A América Latina é uma região que se destaca no mundo por suas riquezas hídricas. Com 12% da superfície terrestre total e 6% da população mundial, a região recebe em torno de 27% das chuvas que caem no planeta, a maior parte concentrada na bacia amazônica. Considerando a disponibilidade hídrica anual (quadro abaixo), a América do Sul tem uma disponibilidade duas vezes maior que a média mundial, duas vezes maior que a da América do Norte – a segunda região com maior disponibilidade –, quase 2,5 vezes maior que a da Europa e 4,5 vezes maior que a da África.
De acordo com os critérios da ONU de disponibilidade hídrica por habitante, Brasil, Bolívia, Colômbia, Venezuela, Argentina e Chile são considerados países “ricos” por se situarem na faixa entre 10 mil e 100 mil m³/pessoa/ano, enquanto a Guiana Francesa é classificada como país “muito rico” por estar acima de 100 mil m³/pessoa/ano. Na categoria “suficiente”, aparecem países como o Peru, com disponibilidade per capita de cerca de 1.790 m³/pessoa/ano. Há ainda problemas de limitação de água nas ilhas caribenhas, que têm uma das mais baixas dotações de recursos hídricos por habitante, inferior à de outros grupos de ilhas do mundo: apenas 13,3% da dotação existente no oceano Índico e 1,7% da existente no Pacífico Sul.
Disponibilidade hídrica anual no mundo (em mililitros/ano)
Região |
Precipitação |
Evapotranspiração |
Disponibilidade [C = (A – B)] |
Europa |
700 |
507 |
283 |
Ásia |
740 |
416 |
324 |
África |
740 |
587 |
153 |
América do Norte |
756 |
418 |
339 |
América do Sul |
1.600 |
910 |
685 |
Austrália e Oceania |
791 |
511 |
280 |
Antártica |
165 |
0 |
165 |
Totais |
800 |
485 |
315 |
Fonte: Adaptado de Rebouças, Aldo C. et al. Águas doces no Brasil. São Paulo: Escrituras, 1999. p. 31
Vastas extensões territoriais da América Latina, todavia, são áridas ou semiáridas, como grande parte do Centro-Norte do México; o Nordeste brasileiro; a Patagônia, no Centro-Sul argentino; o deserto do Atacama, no litoral norte do Chile e o litoral sul do Peru; parte da Bolívia e do Peru. As condições de semiaridez do Nordeste brasileiro recobrem-se de características especiais. Na região do Polígono da Seca, por exemplo, as chuvas – com média anual de até 450 mm – concentram-se em um período de tempo curto e sofrem intensa evaporação pela proximidade da linha do Equador, faixa de mais intensa insolação. Mais do que a escassez de água, o que assola essa região é a excessiva evaporação, o que indica que a solução para garantir água está mais na conservação e proteção contra a evaporação do que na transposição de água de rios de bacias distantes, como parecem acreditar os ideólogos do projeto de transposição do rio São Francisco. Experiências comunitárias bem-sucedidas como as da ASA (Articulação do Semiárido) vêm demonstrando excelentes resultados, não com obras faraônicas, mas com a construção de cisternas que protegem da evaporação boa quantidade da água que ali se precipita.
Os rios Amazonas, Orenoco, São Francisco, Paraná, Paraguai e Madalena transportam mais de 30% da água superficial continental do mundo. As duas maiores bacias hidrográficas do mundo, a Amazônica e a do Prata, estão na América do Sul. A América Latina dispõe, ainda, da maior reserva geológica de água (aquífero) do mundo, com 1,2 milhão de km², que se estende pelo Brasil (840 mil km²), Paraguai (58,5 mil km²), Uruguai (58,5 mil km²) e Argentina (255 mil km²). Segundo Roberto Malvezzi, da Comissão Pastoral da Terra, essa água seria suficiente “para abastecer 360 milhões de pessoas indefinidamente, desde que bem gerenciada. É a população de toda América Latina”.
O balanço da disponibilidade hídrica do continente registra a presença de extensas áreas alagadas (pantanais, banhados, mangues, humedales), incluindo as duas maiores extensões de áreas alagadas do planeta – o Pantanal Mato-Grossense e a Planície do Araguaia. São áreas importantes por sua diversidade biológica, cujo destino vem sendo ameaçado pela poluição, pela drenagem para outros fins, ou estão simplesmente secando em razão de desequilíbrios provocados por excesso de captação nas regiões adjacentes, como vem acontecendo nos cerrados brasileiros, no oriente boliviano e no Gran Chaco paraguaio e argentino, com o avanço das grandes monoculturas do agronegócio da soja, do algodão, do milho e do girassol.
Por fim, há que se considerar a água que não aparece em estado líquido ou sólido (geleiras andinas), e que se pode chamar água em estado vivo, ou seja, a água que se faz presente nas plantas e nos animais e que, na região, é particularmente importante graças às grandes extensões de florestas. Somente a floresta amazônica ocupa uma área de aproximadamente 8 milhões de km², com uma média de biomassa por hectare que varia de 350 a 550 toneladas e, em geral, é constituída de 70% de água. Trata-se de um verdadeiro “oceano verde”, cuja evapotranspiração contribui para formar a Massa Equatorial Continental, que redistribui essa água por grande extensão da América do Sul, do Caribe e do sul dos EUA. As florestas contribuem, assim, para a dinâmica climática global e, particularmente graças à umidade, para que as amplitudes térmicas (diferenças entre as máximas e as mínimas) se mantenham mais equilibradas.
A demanda regional e seus problemas
Tanto a urbanização como a industrialização e, sobretudo, a agricultura, com o aumento das áreas irrigadas, vêm fazendo a demanda por água crescer rapidamente. Deve-se considerar, ainda, o forte impacto que causa o incremento do turismo no aumento do consumo de água, que pode variar entre cinco e dez vezes mais que os setores residenciais. Agregue-se ao crescimento da demanda o desequilíbrio nos ciclos da água em virtude do desmatamento, que não só altera a sua disponibilidade, como também traz enormes prejuízos derivados do aumento das inundações e secas.
Com a urbanização, a industrialização e a agricultura empresarial, vem aumentando também a poluição. A causa principal da contaminação tem sido a descarga direta de efluentes não processados, tanto domésticos, como industriais e agrícolas. A contaminação não atinge só as águas superficiais, como também os aquíferos. Com a expansão da indústria, da mineração e do uso de agroquímicos, os rios e os aquíferos vêm sendo contaminados com resíduos sólidos orgânicos, químicos tóxicos e metais pesados.
A contaminação das águas é particularmente grave nas áreas metropolitanas. Além da concentração da população e da produção industrial que aí se desenvolvem, há também o crescimento dos sistemas de canais convencionais, que não tem sido acompanhado pelo tratamento das águas correspondentes, e a intensificação do uso agrícola da terra nas proximidades dessas áreas. Assim, a qualidade dos corpos de água nas proximidades dos centros metropolitanos sofre sério comprometimento. Considere-se ainda que a injusta distribuição da riqueza contribui para agravar os problemas ambientais na medida em que continuam sendo construídas casas em áreas sensíveis – como nas encostas de alta declividade – e nas partes superiores das zonas de captação de água ou muito próximas de sensíveis aquíferos de águas subterrâneas ou pântanos e manguezais. Por serem áreas desvalorizadas para fins de construção de habitação, atraem aqueles que não têm como construir suas casas em lugares mais seguros ou contratar peritos para fazê-lo em segurança.
Ao crescer a indústria, a irrigação e a urbanização, avolumam-se também os custos ambientais e econômicos para subministrar água adicional. Na Cidade do México, a água está sendo bombeada a altitudes superiores a mil metros para chegar ao Vale do México, e em Lima, capital do Peru, a contaminação nas bacias superiores aumentou o custo de tratamento em cerca de 30%, segundo o Banco Mundial. Tem sido observado também um alto custo para a dessalinização no Caribe, a contaminação das águas subterrâneas pelo chorume e a liberação inadequada de metais pesados, químicos sintéticos e dejetos perigosos (lixo hospitalar). Segundo a ONU, a quantidade desses compostos que chega às águas subterrâneas proveniente dos lixões, de aterros sanitários e de outras fontes não pontuais (escoamento superficial e infiltração em zonas agrícolas) parece duplicar a cada quinze anos na América Latina. O esgotamento de aquíferos e a penetração de água salgada também são fontes importantes de contaminação de águas subterrâneas.
Outro fator considerável de contaminação é a mineração artesanal, principalmente a de ouro, que gera emissões relevantes de mercúrio. Praticamente todos os países da América Latina têm esse tipo de atividade que, estima-se, envolve cerca de um milhão de trabalhadores para a produção de aproximadamente 200 toneladas de minerais por ano. Desde fins dos anos 1980, vêm caindo os níveis de contaminação por mercúrio nos rios graças à diminuição dessas atividades, provocada tanto pelo esgotamento dos veios superficiais como pela pressão contra a contaminação. Na Amazônia brasileira, sobretudo no Pará, Maranhão e Mato Grosso, o desemprego dos trabalhadores dos garimpos passou a alimentar a indústria da exploração madeireira e a expansão do desmatamento para a formação de pastagem nos grandes latifúndios pecuaristas.
Plantas industriais de grandes corporações vêm sendo transferidas para a América Latina (Brasil, Venezuela, Suriname) desde os anos 1970, principalmente aquelas que possuem grande demanda por água, seja para os processos de produção diretos, seja para a obtenção de energia ou como área para lançar seus rejeitos, como são os casos da indústria do alumínio e de papel e celulose. Mesmo considerando que essas empresas, ao contrário do que ocorre na mineração artesanal, têm condições de tratamento dos rejeitos, as regiões e populações das áreas próximas estão submetidas aos riscos de morte, eufemisticamente chamados de riscos ambientais. Várias empresas fazem essas transferências de plantas considerando os prêmios menores a serem pagos como indenização aos que vivem nos países periféricos em caso de acidente. Há, assim, uma perversa divisão geográfica dos proveitos, para os países centrais, e dos rejeitos, para os países periféricos.
Nova geopolítica da água
Para a América Latina, cabe analisar dois megaprojetos que tendem a ser objeto de grandes disputas pelo controle da água na região nos próximos anos: o Plan Puebla Panamá (PPP) e a Iniciativa de Integração de Infraestrutura Regional Sul-americana (IIRSA). O primeiro é um conjunto de grandes projetos de investimento em infraestrutura (transporte, comunicação, energia, turismo e outras obras) abrangendo de Puebla, no México, ao Panamá, passando por Belize, Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua e Costa Rica. Por meio de ferrovias, rodovias, portos, comunicações e uma rede elétrica que permite interligar e explorar o potencial hidrelétrico de toda a região, o PPP visa, fundamentalmente, facilitar o acesso aos bens naturais da região, criar facilidades para escoamento dos produtos do México e dos Estados Unidos e, sobretudo, controlar o movimento indígena-camponês da região e as migrações que se fazem em direção aos EUA – pela tensa fronteira entre os dois países – por meio do estabelecimento de indústrias maquiladoras na região.
Esse projeto veio à luz depois de 1994, ano da assinatura do NAFTA, quando o movimento zapatista conseguiu ganhar visibilidade expondo a condição de submissão com que se debatiam os indígenas desde 1492. Não há dúvida de que um dos principais objetivos desse megaprojeto é o controle dessa região, para o que é estratégico o controle de suas águas. O Estado de Chiapas, onde é forte o movimento indígena-camponês, contém 40% de toda água doce do México. Empresas transnacionais interessadas nessa água têm se instalado na região, principalmente cervejarias (a Ambev – Companhia de bebidas das Américas – tem fábricas na Guatemala e na República Dominicana).
A IIRSA, por sua vez, envolve dezoito corredores de desenvolvimento (ver mapa). Do ponto de vista do controle da água, o projeto está centrado na bacia do Prata – rios Paraná, Uruguai, Paraguai e Guaporé, conformando um corredor de hidrovias que vai de norte a sul – e na bacia Amazonas-Orenoco, configurando um corredor de leste a oeste, que liga Macapá e Belém, no Atlântico, com Saramerisa/Yurimaguas, no Peru, e Puerto El Carmen, no Equador, todos com conexões terrestres ao Atlântico e ao Pacífico.
Na verdade, esse megaprojeto de ordenamento territorial visa conectar o maior complexo industrial e agrícola da América do Sul com os grandes mercados mundiais. Em face das novas contradições impostas pelo processo de globalização/regionalização via ALCA , NAFTA, Plano Colômbia, tratados de livre-comércio e programas de parceria público-privadas, a IIRSA tende a se apresentar como alternativa de fortalecimento para os grandes empresários dos países sul-americanos. Trata-se, talvez, do mais ambicioso projeto de integração, que pode gerar graves conflitos com populações indígenas e camponesas e que não necessariamente se coloca contrário à integração com projetos imperialistas, como já se pode ver no complexo agrário-industrial-financeiro do agronegócio.
A escala geográfica envolvida nesse megaprojeto indica que as grandes empresas tendem a ser as mais beneficiadas, com o acesso a amplas extensões de terra onde é abundante a diversidade cultural e biológica – como no Gran Chaco, no Pantanal, nas savanas/cerrados do Planalto Central brasileiro e outras regiões. Além disso, as duas principais bacias hidrográficas envolvidas têm afluentes importantes correndo sobre a maior reserva mundial de água doce – o Aquífero Guarani.
O líder seringueiro Chico Mendes já alertara para os riscos da construção de vias de integração da Amazônia brasileira ao Pacífico, caso não se contemplassem previamente as reivindicações territoriais com a participação protagonista das populações envolvidas. Sabendo da colonialidade que ainda predomina no imaginário cultural e político hegemônico na América Latina, não se espera que sejam contemplados esses novos protagonistas na política, a não ser com as lutas que, tudo indica, tornar-se-ão intensas em razão do megaprojeto. Considera-se ainda, como um componente que tende a aguçar os conflitos, a mentalidade desenvolvimentista e predadora que vigora entre as elites e que vê a problemática ambiental como constrangimento, sem vislumbrar a natureza e a cultura dos povos como potencial de produtividade e criatividade.
O Brasil não só detém as maiores empresas da região, como tem uma larga experiência tecnológica, consolidada desde a construção de Brasília e, sobretudo, no período da ditadura militar, quando grandes hidrelétricas e eixos rodoviários foram construídos – com as implicações socioambientais conhecidas –, em particular nos cerrados e na Amazônia. O país dispõe de fundos públicos de investimento, como o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), cujas quantias superam as do Banco Mundial. Pela complexidade tecnológica envolvida em tais megaprojetos, toda a experiência acumulada por essas empresas funciona como que por inércia, sempre em busca de novos megaprojetos, como o da IIRSA. Muitas dessas empresas já vêm operando no Paraguai, na Bolívia, no Equador, na Colômbia e na Venezuela. O caráter autoritário não é acessório a esses megaprojetos, que tendem a se revestir de ideologias messiânicas com as promessas de salvação do sofrimento pelos “milagres do desenvolvimento” e pendores a desqualificar quem os questione. A julgar pelo que ocorre na região – que é a fonte dos principais rios brasileiros, paraguaios e do oriente boliviano (as savanas/cerrados) –, são os grandes e modernos latifúndios (agronegócios) que vêm se beneficiando de um complexo de interesses de grandes grupos norte-americanos e europeus (Monsanto, Cargill, Bunge, Syngenta, entre outros) interessados nessas terras, águas e na fortíssima radiação solar. Portanto, a IIRSA não necessariamente implica antagonismo entre um projeto de integração sul-americano e uma integração subordinada à ordem imposta pelos países centrais.
Outras represas têm sido consideradas com o objetivo de produção energética necessária à exploração mineira. Na Argentina, esse é o caso das represas nos rios Cuervo, Cóndor e Blanco para benefício da canadense Noranda. Na Amazônia brasileira, o mesmo acontece com a represa Belo Monte, no rio Xingu, que se conjuga com Tucuruí e todo o complexo mineral do sul e sudeste do Pará (exploração de ferro, manganês, cobre e ouro). Nesse caso, os beneficiários são as empresas transnacionais, algumas com forte participação de capitais nacionais (Vale do Rio Doce, Votorantim, Alcan e Alcoa). Também no Chile, três represas em Chacabuco têm essa finalidade, e a principal beneficiária é, também, a canadense Noranda.
Considere-se ainda o enorme potencial hidrelétrico da região dos contrafortes andino-amazônicos bolivianos, equatorianos e colombianos, em que as quedas-d’água estão associadas ao clima equatorial. São enormes, portanto, os impactos socioambientais já em curso e eles tendem a aumentar com os megaprojetos. Sua implantação, até pela abrangência geográfica e pela magnitude de capitais necessários, não se fará de uma só vez. O que importa é ter clareza de que as obras em curso fazem parte de um megaprojeto estratégico, no qual os protagonistas têm sido os gestores dos organismos multilaterais e as grandes corporações globais e nacionais e, assim, a compreensão do que ocorre em escala local deve ser devidamente contextualizada e vista em suas imbricações nacionais, continentais e globais. Até aqui, a resistência das comunidades indígenas e camponesas, apesar de intensa, não tem merecido atenção dos meios de comunicação e carece de uma maior articulação continental. O projeto como um todo não vem sendo questionado e, assim, os movimentos de resistência já saem em condições políticas inferiores, na medida em que tendem a se colocar em confronto com cada obra em particular diante de um projeto cuja coerência das partes se dá pelo conjunto.
A luta de resistência
Desde fins dos anos 80, começou a pressão de grupos transnacionais pela privatização dos serviços de água e esgoto no Uruguai (grupo Venezia que, em 1993, foi vendido ao Grupo Suez, quando adotou o nome Águas da Costa). Segundo José Luis Lombardi, do Sindicato de Obras Sanitárias do Estado, a primeira diferença notada foi no preço das tarifas (US$ 104), seis vezes maior no litoral que no resto do país. Com a chegada da empresa espanhola Águas de Bilbao, em 2000, as mobilizações estenderam-se por todo o país, sobretudo quando o governo decidiu facilitar a privatização em várias áreas dos serviços públicos (água, comunicação, correio e outras). A ameaça de que as águas correntes do país e outros corpos de água pudessem ser objeto de venda desencadeou a formação de organizações de bairro, que constituíram a Comissão Nacional de Defesa da Água e da Vida (CNDAV). A CNDAV recolheu 80 mil assinaturas e, com isso, conseguiu convocar, junto à Corte Eleitoral do país, um plebiscito no qual a população se manifestou a favor de que se considerasse a água como um direito humano fundamental e a gestão dos recursos hídricos fosse pública, e não privada. Em 31 de outubro de 2004, a população apoiou com 65% dos votos as demandas vindas da mobilização da sociedade civil.
Na Argentina, a privatização dos serviços de água desenrola-se desde 1993. Em dez anos, na capital, as tarifas de serviços aumentaram 88%, apesar de o marco regulatório estabelecer que os preços domésticos só podiam elevar-se 7%.
Na província de Santa Fé, a privatização começou em 1995, durante o segundo governo federal de Carlos Saúl Menem, e ali foi seguido ao pé da letra o modelo de privatização global dos serviços públicos, tal como impulsionado pelos organismos internacionais. A Suez chegou a se estabelecer em quinze cidades do país, sobretudo onde se encontrava grande parte da infraestrutura produtiva.
Em Buenos Aires, onde a Suez é gestora das concessões, 95% das águas residuais da cidade são vertidas no rio da Prata, provocando danos ambientais, cujos reparos são pagos com recursos públicos.
Em várias localidades, os conflitos vêm se acentuando em virtude da má qualidade dos serviços e do aumento dos preços das tarifas. Em 1997, em Tucumán (Argentina), a população iniciou um movimento de “desobediência civil” contra uma filial da Vivendi, recusando-se a pagar as contas de água por causa da deterioração da qualidade da água e do aumento das tarifas em mais de 100%. A Companhia Geral das Águas tinha obtido o direito de privatizar as concessões dos serviços de água e esgoto da província em 1993, mas o súbito aumento do preço dos serviços de água e esgoto – de 104% em média – provocou o protesto dos consumidores. Os primeiros a se organizar foram os pequenos vilarejos do interior da província, na região de produção de cana-de-açúcar, onde já existe uma longa tradição de luta. No início, sete cidades formaram uma Comissão de Coordenação e criaram a Associação de Defesa dos Consumidores de Tucumán.
O governo da província apresentou um pedido de sanções contra a empresa, após a descoberta de elementos contaminados na água encanada. Diante do boicote de pagamento, a Générale des Eaux ameaçou os consumidores com a suspensão dos serviços e, em seguida, tentou renegociar o contrato para, finalmente, retirar-se, recusando-se a cumprir as obrigações contratuais. Passou a atacar os consumidores de Tucumán no International Center for Settlement of Investment Disputes, organismo do Banco Mundial que se pronunciou favoravelmente à província. A partir daí, uma mudança de governo retirou dos consumidores a sustentação legal do boicote aos pagamentos.
Também na Grande La Paz, na sua área mais pobre (El Alto), foram sérias as consequências de um modelo de gestão privatista, que desconsiderou as práticas de gestão comunais, muitas das quais originárias da cultura aimará. Com a privatização, retirou-se daquelas populações o controle dos seus recursos, com o consequente aumento dos preços, impedindo-se o acesso dos mais pobres à água. Desde que a distribuição da água passou a ser administrada pela empresa francesa Lyonaise des Eaux, por intermédio do Consórcio Águas do Illimani, os preços aumentaram 600% (de 2 bolivianos, a moeda nacional, para 12). O preço pela instalação, que era de 730 bolivianos antes da privatização, passou a 1.100 bolivianos, e a água abundante não é acessível para a população.
Em 2000, em Cochabamba, Bolívia, ocorreu um conflito que ficou conhecido como a Guerra da Água e que ensejou, assim como em Tucumán, na Argentina, novas formas de gestão democrática com ampla participação da população, o Cabildo Abierto .
O caso boliviano ajuda a esclarecer algumas das características dessas mudanças radicais nos marcos regulatórios de serviços públicos, em direção à privatização, nos diferentes países da América Latina, como a rapidez com que são decididas políticas estratégicas e a falta de transparência e debate público – na Bolívia chegou a ser incluída uma cláusula de confidencialidade, que impedia de se tornarem de conhecimento popular as concessões de serviços públicos.
No Brasil, existe o caso do Riachão, afluente do rio Pacuí na bacia do São Francisco, no município de Montes Claros, norte de Minas Gerais. A falta de água se agrava com a implantação de pivôs centrais de irrigação por parte de grandes proprietários. Na região, o conflito se acentua pela expansão de várias monoculturas empresariais de eucaliptos (pinnus alba e pinnus elliotis) para fazer carvão vegetal ou para servir de matéria-prima para a indústria de celulose. Nessa mesma região, o movimento camponês lançou no município de Manga, em 1996, um tipo de manifestação que desde essa época se repete em todo o país – a Romaria das Águas.
No Equador, apesar das inúmeras tentativas de privatizar os serviços de água, o intento não foi logrado – em grande parte pela mobilização popular, sobretudo indígena, que, desde 1998, fez cair três governos, exatamente por suas políticas de caráter neoliberal.
No Chile, ao contrário, as privatizações dos serviços de água foram amplas em todo o país. A prática privativista atingiu vários outros setores, à exceção do cobre que havia sido estatizado por Salvador Allende. Todavia, os conflitos em torno da água se fazem presentes de modo intenso, como o que envolve a ex-estatal de energia Endesa e as comunidades indígenas Mapuche-pehuenche, no Alto Rio Bio-Bio, com a construção da segunda represa e de um sistema que projeta a construção de outras quatro.
As resistências à mercantilização e à privatização da água tornam-se cada vez mais frequentes em todo o mundo. Em vários casos o processo foi interrompido: Cochabamba e La Paz (Bolívia); Montreal, Vancouver e Moncton (Canadá); Nova Orleans (EUA); Costa Rica; África do Sul; várias regiões da Índia e Bélgica; e várias municipalidades da França, que voltaram a ter serviços públicos de água administrados por entes públicos.