Paraguai
Paraguai

Paraguai

Mônica Rodrigues (texto de atualização do verbete, 2006-2015)

Nome oficial

República del Paraguay (em espanhol)
Tetã Paraguái (em guarani) 

Localização

América do Sul, em sua porção central. Está a nordeste da Argentina, a sudoeste do Brasil e a sudeste da Bolívia

Estado e Governo¹

República presidencialista

Idiomas¹

Espanhol e guarani (oficiais)

Moeda¹

Guaraní

Capital¹

Assunção (2,307 milhões hab. em 2014)

Superfície¹

406.752 km²

População²

6.459.721 hab. (2010)

Densidade demográfica²

16 hab./km² (2010)

Distribuição
da população³

Urbana (58,49%) e
rural (41,51%) (2010)

Analfabetismo⁴

5,3% (2013)

Composição étnica¹

Mestiços de ameríndios e espanhóis (95%),
outros (5%)

Religiões¹

Católica romana (89,6%), protestantes (6,2%), outras cristãs (1,1%), outras ou não especificadas (1,9%), nenhuma (1,1%) (2002)

PIB (a preços constantes
de 2010)

US$ 23,597 bilhões (2013)

PIB per capita (a preços constantes de 2010)

US$ 3.479,3 (2013)

Dívida externa pública

US$ 5,130 bilhões (2013)

IDH

0,676 (2013)

IDH no mundo
e na AL⁵

111° e 24°

Eleições¹

Presidente eleito por sufrágio universal para um mandato de 5 anos. Legislativo bicameral composto da câmara dos deputados com 80 membros e do senado com 45 membros, eleitos por sufrágio universal para um mandato de 5 anos. O conselho de ministros é nomeado pelo presidente.

Fontes:
¹ CIA. World Factbook
² ONU. World Population Prospects: The 2012 Revsion Database
³ ONU. World Urbanization Prospects, the 2014 Revision
⁴  CEPALSTAT
⁵  ONU/PNUD. Human Development, 2014

Em agosto de 2003, Nicanor Duarte Frutos assumiu a Presidência da República do Paraguai. Candidato do oficial Partido Colorado, venceu os partidos oposicionistas Pátria Querida, e o centenário Partido Liberal Radical Autêntico.

Quase meio século havia se passado desde que o Partido Colorado recuperara plenamente o governo no golpe de Estado (1954), sob a liderança do general Alfredo Stroessner – que, por sua vez, terminou derrubado por outro golpe de Estado chefiado pelo general Andrés Rodríguez em fevereiro de 1989. Foi o início de um processo de transição à democracia que já dura quinze anos, e durante o qual o Estado oligárquico dependente foi legitimado por sucessivas eleições.

Isso significa que, ao longo desse perío­do transicional, os processos eleitorais facilitaram as mudanças políticas no partido do Estado (o Partido Colorado), mas a guinada “democrática” não modificou as bases estruturais do Estado oligárquico dependente. A enorme força do sistema garantiu “democraticamente” o saque, a corrupção e a impunidade, sob a liderança colorada. No entanto, deve-se considerar que o modelo de acumulação primitiva permanente é praticamente insustentável nas condições atuais. Por esse motivo, o presidente, herdeiro do “stronismo”, é portador de contradições inevitáveis.

O esquema de poder legado a Duarte Frutos começou a tomar forma com o golpe militar de 4 de maio de 1954. O movimento armado colocou em evidência as dificuldades de reprodução de uma ordem oligárquica no país. Era uma crise crônica, que vinha se agravando desde o fim da Guerra do Chaco (1935) e se acentuara com a ditadura do general Higinio Morínigo (1940-1947).

Liderado por Alfredo Stroessner, general comandante das Forças Armadas, representando uma facção do Partido Colorado, o golpe militar de 1954 foi determinante para expulsar do governo outro grupo representativo do mesmo partido, que se identificava como “grupo democrático”. Stroessner destituiu o presidente da República, Federico Chávez. Em seguida, a direção política do Partido Colorado ofereceu ao general golpista a Presidência da República em nome do partido. Na realidade, a ascensão ao poder pela via do golpe de Estado, e não por meio dos princípios estabelecidos na Carta Constitucional de 1940, não era novidade alguma para uma sociedade submetida a uma violência estrutural da ordem oligárquica e a uma política de governo que administrava a exclusão social de amplos setores.

Pelo contrário, o golpe de Estado era tradição na cultura política do Paraguai, constituía-se em mecanismo “legítimo” para ocupar o poder governamental e exercer a ditadura social em representação dos cidadãos juridicamente livres e iguais. Em uma estrutura sociopolítica em que os confrontos entre caudilhos se resolviam pela força, os influentes líderes colorados talvez fantasiassem que o comandante em chefe, transformado em presidente em representação da direção partidária, uma vez resolvida a crise de governabilidade, poderia garantir o retorno ordenado dos políticos tradicionais aos cargos de comando do país.

Mas os fatos não se desenvolveram como os conspiradores históricos do Partido Colorado imaginaram. Estes confiavam em recuperar, depois de um breve interregno militar, os postos-chave do poder político e a unidade partidária na condução do país. Stroessner, porém, formado na escola das armas, em conspirações palacianas e num encoberto instinto de ambição de poder, entendeu que a permanente crise paraguaia não poderia resolver-se na luta entre facções da direção do partido, cuja “instabilidade” punha em risco a função institucional da ordem oligárquica, e sim na concentração do poder político das Forças Armadas sob o seu comando. Nessa perspectiva, um poder centralizado poderia garantir a unidade da grande propriedade agrária e a subordinação atomizada de uma massa de trabalhadores camponeses à lógica dos interesses de latifundiários nacionais e empresas estrangeiras.

Transformado em presidente pela vontade dos caudilhos do Partido Colorado, Stroessner colocou-se em uma posição estratégica para transformar uma quartelada efêmera no projeto de uma ditadura personificada. Ele governou autoritariamente o país por mais de 35 anos, até que outro golpe militar, em 3 de fevereiro de 1989, alijou-o do poder. Ao que parece, o velho ditador não percebeu oportunamente os ares democratizantes que sopravam de norte a sul de nossa América. Por esse motivo, em vez de a história seguir o curso das “transições organizadas”, o general Andrés Rodríguez viu-se obrigado a derrubar seu líder histórico. De qualquer modo, o exame de alguns aspectos da longa ditadura “stronista” é decisivo para a compreensão das contradições atuais do Estado oligárquico paraguaio.

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Vista aérea de Assunção, capital do Paraguai (Tetsumo/Creative Commons)

Formação da ordem ditatorial (1954-1960)

Na primeira etapa de construção do poder ditatorial e ao longo de 35 anos, a violência institucional constituiu-se na forma privilegiada das relações políticas para manter as bases sociopolíticas de uma representação autoritária capaz de outorgar garantias “constitucionais” ao monopólio da grande propriedade latifundiária. Por sua vez, dado que a representação da dominação oligárquica exigia formas tradicionais de controle sociopolítico, o Partido Colorado foi transformado em um representante do Estado ditatorial, funcional à lógica do poder militar.

Nessa linha, o aspirante a ditador impulsionou, durante os primeiros anos de seu governo, uma política de reestruturação do partido sob o signo da cooptação e/ou violência das principais referências partidárias. Altos dirigentes foram incorporados às relações políticas do poder personificado, inclusão que com o tempo permitiu-lhes compartilhar, de forma subordinada, os privilégios do poder e a apropriação de bens públicos por meio do saque e da corrupção.

Stroessner entendeu que era necessário fortalecer o monopólio de um poder político unificado, representado nas Forças Armadas e no Partido Colorado. Dessa forma, ambas as instituições teriam a capacidade superestrutural de garantir o funcionamento das relações econômicas sob a hegemonia dos interesses latifundiá­rios. Por sua vez, o partido, como organização coletiva, poderia administrar com eficiên­cia a atomização de uma ampla massa social, submetida à exploração de interesses econômicos e à incorporação subordinada à lógica da dominação oligárquica.

A via “oligárquica escolhida” desse projeto requeria um poder personificado que dissolvesse uma multiplicidade de pequenos poderes na extensão geográfica, instâncias de mediação controladas por chefes colorados ou autoridades militares. Tratava-se de transformar esses espaços sociopolíticos em segmentos orgânicos do aparelho estatal. Com o tempo, isso determinou a configuração institucional do Estado oligárquico, que em termos gerais se definiu como a tríade Presidente/Forças Armadas/Partido Colorado.

O caráter repressivo do processo requeria potencializar a centralização do poder na figura do general com a consequente sujeição da sociedade à ordem ditatorial. Daí a necessidade de reestruturar o Partido Colorado. Na prática, foi necessário fortalecer a aliança temporal com alguns caudilhos mais próximos de seu esquema de poder e neutralizar outros que aspiravam a uma liberalização institucional do país sobre a base de um sistema de partidos, com proeminência do Partido Colorado.

Ao mesmo tempo em que impôs a afiliação forçada dos militares ao “coloradismo”, Stroessner desenvolveu um processo de expurgo no interior do partido e do Exército. Em 1959, o processo de depuração interna acabou por expulsar os políticos colorados que pretendiam manter a autonomia da organização como fator de poder na relação Partido-Estado.

Paralelamente à transformação do Partido Colorado, a corporação militar tornou-se um dos pilares do poder ditatorial. Além da afiliação obrigatória dos membros do Exército ao partido, isso significou a sistemática violação dos regulamentos militares. Em troca da fidelidade dos comandantes, Stroessner lhes concedeu o privilégio de pertencer ao círculo do poder político, o direito de apropriar-se dos bens do Estado com total impunidade e, em aliança com outros grupos econômicos do poder (latifundiários, comerciantes e corruptos), o privilégio de se converter em “novos empresários” do sistema político.

Declaração de guerra

O processo de concentração do poder e da centralização do mando exigia aplicar políticas repressivas contra um conjunto de forças sociopolíticas representadas por agrupamentos políticos (Partido Liberal, Partido Revolucionário Febrerista e Partido Comunista), grêmios e sindicatos (Confederação Paraguaia de Trabalhadores) e centros universitários, com suas lutas históricas (a luta pela terra, pelo salário, pela livre organização etc.) e exigências de liberdades públicas. Isso impunha sérias dificuldades ao projeto ditatorial.

Conforme essa estratégia avançava em um país economicamente atrasado e politicamente reprimido, a resistência política aos poucos se transformou em abertas confrontações com o regime. Durante essa fase (1955-1960), o poder político desenvolveu maiores níveis de intervenção repressiva. Para isso declarou o estado de sítio, perseguiu os opositores, dissolveu o Congresso e reprimiu sindicatos e outras associações. A greve sindical e estudantil de 1959 resumiu a resistência e as aspirações coletivas de um povo, representando também um ponto de inflexão do sistema político.

É possível que Stroessner, nesses dias de intensificação da crise política, tenha intuí­do que o enfrentamento violento entre forças oligárquicas e populares era inevitável e que a solução política para conseguir a estabilidade do regime ditatorial representativo de uma matriz estrutural de base oligárquica exigia eliminar do espaço público todas as forças sociopolíticas com potencial opositor.

Seja como for, a história dos primeiros anos do regime de Stroessner registrou a declaração de guerra do governo aos setores camponeses, operários e estudantis, isso em um país onde predominava o monopólio da grande propriedade territorial por um punhado de latifundiários locais e de empresas estrangeiras. Os camponeses, força majoritária no Paraguai, excluídos historicamente da posse da terra, resistiram no limite de sua marginalidade à ação governamental de despojo de suas parcelas, política oficial que visava à consolidação do setor oligárquico latifundiário.

A classe operária, composta de uma pequena força urbana organizada em torno da Confederação Paraguaia de Trabalhadores, em suas lutas políticas defendeu suas organizações e as exigências básicas de suas necessidades. Os estudantes manifestaram nas ruas de Assunção o descontentamento generalizado da população com as políticas repressivas. Em consequência, a prisão, a tortura e o exílio de opositores ao regime conformaram a síntese histórica do esforço político governamental de bloquear as aspirações democráticas e desorganizar, pela via repressiva, as organizações sociais representativas do interesse coletivo.

Nos umbrais de 1960, a estrutura estatal se expressava na figura dominante do general-presidente; as relações de coesão entre as Forças Armadas e o Partido Colorado estavam subordinadas ao seu comando. A centralização do poder como expressão política da segurança repressiva e da organização ideológica da base social do Partido Colorado organizou, pela via da violência, a exclusão política das organizações representativas das forças socioeconômicas alternativas ao continuísmo estatal.

Não obstante a violência do aparelho de Estado empregada para desorganizar as maiorias sociais e suas representações políticas e organizacionais, o governo mostrou-se débil para controlar a vontade de uma juventude politizada que se negava a aceitar passivamente a privação de liberdades como mecanismo de inclusão subordinada das maiorias à lógica do poder ditatorial. Obviamente, a repressão mostrou sua impotência em legitimar a relação de forças desiguais que se sustentou no monopólio latifundiário.

Nessa perspectiva, o poder ditatorial não era legitimável, a autoridade personificada não se podia sustentar pela pura força e pela impunidade. A relação entre governo e povo requeria o formalismo de uma representação política produzida pelo poder delegado da soberania popular. O desafio estratégico para o regime consistia em obter da massa explorada uma vontade coletiva que delegasse ao ditador a representação política e que legitimasse o poder centralizado e excludente, personificado em Stroessner.

A fórmula “democracia sem comunismo” sintetizou um sistema de representação política que permitiu à burocracia expropriar a vontade coletiva da massa subjugada por meio de um processo eleitoral controlado e, em representação do povo, garantir o monopólio do poder do Estado oligárquico. Durante trinta anos (1960-1990), o “stronismo” impôs seu objetivo, tergiversando a representação do coletivo para proteger a soberania real do monopolizador do poder: o ditador-presidente Alfredo Stroessner.

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Centro comercial da Cidade do Leste, no Paraguai, conhecida pelo seu turismo de compras (Herr Stahlhoefer/Wikimedia Commons)

Legalidade ditatorial no Paraguai

No início dos anos 1960, a política repressiva de “pacificação” do Estado contra a maioria social, destinada a manter as relações desiguais baseadas na centralização do poder e o despojo dos direitos fundamentais dos cidadãos, intensificava a acumulação de contradições que produzia o modelo oligárquico dependente do capitalismo (classe latifundiária/camponeses sem terra) e a política repressiva, nos marcos do estado de sítio contra as lideranças representativas das aspirações coletivas. A Lei n o 294, de “Defesa da Democracia”, sancionada pela Câmara de Representantes e promulgada pelo Executivo em outubro de 1955, legalizava e incrementava a repressão contra os movimentos operário, camponês, estudantil e os dirigentes dos partidos políticos (Comunista, Liberal e Febrerista), incluindo setores dissidentes do próprio Partido Colorado.

Por sua vez, a luta pela terra e contra o poder colocava a necessidade de uma opção ao projeto de consolidação ditatorial. Nesse contexto de repressão estatal, nos umbrais da década de 1960, emergiram dois movimentos de contestação: o Movimento 14 de Maio (alusão à data da independência paraguaia) e a Frente Unida de Libertação Nacional (FULNA). As convicções dos jovens militantes foram também fortalecidas pela Revolução Cubana, de ampla repercussão continental, que estimulou a organização de grupos guerrilheiros para enfrentar o monopólio das forças militares do sistema político.

Integrados por jovens idealistas pertencentes aos partidos de oposição, os dois movimentos não lograram transformar a luta guerrilheira em uma organização política capaz de impedir a consolidação ditatorial. Por sua debilidade organizativa e erros políticos, os guerrilheiros foram derrotados pelos órgãos de segurança do Estado e seus dirigentes principais foram torturados e massacrados pelos representantes do regime.

Nessas condições de contradições estruturais e de violência estatal para bloquear qualquer tipo de saída democrática que pudesse liderar o conjunto representativo dos partidos de oposição, o governo propôs uma saída eleitoral sob a fórmula de “democracia sem comunismo”. Por essa época, a doutrina norte-americana de segurança nacional representava um poderoso apoio aos governos afinados com Washington. Além disso, nos planos de contrainsurgência, a Aliança para o Progresso condicionava a ajuda econômica às exigências formais da “democracia” concebida para fortalecer a cooperação internacional com esses tipos de regime político.

Obviamente, a participação eleitoral nos marcos repressivos da vigência do estado de sítio e da Lei de “Defesa da Democracia” não oferecia à oposição possibilidade alguma de competição efetiva. Não obstante, o governo conseguiu transformar em “Partido Liberal” uma fração de dirigentes do próprio Partido Liberal histórico, que se prestou a legitimar o pacto de unidade nas cúpulas, entre o poder militar e o Partido Colorado sob a liderança política de Stroessner.­ A inserção desse grupo no espaço do Parlamento do “stronismo”, como escriba do projeto do Executivo, significou a aprovação de empréstimos e financiamentos para promover, por meio do Instituto do Bem-estar Rural (IBR), a repartição de terras do Estado a grupos de camponeses, com o objetivo de ampliar a base social da estrutura agrária latifundiária.

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Cultivo de sorgo, em Agua Dulce, no Alto Paraguai (D.Broadbent/Wikimedia Commons)

A via oligárquica da reforma agrária

Pela lógica do poder ditatorial e no contexto de tendências variáveis de correlação de forças que poderiam afetar a estabilidade conseguida na base da repressão e dos benefícios concedidos a setores e funcionários do Estado, formulou-se a política agrária do Paraguai, conhecida como de “Bem-estar Rural”. Tal política só se poderia colocar e resolver nos termos mais adequados e eficientes dos interesses dominantes, quer dizer, dos latifundiários e da burocracia político-militar, com o objetivo de incorporar parte dos camponeses pobres como base de apoio do regime e desagregadora da massa rural.

Assim, em 1963, concretizou-se, pelas Leis nº 852 e 854, a criação do Instituto do Bem-estar Rural, governamental, e do estatuto para regulamentar a reforma agrária. A Lei nº 852 traduziu o objetivo geral que a reforma agrária cumpriria no Paraguai. O Instituto do Bem-estar Rural tinha por objetivo transformar a estrutura agrária do país e a incorporação efetiva da população camponesa ao desenvolvimento econômico e social “mediante soluções legais que permitam eliminar progressivamente o latifúndio e o minifúndio, substituindo-os por um sistema justo de propriedade, posse e exploração da terra”.

Observando tais disposições legais, o formalismo jurídico não fazia mais que traduzir, na sua linguagem, as relações de exploração e o direcionamento para alcançar um objetivo político imediato. Sob a ideia romântica de sustentar interesses similares e possibilidades igualitárias entre latifundiários e camponeses pobres, a lei não era outra coisa senão a defesa dos interesses dominantes e a forma de converter um pobre sem propriedade em um parceleiro de novas misérias.

Dessa maneira, o conteúdo da legislação agrária, enunciada na ausência de um movimento operário-camponês organizado, com os partidos políticos e as associações debilitados pela repressão governamental, só poderia refletir a ideologia de uma classe exploradora que oferecia, de sua perspectiva, um mecanismo razoável de “redenção histórica” às massas camponesas exploradas.

Naturalmente, a distribuição de terras fiscais aos camponeses, sob a política de colonização por meio da qual se outorgavam parcelas de terras em zonas distantes e inóspitas do país, não transformaria a estrutura tradicional de posse da terra e, menos ainda, não eliminaria os mecanismos de exploração e domínio inerentes ao modelo econômico. Pelo contrário, a reforma agrária, a partir desse foco, buscava incorporar seletivamente grupos de camponeses como base de apoio social à consolidação institucional da ditadura.

Dessa forma, a mudança na correlação de forças sociopolíticas, mediante a distribuição de terras, teria a eficácia de produzir dois efeitos políticos importantes a curto prazo: impedir a aliança de forças sociais, democráticas e nacionais (camponeses, operários, pequena burguesia e intelectuais) e melhorar as condições de confiança dos latifundiários (estrangeiros/locais) em apoio à figura do grande proprietário do país, o general Alfredo Stroessner. Com o tempo, a política agrária cumpriu seu objetivo: produziu uma verdadeira “reforma agrária” latifundiária – terras fiscais foram distribuídas entre os influentes membros da burocracia político-militar, consolidando a aliança entre os latifundiários e o Estado.

Surgimento das Ligas Agrárias Cristãs

Rompendo o bloqueio governamental ao surgimento de entidades autônomas, nos anos 1960 apareceram as primeiras organizações de bases agrárias cristãs. Sob essa influência, grupos camponeses tentaram dar uma resposta organizativa para a distribuição da posse da terra gerada pelo modelo oligárquico de desenvolvimento econômico.

Nas condições de atraso do país, reflexo de seus fundamentos econômicos, a massa camponesa era uma força reprimida, separada pela geografia e pelas cercas das fazendas, incomunicável regionalmente, dispersa e isolada. A luta histórica por um pedaço de terra se desenvolvia em geral de forma local e precária, sendo insuficiente para desencadear um amplo movimento de forças. As mobilizações reivindicativas tinham pouca repercussão e se mostravam incapazes de gerar um movimento nacional de forças oprimidas e progressistas contra o regime.

Nessas condições, dirigentes sociais levantaram a necessidade de traduzir o instinto de sobrevivência e a força ideológica dos valores cristãos em uma organização nacional que expressasse de forma autônoma os interesses reais das classes exploradas.

Diferentemente dos operários da cidade, que tinham construído de acordo com os mecanismos institucionais da repressão associações, sindicatos e centrais de trabalhadores, o camponês em geral carecia dessa experiência organizativa própria. Em geral, sua formação política se realizava no seio dos partidos históricos: o Partido Colorado e o Partido Liberal.

Por outro lado, o horizonte de visibilidade dessa classe achava-se muito limitado pelo peso dos problemas domésticos e pelo controle dos aparelhos repressivos (Exército, polícia e informantes) e ideológicos do Estado. Não obstante, a falta de experiência organizativa e o peso da ideologia dominante não foram obstáculos para produzir iniciativas alternativas e enxertar um pensamento cristão renovado em grupos de base de diferentes regiões do país.

Assim, surgiram as Ligas Agrárias Cristãs, acompanhadas de promotores sociais, sacerdotes progressistas e laicos comprometidos. Esses quadros contribuíram para a formação de bases agrárias cristãs que em seu desenvolvimento chegariam a compor tais estruturas em nível nacional. Essas organizações de base, que brotaram em diversas zonas do país, estimuladas pela Juventude Operária Cristã (JOC), a Confederação Cristã de Trabalhadores (CCT) e setores progressistas da Igreja Católica, chegaram a agrupar-se sob o signo de duas federações: a Federação Cristã de Trabalhadores (FGC), vinculada à Confederação Latino-Americana de Sindicatos Cristãos, e a Federação Nacional de Ligas Agrárias Cristãs (Fenalac). Em meados de 1971, as bases agrárias fundiram-se sob uma direção única e formaram a Coordenação das Bases Camponesas Cristãs.

O fato curioso de que grupos camponeses tenham apelado para valores cristãos como ponto de referência para se apropriar da realidade e da práxis coletiva explica-se ao menos por três razões. A maioria dos trabalhadores do campo, desprovidos de organizações próprias, dispunha das ideias religiosas dominantes e sacerdotes/militantes leigos comprometidos como ponto de referência comum para se organizar como setores explorados e oprimidos. Havia também a experiência histórica das missões jesuítas no Paraguai. Além disso, a poderosa Igreja Católica, como instituição, estava em condições de proteger o desenvolvimento inicial dessa experiência coletiva.

Logicamente, esse movimento camponês, em seu desenvolvimento ideológico e organizativo nas entranhas de um Estado oligárquico-ditatorial, de fato converteu-se em uma força subversiva contra o sistema, na medida em que atentava contra a hegemonia ideológica do regime e em um modelo viável de organização de poder alternativo. Por esse motivo, essas organizações foram reprimidas e seus principais dirigentes foram torturados e colocados na prisão. A violência do Estado terminou, em 1975, com uma das experiências organizativas possivelmente mais importantes do período ditatorial.

As construções e igreja (ao fundo) da Missão Jesuíta Santíssima Trindade do Paraná, no Paraguai (Maurice Chédel/Wikimedia Commons)

Ditadura legitimada

Transcorridos dez anos da ascensão de Stroessner ao poder, a política governamental mantinha um alto componente repressivo para afirmar a estabilização do regime. A Câmara de Representantes, administrada pela maioria colorada e uma facção liberal (conhecida por “Leviralismo”) selecionada pelo governo, não podia sustentar, nem sequer simbolicamente, a existência de um governo representativo eleito pela vontade de uma maioria de cidadãos livres.

Na ausência de um consentimento explícito do povo, a resistência sociopolítica transformava-se na organização da subjetividade coletiva e esta em representação dos partidos políticos de oposição e dos grêmios que defendiam seus interesses e sua autonomia (sindicatos, centros universitários, organizações camponesas etc.), contra os agentes ideológicos do regime.

Uma vez que a Constituição em vigor impedia uma nova reeleição do presidente, o governo, após prévia negociação com a direção dos partidos oposicionistas, convocou para 1967 uma Assembleia Nacional Constituinte com o objetivo de “democratizar” o país, ou seja, garantir a representação usurpada do poder coletivo e conseguir a eleição do “stronismo” personalizado, modificando o obstáculo que impedia “constitucionalmente” a continuidade da liderança do presidente.

Os partidos políticos da oposição terminaram por negociar sua participação na Assembleia Constituinte. De acordo com marcos políticos estreitos, limitados pelo estado de sítio, pela lei eleitoral e pela existência de centenas de prisioneiros políticos, elegeram seus representantes – com exceção do Partido Comunista, que estava proscrito – para a Assembleia.

Apesar do caráter limitado da possibilidade de reformar a Constituição em uma Assembleia dominada pelos representantes do oficial Partido Colorado, os oposicionistas justificaram sua participação subordinada às instituições ditatoriais, apontando as dificuldades da luta política após anos de repressão e esgotamento de opções políticas nos marcos estreitos de uma ditadura institucionalizada. Consideraram que a participação na Assembleia Nacional Constituinte, apesar de todos os percalços, poderia contribuir para limitar o exercício ditatorial do poder e dotar a oposição de novas ferramentas a fim de forçar maiores espaços de liberdade.

Promulgada em 25 de agosto de 1967, a nova Constituição legalizou a ditadura personificada sob a formalidade de um regime de democracia representativa: a “democracia sem comunismo”. A nova Constituição, elaborada formalmente com a participação do Partido do Estado e dos demais partidos políticos, conservou fundamentalmente a estrutura jurídico-ditatorial (o estado de sítio permanente e as faculdades extraordinárias para o Poder Executivo), assegurou uma cota de legitimidade política e deu ao ditador a possibilidade de reeleger-se “democraticamente”.

Não obstante a legitimidade alcançada na esfera do sistema político, o uso da violência e o predomínio de uma política “stronista” orientada para o enriquecimento pessoal do círculo governante e de seus aliados estratégicos geraram um aumento gradativo do descontentamento da sociedade, como expressão dos efeitos estruturais do modelo econômico-oligárquico dependente e da política repressiva de contenção das reivindicações sociopolíticas.

A política econômica bloqueava a transição para uma relação mais propriamente capitalista e assim propiciava a acumulação de contradições entre a burocracia colorada e os cidadãos despojados de seus direitos, liberdades e bens. A violência policial-militar continuou sendo a principal resposta política às atividades de dirigentes de associações e de políticos que ultrapassavam os limites inerentes à ordem ditatorial. A perseguição política, a prisão, a tortura e o exílio, sem dúvida, representavam a resistência em diferentes setores sociais, as lutas reivindicativas em diferentes espaços que não logravam articular-se devido à solidez de uma estrutura de poder oligárquico e à debilidade dos partidos políticos e entidades da oposição.

Tal situação, que se poderia qualificar de equilíbrio instável, não se poderia sustentar favoravelmente ao governo devido ao descontentamento social com o regime e à resistência mantida por organizações políticas e sociais. A visita ao Paraguai, em junho de 1969, de Nelson Rockefeller, como representante de Washington, em viagem de auscultação da política norte-americana para a América Latina, tornou possível a liberação de forças contidas pelos mecanismos repressivos do sistema. As manifestações e lutas nas ruas contra o aparelho repressivo determinaram que seus portadores pudessem se expressar por meio da sensibilidade e rebeldia crítica dos movimentos estudantis. Os estudantes colocaram em evidência a organização repressiva do poder político e a existência real de uma subjetividade coletiva potencial capaz de exigir aberturas políticas. A presença universitária nas ruas recuperadas de Assunção instigou o apoio de setores da Igreja Católica, dos partidos políticos de oposição e de amplos setores da cidadania consciente da sociedade civil. O movimento estudantil emergente tornou clara a vinculação ideológica entre ditadura e política imperialista. Por esse motivo foi reprimido e seus dirigentes terminaram nas prisões do regime, torturados e processados por violação de Lei de Defesa da Democracia e profanação do estado de sítio.

Geopolítica da estabilidade ditatorial

Em princípios dos anos 1970, no enclave ditatorial tutelado pelo equilíbrio estratégico de Brasil e Argentina, o modelo econômico e político começou a mostrar claros sinais de esgotamento. Este se traduzia em dificuldades políticas do regime para reproduzir a relação ampliada do Estado oligárquico organizado com base no monopólio da terra e na força repressiva de controle social.

Os obstáculos reais dessa relação de dominação, para manter a exclusão econômica e bloquear a pequena burguesia conectada a relações mais propriamente capitalistas e a exclusão da maioria social pela força, determinavam que a violência tinha a eficácia de controlar “temporariamente” o conflito político, mas não eliminava o conflito estrutural.

Na década de 1970, o obstáculo estrutural resolveu-se por meio de uma conjuntura econômica regional favorável que dissolveu a evolução da crise política e criou condições favoráveis para a consolidação da ditadura “stronista”.

A assinatura do tratado bilateral entre o presidente do Paraguai, general Alfredo Stroessner, e o presidente do Brasil, general Emílio Garrastazu Médici, concretizou a construção da represa hidrelétrica de Itaipu. O projeto binacional requereu, de acordo com o Tratado de Itaipu, um investimento inicial aproximado de US$ 2 bilhões. Calcula-se que em meados da década de 1980 o investimento na construção da represa tenha alcançado a cifra de US$ 16 bilhões. À centralização repressiva tradicional somou-se nessa ocasião o fluxo econômico propiciado pela construção de Itaipu. Esse investimento teve fundamental importância para ampliar a base de sustentação do regime político.

Com efeito, os anos entre 1973 e 1981, nos marcos das relações bilaterais entre o Brasil e o Paraguai, com a construção da represa, foram considerados um período de boom econômico. O Paraguai converteu-se em território de enorme atração para as empresas transnacionais e de investimento privilegiado de capital estrangeiro. Foi também o período de implementação de um esquema geopolítico que reforçou a subordinação do Paraguai a 12,6 bilhões de quilowatts de potência da diplomacia brasileira por meio do controle da empresa de Itaipu Binacional.

Consolidação do poder ditatorial

O investimento maciço de capital foi determinante para reforçar a estabilidade da ditadura. A economia registrou uma expansão de 11% por ano, somente no período de 1977-1980. O fluxo de capital estrangeiro cresceu mais de 40% por ano. Nenhum setor da economia, de acordo com os analistas, registrou uma taxa média inferior a 25%.

Com efeito, durante o auge (1975-1981), a construção da represa tornou possível que no país ocorresse um crescimento sem precedentes da indústria da construção, o que gerou efeitos multiplicadores em outros ramos da atividade econômica, como no de serviços (água, eletricidade, transporte, comunicações etc.), mas fundamentalmente nas atividades financeiras e de seguros, as quais mostraram grande dinamismo.

Considerando a conjuntura regionalmente favorável da construção da represa de Itaipu e o aumento dos preços internacionais dos principais produtos de exportação (algodão e soja), o Paraguai passou a constituir-se em um espaço privilegiado para o maciço investimento de capital estrangeiro e a presença de empresas transnacionais. Mais ainda, a rápida expansão das atividades agroindustriais financeiras, de serviços, comércio e construção consolidou a ampliação da base do predomínio econômico da velha classe latifundiária, com setores emergentes, camadas médias, empregados e operários.

No terreno social, houve um aumento considerável do número de empresários, profissionais e trabalhadores vinculados à construção civil: os cálculos aproximados fazem referência a 100 mil trabalhadores. Junto com a incorporação laboral, as novas condições econômicas impulsionaram o crescimento dos empresários médios e pequenos que, amparados pelo auge econômico, se incorporaram às atividades de transformação de produtos básicos e ampliaram as atividades comerciais, fundamentalmente a importação de produtos estrangeiros.

O aumento do número de trabalhadores, a expansão dos setores médios e a ampliação do setor empresarial, para citar apenas alguns traços que sobressaem na modificação da estrutura social produzida pelo crescimento econômico, supuseram a incorporação desses grupos sociais a uma lógica de reprodução de relações mais propriamente capitalistas, não baseadas no predomínio da violência, mas sim nas formas econômicas das relações sociais.

Desse modo, os trabalhadores, submetidos à relação salarial, viram reformada e reforçada sua condição de sujeitos do capital, por meio da ampliação do emprego e do consumo. Na verdade, porém, a distribuição desigual do fluxo econômico favoreceu muito os grandes capitalistas estrangeiros e nacionais, principalmente a casta política “stronista”, transformada em sócia privilegiada dos poderosos grupos financeiros, e em menor medida o médio e pequeno empresariado nacional e os estratos superiores das camadas médias.

Em tais circunstâncias, os setores dominantes tradicionais e a nova burguesia industrial viram garantido o processo de acumulação privada pelo fluxo dos investimentos estrangeiros e das condições favoráveis que significaram os preços do algodão e da soja. Por outro lado, o retorno de parte do excedente que gerou a construção de Itaipu, em forma de empregos, salários e consumo, reforçou a hegemonia ideológica do sistema político.

De fato, muitos empresários que a princípio se opuseram à expansão brasileira por considerá-la lesiva aos interesses paraguaios, logo se esqueceram de seus impulsos nacionalistas para se associar progressivamente ao projeto de “modernização capitalista”. Com a burocracia corrupta do governo, os bancos estrangeiros, as empresas transnacionais e os empresários locais – vinculados à esfera econômica de Itaipu – sustentaram o bloco representativo do poder.

O novo grupo empresarial hegemônico, conhecido como “os barões de Itaipu”, contribuiu com sua experiência e conhecimento de negócios para apropriar e distribuir os lucros gerados à elite governamental; em troca, o poder militar garantiu a ordem e a estabilidade política. A vinculação estreita entre o poder econômico e o militar contribuiu significativamente para a consolidação do regime ditatorial.

Em torno do interesse compartilhado pelo empresariado e a elite político-militar, o grupo empresarial outorgou ao governo a representação de seus interesses e o regime, por sua vez, cedeu à força militar para garantir a rentabilidade da “acumulação primitiva permanente”. A unidade entre o empresariado local e a burocracia colorada cívico-militar constituiu-se então na base de legitimidade da “democracia sem comunismo” representada pela figura do ditador Alfredo Stroessner.

Assim, o regime encontrou em Itaipu o mecanismo político para reproduzir de forma ampliada as relações do poder personificado, sem ter de modificar as relações dominantes de corte oligárquico-latifundiário dependente.

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O Palácio de Lopez, sede do governo paraguaio, em Assunção (Alobos Life/Creative Commons)

A crise do poder personificado

A partir de 1981, o término da construção de Itaipu trouxe dificuldades crescentes para o regime reproduzir “legitimamente” a base de sustentação social. A relação social de dominação política em sua forma econômico-social não podia manter-se inalterada.

O fim da obra, com a diminuição do investimento estrangeiro, potencializou os antagonismos estruturais na elite do poder e acentuou as contradições do modelo oligárquico dependente. A escassez de excedente não conseguia sustentar a continuidade da aliança entre as frações mais comprometidas com o modelo agroex­portador e a burocracia empresarial e os novos setores econômicos emergentes, mais vinculados com o setor industrial. A situação social complicou-se mais para o regime nas suas relações com os trabalhadores, na medida em que o emprego e os salários reais diminuíram e deterioraram as condições sociais.

Por sua vez, a tendência à desestruturação acentuou-se pela pressão de outro setor significativo: o dos camponeses. O processo de esgotamento de terras fiscais para fomentar o clientelismo político, a passividade social, gerou uma dificuldade maior para o regime preservar a “tranquilidade” dos latifundiários tradicionais, monopolizadores da terra. A situação aguçou-se à medida que novos contingentes de desempregados retornaram ao campo em busca de um lote de terra e se depararam com a maciça imigração de brasileiros – estimados em cerca de 200 mil – em zonas fronteiriças, ocupando áreas importantes do território paraguaio e formando verdadeiros enclaves econômico-culturais.

Dadas essas condições, a crise econômico-social marcou o início de um acelerado processo de deterioração das mediações político-institucionais da ditadura que, amparadas pelo poder estatal, tinham servido para manter a representação unitária dos grupos dominantes e a neutralização do conflito social por meio do “reformismo stronista” e da violência estrutural.

Em princípios da década de 1980, a crise das relações sociais, sob a forma econômica, marcou o início de um acelerado processo de deterioração dos mecanismos estruturais que sustentavam o regime. O bloco econômico dominante apresentava fissuras e a violência do Estado mostrou-se impotente para regular os conflitos sociais.

Nessa conjuntura, começou a ganhar força a ideia de uma guinada para a democracia representativa. A desacumulação que afetou poderosos grupos econômicos não vinculados diretamente com a esfera política coincidiu em seus clamores com as lutas cidadãs que reivindicavam liberdade e democracia. A ideia do “pós-stronismo” converteu-se na força ideológica de crítica ao poder ditatorial.

A evolução da crise opôs os partidários da mudança governamental pela via eleitoral e os defensores da estabilidade pela política repressiva. No ano de 1986, diversos fatores contribuíram para a instabilidade do cenário político-social: medidas orientadas para proteger o modelo econômico oligárquico; a indefinição governamental diante das reclamações da nova burguesia interna (comercial e industrial); a persistência de gestão econômica que afetava os interesses da iniciativa privada e principalmente não revertia a tendência à desocupação; o surgimento de uma opinião cada vez mais crítica em setores influentes da sociedade que questionavam o “stronismo”; a generalização dos conflitos sociais; o retorno da democracia na região, o que estimulou a oposição a unificar esforços para forçar o regime a uma abertura política; a idade do ditador, que, dada a estrutura personificada do regime político, se converteu em um ponto de vulnerabilidade do sistema; a transição para o “pós-stronismo” como uma situação inevitável; a concentração do poder em torno da figura do general, que deslocou outros dirigentes das esferas de influência; e a resposta repressiva do Estado.

A superestrutura ideológica não leu as mensagens originadas de uma sociedade que se organizava para exigir abertura política. Assim, a classe governante atrasou-se em relação à dinâmica da força opositora, que ocupou cada vez mais espaço público, ameaçando desorganizar a base material que sustentava a estrutura ditatorial. A crise social provocou fissuras no Partido Colorado, organização repressiva do Estado, que por sua rigidez e personificação do poder não pôde resolver institucionalmente a problemática política.

Como se pode supor, a crise no círculo privilegiado do governo foi inevitável entre os herdeiros diretos da família “stronista”: os que pensavam que o ditador devia continuar à frente do governo e os que admitiam a necessidade de uma sucessão que permitisse administrar uma transição controlada do poder.

A disputa estratégica entre facções da direção do Partido Colorado estourou em 1º de agosto de 1987, por ocasião da convenção partidária. O antagonismo entre facções do partido do Estado acentuou-se pelo predomínio dos militantes combatentes “stronistas”, o grupo mais próximo do ditador, que consideraram necessário marginalizar todos os que se opunham ao projeto continuísta. A crise manifestou-se em cinco fatos significativos: a ocupação da direção do Partido Colorado por quadros leais à família Stroessner; a sétima reeleição presidencial do ditador (fevereiro de 1988); a ascensão significativa de militares aos postos superiores, entre outras a de Gustavo Stroessner ao posto de coronel, como futuro sucessor de seu pai, representando os militantes combatentes “stronistas”; o objetivo do entorno presidencial de tirar do poder militar o general Andrés Rodríguez, o segundo homem na estrutura do Estado; e a miopia política dessa camarilha fanatizada que não entendia os sinais de “exigências democratizantes” de Washington e da diplomacia do Itamaraty.

O golpe de Estado: fevereiro de 1989

A sétima reeleição de Stroessner, em fevereiro de 1988 (com 88,6% dos votos segundo dados oficiais), em um contexto de polarização entre o Estado e a sociedade civil, acentuou a crise do regime personificado. As facções mais retardatárias do entorno presidencial promoveram mecanismos para reorganizar a condução governamental desarticulando sua base de sustentação (excluindo facções “stronistas” propensas à sucessão, mirando a cúpula militar liderada pelo general Rodríguez, provocando antagonismos entre caudilhos e a base do Partido Colorado). Também se ampliou o campo da oposição, com a incorporação de novos setores do empresariado crítico e o desenvolvimento organizativo da classe operária, que ganhou autonomia do sindicalismo oficial.

Os camponeses que pressionavam pelo acesso à terra, pela luta pelos direitos humanos, pela unificação dos partidos políticos no “Acordo Nacional” e a participação da influente Igreja Católica aceleraram o desgaste do regime e precipitaram a crise política.

Na madrugada de 3 de fevereiro de 1989, representando as Forças Armadas, o general Andrés Rodríguez destituiu pela força seu líder e presidente. Stroes­sner encontrou asilo no Brasil e Rodríguez assumiu a presidência provisória até a realização de eleições.

Em sua proclamação ao país, o líder militar justificou o golpe nos seguintes termos:

Queridos compatriotas. Apreciados camaradas das Forças Armadas, saímos de nossos quartéis em defesa da dignidade e da honra das Forças Armadas, pela unificação plena e total do coloradismo no governo; pelo início da democratização do Paraguai; pelo respeito aos direitos humanos; pela defesa de nossa religião católica apostólica romana. Isto é o que estou oferecendo com o sacrifício do soldado paraguaio ao nosso querido, valente e nobre povo paraguaio. Espero que os camaradas das Forças Armadas me acompanhem nestas circunstâncias, porque estamos defendendo uma causa nobre e justa.

A proclamação do golpe contém algumas chaves para entender os fatores que impulsionaram o general Rodríguez e outros altos chefes militares a rebelar-se contra seu líder e comandante, a quem haviam apoiado com lealdade no exercício do poder ditatorial, em troca de benefícios pessoais e participação no círculo privilegiado do poder personificado. Esse esquema garantiu durante 35 anos, no âmbito interno, o modelo de Estado oligárquico dependente e, no âmbito regional, o enclave geopolítico da diplomacia brasileira.

A “causa nobre” que inspirou o golpe, em seu aspecto real, tem mais a ver com a proteção da estrutura ditatorial do Estado, representada pela unidade entre o governo, o partido e o Exército, do que com as exigências democráticas da sociedade civil e dos partidos da oposição. O mérito de Rodríguez foi entender, na fronteira da crise do regime político, que o golpe de Estado era a única saída possível para evitar a ruptura da unidade histórica (Governo/Partido/Forças Armadas) que havia garantido a estabilidade do sistema político, bloqueando, além disso, a iniciativa de um projeto alternativo de sociedade.

A transição para o “pós-stronismo”

O golpe de Estado deu início a um processo de abertura política que a maioria da opinião pública qualificou como “processo de transição para a democracia”. Como era previsível, a comunidade internacional pressionou o novo homem forte por uma saída democrática, quer dizer, a eleição dos representantes do povo.

Diante dessa exigência, a corporação militar, que tinha sustentado o poder real da ditadura, compreendeu o alto risco político que significava um processo eleitoral não controlado pelas Forças Armadas. No mesmo sentido, os líderes históricos de um desgastado Partido Colorado, que havia administrado com eficiência o saque do Paraguai, sob a divisa “não haverá um colorado pobre”, exprimiam as mesmas preocupações de seus aliados estratégicos.

No pensamento militar surgiram imediatamente várias interrogações sobre a maneira de enfrentar uma saída estratégica – pela via eleitoral – que garantisse à elite governante o poder hereditário do “stronismo” na cúpula militar. Como garantir a mudança política sem arriscar a dominação estrutural organizada pelo poder ditatorial? Como regulamentar as regras da “competição eleitoral”, beneficiando a representação do Partido Colorado? Que modelo de democracia seria o mais funcional na realidade paraguaia, para que o “povo soberano” delegasse ao general Rodríguez a representação política?

As respostas materializaram-se nas eleições presidenciais e dos membros do Congresso em maio de 1989, quando o general Andrés Rodríguez, candidato pelo Partido Colorado, foi eleito presidente para o período 1989-1993. As eleições desenvolveram-se de acordo com as regras do jogo estabelecidas pelo governo (controle do Tribunal Eleitoral, uso maciço dos recursos do Estado em favor do partido oficial, fraude no processo eleitoral etc.). A oposição justificou os resultados eleitorais assinalando que as “eleições foram livres e pluralistas, ainda que não limpas e regulares, mas necessárias como passo para a democratização do país”.

Durante o período presidencial, Rodríguez promoveu duas reformas políticas: a do Código Eleitoral e a da Constituição Nacional. A iniciativa governamental das reformas nos marcos de um “stronismo” sem Stroessner atendia à necessidade (da classe dominante) de ajustar a ordem jurídica e as regras do jogo da “democracia representativa” às relações sociais que permitissem controlar a administração do poder. Com efeito, a cidadania recuperou suas liberdades civis e políticas e a burocracia cívico-militar conservou os benefícios obtidos em cinquenta anos de governo colorado. Passados quinze anos do início da transição, a experiência demonstrou a visão estratégica do general Rodríguez. O Partido Colorado, em 2005, continuava liderando o processo de transição para a democracia e a “acumulação primitiva permanente” seguia administrada com eficiência pelos herdeiros e testamenteiros do “stronismo”.

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Jonathan Padwe (ao centro de camisa branca) explica a crise e conflito de terras do povo Aché para o então presidente Juan Carlos Wasmosy (dir.) e embaixador norte-americano no Paraguai, Robert White (esq.) (Meatradio Paraguay/Jonathan Padwe)

Poder dual

Subjacente à transição do formalismo democrático, o presidente Rodríguez administrava outro processo de transição: as relações Forças Armadas/Partido Colorado. Enquanto os demais partidos políticos discutiam com liberdade no Parlamento a agenda de transição, os militares redefiniam a aliança estratégica com as facções da direção partidária afins com a corporação das armas. O predomínio militar foi ocupando espaços de decisão na estrutura estatal e nos negócios compartilhados com grupos empresariais.

Prova disso foi a ascensão meteórica do general Lino Oviedo como sucessor de Rodríguez no poder militar, e a designação do engenheiro Juan Carlos Wasmosy, integrante dos “barões de Itaipu”, como sucessor no poder civil. O principal líder histórico do Partido Colorado, dr. Luis María Argaña, candidato natural à presidência, não pôde evitar o peso do poder militar que o alijou – via fraude eleitoral – da possibilidade de representar o partido oficial do governo nas eleições de maio de 1993. Um dos principais operadores que facilitou o triunfo eleitoral de Wasmosy nas eleições presidenciais foi o general Oviedo.

No exercício do governo, Wasmosy, considerado pela opinião pública como o primeiro presidente civil, e não como o que era em realidade, o representante civil da cúpula militar, converteu-se em um ponto contraditório do poder dual. O presidente, para cumprir as exigências democráticas, tinha de desmilitarizar o poder civil, mas para exercer a liderança governamental, deveria cumprir as ordens dos que o designaram como representante.

A luta subterrânea entre o presidente Wasmosy e o líder militar, general Oviedo, foi-se acentuando em relação ao controle efetivo do poder político. Essa tensão se fazia evidente com as designações de ministros, altos funcionários nas empresas do Estado, nas promoções e transferências militares, nos negócios etc. Ademais, as atividades políticas ostensivas de Oviedo, violando a Constituição e a instituição militar, não só aguçavam as tensões, como também geravam instabilidade política.

O mês de abril de 1996 resumiu a crise do poder dual. Se em maio de 1993 o general Oviedo tinha sido o principal operador político para garantir o triunfo presidencial de Wasmosy, três anos depois o líder militar se converteu em principal obstáculo à representação legítima do poder civil. Correram insistentes rumores da possibilidade de um golpe de Estado coordenado por Oviedo e da substituição do general no cargo de comandante do Exército por ordem do presidente do Paraguai e comandante em chefe das Forças Armadas da nação.

Ditadura cautelar

A confrontação entre o Comando do Exército e a Presidência da República já não se podia resolver na privacidade do Palácio do Governo. Finalmente, em meio a rumores e tensões, foi a embaixada dos Estados Unidos quem decidiu a situação. Os representantes de Washington informaram que o general Oviedo deveria renunciar tal como lhe fora ordenado. O governo dos Estados Unidos manifestava seu apoio a Wasmosy. Toda a comunidade internacional se mobilizou para apoiar a democracia no Paraguai. A superioridade estratégica já não residia na força militar, e sim na comunidade internacional e no bloco regional. A crise cívico-militar ou a confrontação entre aparelhos do Estado se concluiu com a reforma do general Oviedo.

Na ocasião, a luta pelo poder concentrava-se na administração burocrática do Estado-partido. A possibilidade de que um grupo político ocupasse a direção do Estado e capturasse cotas de poder supunha, de acordo com a ideologia “stronista”, o desenvolvimento e fortalecimento de poderosos grupos econômicos por meio da pilhagem e da corrupção. Por esse esquema, o território converteu-se em simples encrave de exploração de recursos e de trabalho servil. Assim, o governo de Stroessner distribuiu uma grande porcentagem de terras fiscais, praticamente gratuitas, à burocracia político-militar e a outros grupos vinculados com o círculo do poder. Atualmente, o Paraguai tem uma das mais altas concentrações de terras em mãos de poucos.

Por tudo isso, o atrativo de ocupar a direção do poder desatava todo tipo de paixões no Partido do Estado Oligárquico. À medida que se aproximavam as eleições presidenciais e a eleição dos membros do Congresso, a luta entre as facções e os grupos econômicos centralizou-se na estrutura partidária colorada, organizada de maneira hierárquica e em troca de benesses. Duas correntes políticas disputavam a candidatura do partido à Presidência da República: dr. Luis María Argaña (líder histórico colorado) e o ex-general Oviedo. A débil democracia interna do Partido Colorado não permitiu chegar a uma solução negociada.

O período de 1996 a 2003 caracterizou-se não somente pela intensidade da luta entre os principais caudilhos, como também pelo uso da força para impor soluções. O aspirante a presidente Lino César Oviedo foi excluído da corrida presidencial por um Tribunal Militar que o condenou por sua participação na tentativa de golpe de Estado. Para substituí-lo, o general designou um homem de sua confiança, o engenheiro Raúl Cubas Grau, e o dr. Argaña foi novamente neutralizado em suas aspirações. No entanto, ambos terminaram formando a dupla presidencial que derrotou uma oposição desunida em maio de 1998.

A força retornou com intensidade para resolver os conflitos na cúpula do Estado. Oviedo, na prisão, pretendia exercer o poder por meio de seu representante, o presidente do Paraguai, Raúl Cubas Grau. Por sua vez, o vice-presidente Luis María Argaña aspirava chegar à presidência forçando a renúncia de Cubas Grau, de quem era adversário político.

Os confrontos na cúpula do poder estatal se encerraram na manhã de 23 de março de 1999, quando o vice-presidente da República e líder histórico do Partido Colorado foi assassinado em uma rua de Assunção. A morte violenta de Argaña operou como detonador de uma crise política. Os efeitos geraram o “Março Paraguaio”, quer dizer, a mobilização da cidadania, que ocupou a Praça do Congresso em sinal de repúdio e defesa das instituições. Diante da pressão cidadã e da comunidade internacional, o presidente do Paraguai, Raúl Cubas Grau, se viu obrigado a renunciar para evitar o julgamento político do Congresso. Em substituição, o Congresso designou o senador dr. Luis Gonzalez Macchi, do Partido Colorado, presidente da República para completar o mandato presidencial.

Em agosto de 2003, chegou ao poder o presidente, Nicanor Duarte Frutos. Aparentemente, sua responsabilidade partidária é cautelar à ditadura, representando os que o designaram, sob a aparência de democracia representativa.

Atualização (2005-20150)

por Mônica Rodrigues

O Partido Colorado, o mais tradicional do país, somava mais de cinco décadas de poder ininterrupto, quando seu representante, Nicanor Duarte Frutos, conquistou a presidência com 45,8% dos votos. O novo presidente faria um governo personalista, provocaria um racha no partido e levaria o Paraguai à beira de uma crise institucional. E, além disso, ao ver frustrada sua manobra pela reeleição, Frutos renunciou pouco meses antes de terminar o mandado, em 2008. O gesto provocou instabilidade política e foi decisivo para interromper o ciclo colorado de poder.

No início de seu governo, Frutos acenou em direção aos vizinhos continentais. Preteriu acordos com a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) em favor dos processos de integração regional. Porém, o estreitamento das relações políticas e comerciais com os governos do Brasil, da Argentina e da Venezuela, bem como a integração ao Mercosul, sofreram um forte abalo em 2005, quando o país permitiu a instalação de uma base militar norte-americana em seu território. O acordo foi aprovado no Parlamento pelos partidos conservadores paraguaios, interessados em uma reaproximação com os Estados Unidos. Criticado duramente por seus vizinhos e parceiros, o Paraguai acabaria isolado no continente.

A economia prosperou durante o governo Frutos. A taxa de crescimento  anual do PIB chegou aos 7% Já a inflação permaneceu sob controle, a dívida externa foi reduzida e o governo promoveu uma ampla reforma fiscal. Tal desempenho não significou, contudo, redistribuição de renda. O gráfico da linha de pobreza se manteve inalterado nos cinco anos de seu mandato: os pobres somavam 40% da população paraguaia; e destes, 20% viviam em pobreza extrema.

 Os elementos centrais das decisões presidenciais foram sempre na direção da estabilidade macroeconômica. Jogando com esse trunfo, Frutos tentou viabilizar sua reeleição por meio de uma emenda constitucional. Manipulou o poder Judiciário a fim de ser nomeado presidente de seu partido, quando as leis o proibiam de exercer qualquer outro cargo. Mas uma manifestação popular contra o caráter ilegal da manobra reuniu 40 mil pessoas na capital, Assunção, marcando o declínio de sua popularidade.

Desse modo, o Partido Colorado chegou dividido às eleições presidenciais de 2008, o que favoreceu a candidatura de oposição do arcebispo Fernando Lugo, que venceria o pleito. E dois meses antes da posse de seu sucessor, Frutos apresentou sua renúncia para se habilitar ao cargo de senador – a constituição paraguaia outorga aos ex-presidentes o cargo de senador vitalício, mas sem direito a voto. Desde que a manobra pela reeleição naufragara, Frutos ambicionava o cargo de senador eleito. Dessa vez, sua manobra é bem-sucedida. Recebe cerca de 500 mil votos e a autorização da Justiça para tomar posse no novo cargo.

Esperança e impeachment
A eleição de Fernando Lugo criou uma grande expectativa no país. Por seu passado de luta pelos direitos dos oprimidos e por sua trajetória religiosa, dele se esperava um governo progressista, de transformações sociais, capaz de criar empregos e de combater a corrupção. Ele iniciou o governo com 90% de aprovação, mas o arranjo político que o levou à presidência rapidamente se mostrou frágil e desfavorável.

Lugo chegou ao poder amparado por uma coligação que alinhava de um lado agremiações de esquerda e, de outro, o Partido Liberal, de orientação conservadora. Os partidos de esquerda tinham uma representação parlamentar irrisória. Assim, para governar, o presidente dependia do Partido Liberal. O apoio dos liberais, no entanto, não se deu em torno de um projeto político de união nacional. Seu objetivo era somente apear o Partido Colorado do poder e ocupar o seu lugar. Isso ficou claro logo no início do governo. Federico Franco, indicado a vice-presidente de Lugo pelo Partido Liberal, tornou-se o líder da oposição.

No entanto, mesmo diante de adversários organizados e ferrenhos, o presidente fez valer compromissos de campanha. Negociou um acordo mais vantajoso na revisão do Tratado de Itaipu e aumentou os investimentos sociais, ampliando os serviços gratuitos de saúde e criando um programa de renda mínima para famílias em situação de extrema pobreza. Também contrariou os interesses norte-americanos ao recusar a instalação de uma base militar em Mariscal, vilarejo próximo à fronteira com a Bolívia e, uma semana depois, trocou o comando militar do Estado. Também negou subsídios a uma multinacional canadense interessada em instalar uma fábrica de alumínio às margens do rio Paraná.

Enfrentando uma oposição com maioria absoluta no Congresso, Lugo governou na corda bamba, fazendo concessões à direita e tentando apaziguar as reivindicações de grupos de extrema esquerda e de movimentos sociais. A descoberta de que teve um filho não reconhecido quando era padre e, logo em seguida, de dois pedidos de reconhecimento de paternidade chocou o Paraguai, país predominantemente católico, abalando sua popularidade.

No dia 15 de junho de 2012, mais de trezentos policiais foram enviados a uma propriedade do senador Blás Riquelme, ex-presidente do Partido Colorado, em Curuguaty, a 250 km de Assunção, a fim de executar uma reintegração de posse, desalojando cerca de sessenta camponeses. Houve confronto e morreram onze camponeses e seis policiais. Os oposicionistas responsabilizaram o governo pelas mortes e, dias depois, iniciaram o processo de impeachment do presidente por “mau desempenho de suas funções”. Foi um rito sumário. O Senado decretou o impeachment em pouco mais de 24 horas, e os advogados de Lugo tiveram duas horas para defendê-lo.

Assim, o vice Federico Franco assumiu a presidência interina. Lugo não reconheceu o novo governo, mas assumiu uma postura pacifista frente à sua destituição para evitar o acirramento de confrontos diante das manifestações populares contra o impeachment, principalmente nas ruas da capital.

Imediatamente, os governos dos demais países sul-americanos chamaram seus embaixadores em protesto ao que caracterizaram como golpe. O Paraguai foi suspenso do Mercosul e da Unasul. Os Estados Unidos, porém, aceitaram sem restrições o novo presidente. Logo, Franco desativou a comissão de investigação sobre o caso Curuguaty, retomou as negociações de cooperação militar com os norte-americanos e liberou o uso dos transgênicos, que Lugo havia barrado.

O Partido Colorado de volta
O empresário Horacio Cartes venceu as eleições de abril de 2013 com 45,9% dos votos validos. Depois de cinco anos, o Partido Colorado estava de volta ao poder. Cartes era, então, uma cara nova na política. Apenas em 2009 tirou seu primeiro título de eleitor – no Paraguai o voto não é obrigatório – e filiou-se ao partido. Assim, usando de seu prestígio, conseguiu quebrar a regra colorada que exigia dez anos de agremiação para ser candidato à presidência.

Cartes é um dos homens mais ricos do Paraguai. Está à frente de um conglomerado de 26 empresas que produzem bebidas, cigarros, charutos, roupas e carnes, é dono do Banco Amambay e foi presidente do Club Libertad, um dos times de futebol mais populares do país. Mas seu ingresso na política jogou luz sobre episódios controversos de sua trajetória. Seu banco, por exemplo, foi alvo de investigações por suspeita de lavagem de dinheiro. Além disso, no ano de 2000, um avião com registro brasileiro foi localizado em uma fazenda de sua propriedade levando um carregamento de cocaína e maconha. Contudo, ele negou qualquer relação com as drogas.

Dizendo ter como inspiração o exemplo brasileiro, Cartes assumiu prometendo diminuir a pobreza. E sua eleição significou a volta do Paraguai ao Mercosul como membro pleno. Mas, no primeiro ano de mandato, seu esforço principal foi aprofundar o intercâmbio com os Estados Unidos na área da defesa. Os norte-americanos investiram cerca de US$ 25 milhões em treinamento e intercâmbio para militares do exército paraguaio, além de cooperarem nas ações locais de combate às drogas. No ano seguinte, os Estados Unidos ainda inauguraram uma nova base militar em território paraguaio, o Centro de Operações para Emergência, na cidade de Santa Rosa Del Araguay.

Depois, o presidente paraguaio foi o único chefe de Estado latino-americano a não manifestar repúdio à ofensiva israelense sobre a Faixa de Gaza, em 2014, confirmando seu alinhamento à política externa dos Estados Unidos.

Já os movimentos sociais se colocaram contra a gestão Cartes desde o início, promovendo grandes mobilizações. Em março de 2014, por exemplo, foi deflagrada uma greve massiva exigindo melhorias salariais, protestando contra o aumento das passagens e pedindo a libertação de catorze camponeses do caso Curuguaty.

A situação social paraguaia permanece preocupante. Um estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 2014 revelou que 81,3% das relações de emprego no país são informais e que apenas 16,3% da mão de obra ativa têm emprego digno. O documento também apontou um profundo déficit nos serviços de saúde e educação.

 

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O presidente argentino Néstor Kirchner em encontro com o presidente paraguaio Nicanor Duarte Frutos, em 2006 (Presidencia de la Nación Argentina)

 

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O recém empossado presidente do Paraguai, Federico Franco, assiste missa na catedral da cidade, em 23 de junho de 2006 (Marcello Casal jr/ABr)

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Paraguaios festejam vitória do candidato da Aliança Patriótica para a Mudança, Fernando Lugo, em abril de 2008, em Assunção (Antonio Cruz/ABr)

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O ex-presidente do Paraguai, Fernando Lugo, fala à imprensa, em Assunção, em 24 de junho de 2012 (Marcello Casal jr/ABr)

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Um grupo de simpatizantes do ex-presidente Fernando Lugo fazem protesto contra seu impeachment em frente à sede da TV Pública, em junho de 2012 (Marcello Casal Jr./ABr)

 

Dados Estatísticos

Indicadores demográficos do Paraguai

1950

1960

1970

1980

1990

2000

2010

2020*

População 
(em mil habitantes)

1.473

1.907

2.485

3.199

4.250

5.350

6.460

7.607 

• Sexo masculino (%)

49,21

49,25

49,89

50,43

50,54

50,60

50,46

... 

• Sexo feminino (%)

50,79

50,75

50,11

49,57

49,46

49,40

49,54

... 

Densidade demográfica 
(hab./km²
)

4

5

6

8

10

13

16

19

Taxa bruta de natalidade 
(por mil habitantes)**

44,25

41,22

35,62

37,27

31,96

26,92

23,9*

21,1

Taxa de crescimento 
populacional**

2,57

2,66

2,43

2,93

2,44

1,97

1,70*

 1,42

Expectativa de vida
(anos)**

62,73

64,47

65,93

67,07

68,50

70,76

72,2*

73,1 

População entre 
0 e 14 anos (%)

47,01

47,87

46,13

42,51

41,39

38,17

35,54

30,3

População com mais 
de 65 anos (%)

2,90

3,19

3,47

3,80

4,06

4,42

5,17

6,5 

População urbana (%)¹

34,57

35,57

37,06

41,69

48,69

55,33

58,49

61,03 

População rural (%)¹

65,43

64,43

62,94

58,31

51,31

44,67

41,51

38,97 

Participação na população 
latino-americana (%)***

0,88

0,87

0,86

0,88

0,95

1,02

1,08

1,15

Participação na população 
mundial (%)

0,058

0,063

0,067

0,072

0,080

0,087

0,093

0,099 

Fonte: ONU. World Population Prospects: The 2012 Revision Database
¹ Dados sobre a população urbana e rural retirados de ONU World Urbanization Prospects, the 2014 Revision 

* Projeção. | ** Estimativas por quinquênios. | *** Inclui o Caribe.

Obs.: Informações sobre fontes primárias e metodologia de apuração (incluindo eventuais mudanças) são encontradas na base de dados indicada.

Indicadores socioeconômicos do Paraguai

1960

1970

1980

1990

2000

2010

2020*

PIB (em milhões de US$ 
a preços constantes de 2010)

11.377,7

14.289,7

20.047,5

...

• Participação no PIB
latino-americano (%)

0,430

0,399

0,403

... 

PIB per capita (em US$
a preços constantes de 2010)

2.677,3

2.670,8

3.104,3

... 

Exportações anuais 
(em milhões de US$)

400,3

2.096,2

3.640,1

10.474,4

... 

• Exportação de produtos 
manufaturados (%)

8,9

11,8

9,9

18,9

7,4

... 

• Exportação de produtos 
primários (%)

91,1

88,2

90,1

81,1

92,6

... 

Importações anuais 
(em milhões de US$)

675,3

1.734,8

2.740,1

9.592,7

... 

Exportações-importações 
(em milhões US$)

-275,0

361,4

900,0

881,7

... 

Investimentos estrangeiros 
diretos líquidos 
(em milhões de US$)

31,7

76,9

97,9

215,9

... 

Dívida externa total 
(em milhões de US$)

861,0

1.695,0

2.869,5

3.621,1

... 

População Economicamente 
Ativa (PEA) 

...

...

1.018.660

1.600.519

2.124.464

2.884.951

3.723.183

• PEA do sexo 
masculino (%)

...

...

80,32

69,60

64,67

61,46

...

• PEA do sexo 
feminino (%)

...

...

19,68

30,40

35,33

38,54

...

Taxa anual de 
desemprego urbano (%)

...

6,3*

...

6,9

... 

Analfabetismo 
acima de 15 anos (%)

...

...

...

...

6,1

...

• Analfabetismo 
masculino (%)

...

...

...

...

5,2

...

• Analfabetismo 
feminino (%)

...

...

...

...

7,1

... 

Matrículas no 
ciclo primário¹

424.179

518.968

687.331

966.476

839.291

... 

Matrículas no 
ciclo secundário¹

55.777

118.828

163.734

459.260

560.866

... 

Matrículas no 
ciclo terciário¹

8.172

26.915

32.884

83.088

225.211

... 

Professores

...

...

Médicos²

493

2.567

2.452

2.832

4.912

5.205

... 

Índice de Desenvolvimento 
Humano (IDH)³

0,550

0,581

0,625

0,669

... 

Fontes: CEPALSTAT

¹ UNESCO Institute for Statistics
² O dado referente ao ano de 1960 refere-se ao número de médicos registrados, mas nem todos são residentes ou trabalham no país. O ano de 2000 é uma projeção do Centro Nacional de Recursos Humanos. 
³ UNDP. Countries Profiles.

* Projeções.

Obs.: Informações sobre fontes primárias e metodologia de apuração (incluindo eventuais mudanças) são encontradas na base de dados ou no documento indicados.

 

Mapa

 

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