos e de participação dos cidadãos no processo de tomada de decisões. O objetivo foi diminuir a autonomia da esfera política, fazendo-a depender do mercado. Era preciso fortalecer a condição de consumidor e debilitar a cidadania política, relação entre o bem comum, o sentido ético da ação, a responsabilidade e a consciência do cidadão. Assim, o novo regime político teria como objetivo servir ao funcionamento do mercado e ao consumidor, as duas faces do neoliberalismo, que terminou por se identificar com a emergência de uma democracia de mercado.
A reforma da constituição política do Estado buscava um novo marco que definisse os limites dos direitos e deveres do cidadão nos âmbitos público e privado, conforme o estabelecimento de uma economia fundada no livre mercado. Foi uma reforma centrada em dotar de legitimidade uma sociedade de mercado. A Constituição espanhola de 1978 e a chilena de 1980 foram as primeiras a seguir essa direção para construir uma ordem neoliberal sobre a base de um novo ordenamento jurídico-institucional. Pela força, no caso do Chile; e, na Espanha, devido à morte do tirano.
Na década de 1980, e especialmente no princípio dos anos 90, a abertura de processos constituintes e reformas constitucionais se generalizaram na América Latina. Com exceção da Venezuela e de Cuba, a implementação das reformas afetou toda a região, sendo aprovadas Constituições nas quais o valor político da democracia se subordinou ao processo de acumulação e reprodução do capital. Nesse sentido, a reforma do Estado, em suas três dimensões, levou a identificar o processo de racionalidade e eficiência com a liberdade do capital privado para a atribuição de recursos, a organização do trabalho e da produção. A reforma constitucional pretendeu fazer coincidir competitividade neoliberal com sociedade ordenada, e eficiência com obediência às leis do mercado.
Um balanço, três décadas depois
Após trinta anos de políticas neoliberais, tornou-se possível avaliar resultados, verificar o que de fato ocorreu e que benefícios elas trouxeram. Em outros termos, o que aconteceu depois de o Estado se retirar da atividade econômica e privatizar seus bens? Como o mercado se comportou ao aplicar o critério de preeminência do capital privado na designação de recursos? De que modo agiram os agentes financeiros depois de reduzidas ou eliminadas as taxas alfandegárias e da decretação do livre-comércio? Que efeitos sobre os trabalhadores tiveram a flexibilidade da mão de obra e o mercado livre de trabalho?
As respostas a essas questões, de acordo com os teóricos neoliberais, não poderiam ser mais positivas, já que, segundo eles, tais medidas favoreceram uma distribuição equitativa da renda nacional com pleno emprego, a diminuição da dependência econômica e do subdesenvolvimento, a consolidação da estabilidade econômica, com taxas de inflação próximas a zero, e, ainda, o estabelecimento de uma democracia política com justiça social.
Cabe lembrar que o neoliberalismo comprometeu governos das mais diferentes ideologias – democratas cristãos, conservadores, progressistas, social-democratas e socialistas assumidos. Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso, Patricio Alwyn, Carlos Andrés Pérez, Carlos Salinas de Gortari, Carlos Menem, José María Sanguinetti, Alberto Fujimori ou Gonzalo Sánchez de Lozada são exemplos de presidentes eleitos e não impostos pelas armas.
Os primeiros países a aplicar as políticas de ajuste estrutural e estabilização foram o Uruguai (1974), a Bolívia (1975), o Chile (1975) e a Argentina (1978), todos com governos autoritários. No entanto, países de democracia representativa ampliaram a lista nos anos 80, como Costa Rica (1982), Equador (1986), Bolívia (1985), República Dominicana (1982), México (1988) e Venezuela (1989). Alguns até mesmo recorreram, em mais de uma ocasião, às políticas de estabilização e ajuste estrutural: Argentina, Bolívia, Brasil, México, Costa Rica e Uruguai. O denominador comum foi a submissão às políticas e recomendações do FMI e do Banco Mundial.
Dessa forma, o que se iniciou na década de 1970, sob a bandeira do terror e do assassinato político, teve continuidade com governos saídos das urnas. Todos firmes na aplicação irrestrita do ideário neoliberal e convencidos dos benefícios de suas políticas. Ainda assim, para alcançar seus objetivos, o neoliberalismo exigiu o desmantelamento da estrutura produtiva e a eliminação de direitos sociais, políticos e econômicos conseguidos pelas classes sociais populares, dominadas e exploradas durante os dois últimos séculos na América Latina. O neoliberalismo fundou-se sobre bases de exclusão e repressão, única maneira de levar a cabo suas reformas. A privatização dos serviços essenciais, como saúde, pensões, eletricidade, e a diminuição dos recursos públicos para moradia e educação – unidas à reconversão industrial e à flexibilidade trabalhista ou à liberalização do comércio – traçaram um balanço nada lisonjeiro para seus impulsionadores.
Apenas o Chile se apresentou como o grande milagre neoliberal. Entretanto, quinze anos depois de iniciado o experimento neoliberal, a renda per capita e os salários reais não eram superiores aos de 1973, apesar dos imensos sacrifícios exigidos pela ditadura. O desemprego médio registrado entre 1975 e 1985 foi de 15%, com um pico de 30% em 1983. Entre 1970 e 1987, o percentual de famílias abaixo da linha de extrema pobreza aumentou de 17% para 38%. Em 1990, o consumo per capita dos chilenos ainda era inferior ao registrado dez anos antes. O decil de mais recursos da sociedade chilena aumentou sua participação na renda nacional de 36,2% para 46,8%, enquanto os 50% mais pobres viram sua participação diminuir de 20,4% para 16,8%. Esses dados continuaram durante a década de 1990.
No México, os índices oficiais demonstraram que a renda nacional per capita caiu 12,4% entre 1980 e 1990. Entre 1982 e 1988, o salário teve uma redução de cerca de 40% e não voltou a crescer; o tradicionalmente alto nível de desemprego (aberto e oculto) do México se elevou e o consumo per capita do ano 1990 foi cerca de 7% inferior ao registrado em 1980.
Quando se analisam os graus de pobreza e de desigualdade, chega-se ao seguinte balanço: até os anos 90, mais de 200 milhões de latino-americanos viviam em condições de pobreza e extrema pobreza, 70 milhões a mais do que em 1970, o que equivale a quase 47% de toda a população. Na Argentina, 3 milhões de crianças vivem em condições crônicas de pobreza. Na Bolívia, 85% da população rural situa-se abaixo da linha de pobreza e mais de um terço da população não tem acesso aos serviços de saúde. No Brasil, cerca de 48% das famílias encontram-se abaixo da linha de pobreza. Na América Central, isso ocorre com quase 75% da população. Na Colômbia, esse índice é de 42%, enquanto no Uruguai o crescente percentual de pobres nos últimos anos chegou a atingir um quarto da população.
A análise de indicadores sociais, tomando por base o período de 1980 a 1999, comprova que houve aumento nos índices de pobreza. Por exemplo, a taxa de desemprego aberto era de 6,7% e em 1999 oscilava em torno de 8,3%. O setor informal urbano saltou de 40,2% para 59,6%. O salário real na indústria decresceu de 100%, em 1980, para 89%. O salário mínimo real correspondia a 87% do existente em 1980 e o percentual de famílias mais pobres aumentou de 35% para 43,2% nesse período. Os dados revelam o fracasso do neoliberalismo. Este não cumpriu nenhum dos objetivos que promulgou em seu ideário. Ao contrário, sua implementação trouxe maior grau de desigualdade, miséria e exploração para a maioria da população latino-americana.
Os primeiros anos do século XXI mostraram uma tendência contrária à permanência na trilha neoliberal. Muitos governos decidiram retomar um caminho assentado sobre políticas sociais de investimento público e reverter três décadas de neoliberalismo, cujos frutos não acompanharam a euforia de seus ideólogos. A crise do modelo na Argentina, na Venezuela, no Brasil, na Bolívia e no Uruguai indicou uma mudança de rumo, e o acaso do neoliberalismo foi observado juntamente com o aumento das lutas democráticas para recuperar os espaços perdidos em trinta anos. Com o apelo do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), no México, à luta em defesa da humanidade e contra o neoliberalismo, começou a tomar consistência uma alternativa democrática de libertação nacional alinhada com a dignidade e com os princípios de justiça e igualdade social.
Bibliografia
- DE SIERRA, Gerónimo. Los países pequeños de América Latina en la hora neoliberal. Caracas: Nueva Sociedad, 1994.
- DE SOTO, Hernando. El misterio del capital. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2000.
- HINKELAMMERT, Franz. Crítica a la razón utópica. San José de Costa Rica: DEI, 1990.
- SADER, Emir; GENTILI, Pablo (Orgs.). La trama del neoliberalismo: mercado, crisis y exclusión social. Buenos Aires: Clacso-Eudeba, 1999.