Fotógrafo, cineasta, caricaturista, designer gráfico e compositor “clássico”, descendente de judeus ucranianos que emigraram para os Estados Unidos em 1923, Jack Delano passou seus anos de formação na Filadélfia e em Nova York. Sua infância e juventude combinaram a tranquila convivência familiar de tradições culturais ancestrais com a mudança social vertiginosa. As metrópoles dramatizavam as contradições sobre as quais se forjava esse novo país: uma pujante economia crescentemente monopolizada e baseada na competição para o enriquecimento individual, diante de uma ideologia democrática cimentada no “cidadão comum”. Diante da crise da Depressão, o presidente Franklin Delano Roosevelt idealizou os programas do chamado New Deal (Novo Acordo) para buscar consensos sociais que possibilitassem uma convivência diferente.
A arte de Jack Delano é filha do New Deal: agudas tensões sociais e lutas para sua resolução democrática. Por esse motivo, não é fortuito que ao iniciar sua vida pública profissional, o imigrante Jasha Ovcharov mudasse voluntariamente seu nome de acordo com suas novas bandeiras de identidade. Adotou como sobrenome Delano, do nome materno do então presidente norte-americano, e como prenome Jack, que tradicionalmente designava o homem comum. Tampouco é coincidência que decidisse iniciar sua vida profissional com a fotografia documental. Nos anos 1930, a fotografia saiu do âmbito controlado do estúdio para incorporar-se à realidade das ruas. Um dos movimentos mais importantes nesse desenvolvimento esteve vinculado ao New Deal. Sob a direção do sociólogo Roy Stryker, um grupo de fotógrafos da divisão de documentação histórica da Farm Security Administration (FSA) se lançou por todos os Estados Unidos para documentar os avatares do cotidiano do norte-americano comum. O projeto tentava combinar a arte, as humanidades e as ciências sociais em uma ocupação dirigida a incidir na política pública e na concepção do país. Cada fotógrafo se preparava para suas encomendas por meio de leituras de economia, história e antropologia da região cuja vida iria documentar, mas sem perder de vista sua condição de artista.
A grata descoberta de Porto Rico
Como fotógrafo da FSA, Delano visitou Porto Rico em 1941, e regressou cinco anos mais tarde para ali se estabelecer. Em meados dos anos 1940, o espírito do New Deal estava se dissipando nos Estados Unidos, enquanto a política de Luis Muñoz Marín convertia Porto Rico no último reduto daquela filosofia político-social. Delano se identificou de imediato com as possibilidades desse projeto transformador e colaborou no estabelecimento de La División de Educación de la Comunidad, que tentava integrar diversas artes audiovisuais (cartazes, panfletos ilustrados, fotografias, cinema etc.) em um projeto de orientação social. Nesse projeto, ele transferiu seu foco principal de atividade para o cinema, dirigindo e produzindo muitos dos primeiros documentários educativos latino-americanos. O filme Los Peloteros, sobretudo, é considerado à altura da melhor cinematografia que se fazia então na escola do realismo italiano. Posteriormente, produziu dois desenhos animados: Sabios árboles, Mágicos árboles, de inspiração ecologista, nos anos 1980, e, na década seguinte, Los aguinaldos del infante, conto natalino infantil.
Suas primeiras composições musicais se deram nos marcos de seu trabalho como cineasta. Combinou uma sólida formação na tradição “clássica”, experimentos eletroacústicos (considerados dos primeiros no mundo), com temas, harmonias e ritmos da linguagem musical do porto-riquenho comum, protagonista de suas películas. Teve razão a Organização dos Estados Americanos (OEA) ao definir Delano, em seu catálogo Composers of the Americas, como compositor porto-riquenho. Seu desenvolvimento como compositor esteve sempre vinculado ao das instituições culturais do país: a Orquestra Sinfônica, os Balés de San Juan, a rádio e a televisão pública etc. Sua música se caracteriza por integrar um profundo lirismo íntimo com uma aguda consciência social. Convém destacar sua “Sinfonietta para cuerdas” (1984), seu “Concertino para trompeta” (1965), seu balé “La bruja de Loíza” (1956), sobre os toques de bomba, sua cantata sinfônica “Burundanga” (1992), sobre um poema de Luis Palés Matos, e sua “Sonata para viola” (o clarinete) y piano” (1953) que integra a uma linguagem “clássica” os variados troncos históricos da sonoridade porto-riquenha: a afrobomba, a música camponesa e a proletária plena.
Entre 1955 e 1963, Delano colaborou com o jornal The Island Times como caricaturista. Até então as caricaturas da imprensa concentravam elogios ou críticas a personagens públicos proeminentes. Delano contribuiu para a transformação do gênero, abordando principalmente as venturas e desventuras do cidadão comum. Suas caricaturas apresentam com humor toda uma série de preocupações em torno dos caminhos que foi tomando o projeto modernizador do qual ele mesmo havia sido parte, adiantando inclusive o que mais tarde chamariam de sensibilidades pós-modernas.
A partir de 1969, quando se retirou do serviço público, dedicou-se à ilustração e ao desenho de livros, especialmente para crianças e jovens. Com sua esposa Irene, grande artista gráfica, desenharam e ilustraram o educativo conto Las nuevas ropas del emperador (1971), localizando sua trama nas ruas de San Juan. Juntos desenharam, ilustraram e escreveram o livro En busca del maestro Rafael Cordero, sobre um tabaqueiro mulato que organizou uma das primeiras escolas do país, onde dava aulas gratuitamente a crianças de todas as classes sociais. Finalmente, os dois colaboraram com fotos e desenhos para os livros do folclorista Teodoro Vidal sobre as artes populares porto-riquenhas – principalmente os entalhes de santos e as máscaras de vejigantes.
Mil faces de um povo
Em 1990, Delano produziu um livro com suas fotografias de 1946, De San Juan a Ponce en el tren. Suas ideias, paixões e utopias aparecem de modo transparente. O trem é visto além de sua maquinaria e suas “funções”, por meio de seus trabalhadores e passageiros: os produtores e os consumidores, binômio relacional central da filosofia do New Deal. É significativo que sejam imagens de uma família “moderna”, de novo cunho, liderada por uma mulher trigueira, que alinhavam o discurso visual do trajeto e do livro.
As fotografias de Delano da década de 1940 permaneceram por muitos anos dispersas em diversas publicações, entre as quais a mais importante foi o livro The people of Puerto Rico (1956), de um grupo de antropólogos entre os quais figuravam Sidney Mintz e Eric Wolf. Em princípios dos anos 1980, ele fotografou lugares e situações semelhantes, esquadrinhando as mudanças acontecidas em Porto Rico durante quarenta anos. Não o surpreenderam somente mudanças, mas também continuidades, sobretudo na maneira de tratar as pessoas e nesse aspecto tão simultaneamente íntimo e social que constituem as poses e os gestos.
Esse projeto se cristalizou em seu livro Puerto Rico mio. Tanto por suas joias fotográficas como por sua maneira de relacionar umas com outras, trata-se simultaneamente de um dos grandes livros da história da arte da fotografia e de uma das mais profundas análises visuais de uma cultura em mudança social. “Retrata” como nenhum outro o processo modernizador, com suas importantes conquistas, seus rumos ambivalentes e seus preocupantes desacertos. Seu olho crítico-construtivo, que antepunha à denúncia a alegria de sua fé na vida, na cultura e na educação, permeia os outros livros que publicou: a recompilação de suas caricaturas Así es la vida (1996), o poema fotográfico de El día que el pueblo se despidió de Muñoz (1987) e, de maneira especialmente amena e profunda, sua autobiografia Photographic memories, que saiu impressa apenas alguns dias antes de sua morte.
Sua arte de tão variadas facetas enfatiza a dignidade de compartilhar o simples, dentro do mais profundo sentido democrático; mas identificando-se cedo como sujeito desse compartilhar, tampouco escapa seu trabalho da utopia: expressa o que queira que sejamos. Sua arte – realista, imaginativa e livre – é também, no melhor dos sentidos, comprometida. Emigrante, como tantos porto-riquenhos e latino-americanos, entendeu cabalmente o caráter dinâmico e fundamentalmente relacional do fenômeno nacional. Diante da pergunta se se considerava porto-riquenho, respondeu de maneira decidida e com firmeza pouco antes de falecer: “o serei enquanto vocês assim o quiserem”.