A América Latina ingressou, desde o seu surgimento como região, no processo de transformação científica e tecnológica mundial, integrando-se à economia-mundo dirigida pela Europa ocidental. Aqui ocorreram importantes confrontos entre as tecnologias militares e de navegação oceânica, assim como os conhecimentos astronômicos – sistematizados pelos europeus durante os séculos XIV, XV e XVI – e as tecnologias agrícolas e de transporte terrestre desenvolvidas pelas tribos e civilizações pré-colombianas.
Os europeus – sobretudo espanhóis e portugueses – precisavam extrair riquezas das regiões para onde se dirigiam, visando atender aos objetivos de acumulação de capitais, comercial e financeiro, que impulsionavam o empreendimento ultramarino. Para isso, em suas relações com a Índia e outros trechos da Ásia, basearam-se na milenar rota da seda e converteram-na ao comércio ultramarino. Mas o Novo Mundo não proporcionava essa base, não havendo participado do grande comércio terrestre da rota da seda. Isso levou os países que estavam dominando o processo de expansão a organizar um sistema, inicialmente, de exploração mineira e de alguns produtos agrícolas valorizados na Europa. Estabeleceram-se grandes centros de produção que buscavam utilizar a tecnologia mais avançada da época para atender à demanda europeia, convertida no elemento dinâmico da organização da economia regional. Nesse processo, em que se transferiram tecnologias para a América Latina e se aproveitaram tecnologias locais, investiu-se muito pouco na construção de uma capacidade autônoma de pesquisa e de conhecimento, apesar dos esforços necessários para organizar o processo de dominação das populações nativas, que envolviam a compreensão das culturas locais, o desenvolvimento do conhecimento linguístico e das espécies da região, assim como de seus aspectos geográficos e étnicos. Por outro lado, a escravidão, o trabalho forçado e os impactos societários, culturais e demográficos destrutivos da colonização europeia determinaram um baixo grau de qualificação do conjunto das populações latino-americanas.
O dilema: civilização ou barbárie
No século XIX, as populações geradas na colonização se rebelaram em lutas da independência, buscando controlar os recursos locais e adquirir melhor condição no mercado mundial. A partir daí, fez-se um grande esforço para afirmar o pensamento próprio sobre o processo do conhecimento em geral e seu significado nas condições econômicas, sociais, ambientais e ecológicas dos trópicos. O aporte indígena foi em parte tomado em consideração, o africano também, mas a maior parte da classe dominante continuou a ver o desenvolvimento da ciência, do conhecimento e da tecnologia como uma atividade inerente às sociedades europeias e seus meios intelectuais e universitários, cabendo apenas imitá-los e reproduzi-los. Nossa elite não conseguiu fortalecer suficientemente a ideia de uma produção científica autônoma, apesar da chegada de missões europeias significativas – como a liderada pelo naturalista alemão Alexander von Humboldt –, que tiveram uma missão muito grande de mapear e integrar os saberes de vários centros da região, permitindo assim um conhecimento cada vez mais sistemático de suas condições sociais, econômicas e geográficas.
Essa visão dominou a segunda metade do século XIX, por meio da absorção do pensamento positivista por nossas elites. A modernização da sociedade, necessária para atender ao desenvolvimento da divisão internacional do trabalho, era vista a partir do dilema civilização ou barbárie. A ciência, a tecnologia e a civilização eram produzidas e difundidas dos centros do conhecimento mundial, naquele momento principalmente a Europa ocidental; a América Latina deveria se europeizar para aplicá-las contra as raízes autóctones, ligadas ao atraso local. Essa atitude, de certa forma, prolongava a visão colonial, ainda que reservasse aos Estados nacionais a tarefa de construir uma perspectiva própria dentro desse processo.
Tal perspectiva se expressou em iniciativas na saúde pública e no controle das condições agrícolas, geológicas e biológicas de um ambiente que exigiu o enfrentamento de temas de pesquisa originais. Durante o fim do século XIX e começo do século XX, destacaram-se figuras significativas da medicina, como o cubano Carlos Juan Finlay e os brasileiros Oswaldo Cruz e Carlos Chagas; e do estudo da botânica, zoologia e paleontologia, como o equatoriano Clodoveo Carrión Mora. Mas elas não resultaram na organização de centros de pesquisa e inovação com uma visão global do processo científico e tecnológico, que eram escassos e geralmente não integravam as atividades de pesquisa e de ensino, circunscrevendo a investigação a um enfoque especializado. A ciência e a tecnologia locais só começaram a ter uma pretensão de elaboração própria e de certa diferenciação e identidade em seu conjunto nos anos 1930, 1940 e 1950, com os esforços de industrialização dirigidos por governos nacionais.
Esses esforços se apoiaram, em parte, nos conhecimentos técnicos e, eventualmente, científicos trazidos pela imigração de italianos, espanhóis e portugueses no final do século XIX e começo do século XX. Contudo, o aspecto decisivo foi a substituição de importações, que, impulsionada pelas guerras mundiais e pelas crises do mercado internacional – entre elas a grande quebra de 1929 –, reorientou a compra de bens de consumo para a de meios de produção e matérias-primas necessários à sua produção local. Desenvolveu-se a indústria nacional, que, sem romper a dependência tecnológica, voltou-se inicialmente ao mercado interno, sobretudo urbano, incorporando, mais tarde, o setor exportador. Entretanto, a substituição de importações apresentou uma importante contradição: se de um lado reorientou e aprofundou a dependência tecnológica, pretendeu, ao mesmo tempo, conquistar a autonomia tecnológica por meio do mercado internacional.
Irrupção do nacional-desenvolvimentismo
O tema de um padrão de desenvolvimento soberano – com importantes antecedentes nas lutas pela independência e na Revolução Mexicana – ganhou enorme projeção a partir dos anos 1930, estimulando, nas três décadas seguintes, a ação estatal e o pensamento dos setores mais avançados da burguesia latino-americana – dos quais Roberto Simonsen, líder industrial brasileiro, foi talvez a maior expressão. O nacional-desenvolvimentismo buscou internalizar, em três grandes etapas (a substituição de importação de bens de consumo leves, duráveis e de bens de capital), as transformações geradas desde a Segunda Guerra Mundial nos países centrais, conhecidas sob a designação de revolução científico-técnica, que superou a Revolução Industrial ao substituir o princípio mecânico pelo automático e estabelecer a ciência – no lugar da maquinaria, das tecnologias e das técnicas –, como a principal força produtiva.
O Estado desempenhou um papel central na construção desse padrão: criou legislações específicas para utilizar as restrições de importação como instrumento de industrialização nacional; interveio no setor exportador, apropriando-se de parte de suas rendas para direcioná-las à importação de maquinarias ou de matérias-primas industrializadas; renegociou a dívida externa e impôs uma substantiva desvalorização de seus montantes; estimulou a formação do mercado comum latino-americano e institucionalizou políticas científicas para apoiar a substituição de importações com o desenvolvimento da capacitação científica e tecnológica nacional. As políticas de ciência e tecnologia foram, entretanto, limitadas pela dependência tecnológica, sendo impulsionadas mais pelos setores nacionalistas da burocracia estatal do que pelo empresariado. As preferências das burguesias nacionais se aprofundariam na direção da importação de tecnologia e da associação às bases financeiras, tecnológicas e comerciais do capital estrangeiro. Isso lhes permitiu alcançar altas taxas de mais-valia extraordinária – cristalizando um setor monopólico que controlou o mercado interno – e disputar a condição de aliada principal do capital estrangeiro na periferia, para atingir certo nível de projeção internacional. Tal orientação se expressou nas leis que permitiram a livre importação de bens de capital, como o regime especial durante o governo de Arturo Frondizi, na Argentina, ou a instrução 113 da SUMOC, no Brasil.
As políticas de ciência e tecnologia começaram a se institucionalizar na região nos anos 1950. Merecem destaque os casos do Brasil, do México e da Argentina, que representaram a grande massa dos investimentos em P&D (Pesquisa e Desenvolvimento) na América Latina: em 1996, ainda concentravam 87% destes e 77% do seu Produto Interno Bruto (PIB). Eles buscaram reproduzir a experiência europeia no pós-guerra – difundida por organismos internacionais, como a Unesco – fundada na criação de ministérios, agências e organismos de ciência e tecnologia que favoreceram, coordenaram e orientaram os esforços nesse campo.
Inicialmente, o nacional-desenvolvimentismo enfatizou o domínio da tecnologia nuclear. Na Argentina, criou-se, em 1950, a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEA); em 1956, o Instituto Nacional de Tecnologia Industrial (INTI); em 1957, o Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária (INTA); e em 1958, o Conselho Nacional de Investigações Científicas e Tecnológicas (Conicet), voltado para promover a pesquisa científica nas universidades. No Brasil, estabeleceram-se, em 1951, o Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), dedicado à promoção da investigação científico-tecnológica e, em particular, aos campos relevantes para a soberania nacional, como a física nuclear, e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), direcionada principalmente à investigação universitária e à capacitação de graduados, em particular, docentes. Nos anos 1960, as iniciativas em ciência e tecnologia se diversificaram e buscaram coordenação. Os anos 1970 aprofundaram sua institucionalização, para viabilizá-la. No Brasil, criaram-se o Sistema Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (SNDCT) e três Planos Básicos de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PBDCT) durante o período entre 1973 e 1985. O SNDCT foi dotado de um fundo próprio, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), gerenciado pela Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), sua secretaria-executiva para habilitar a coordenação das atividades de ciência e tecnologia. Surgiu ainda a Secretaria de Tecnologia Industrial (STI), vinculada ao Ministério da Indústria e Comércio, em 1972. Na Argentina, em 1968, foi criado o Conacyt, com o objetivo de regular o conjunto da rede institucional de ciência e tecnologia, e que deu lugar, em 1973, à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação Produtiva (SECYT).
No México, as iniciativas de institucionalização da política científica foram mais tardias. Só em 1970 foi criado o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (Conacyt). Entretanto, entre os anos 1940 e 1960, a pesquisa científica prosperou no âmbito das universidades, com destaque para a Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), reestruturada em 1929. Entre esse ano e 1981 foram fundados, em seu âmbito, vinte centros de pesquisa em ciências físicas, exatas ou espaciais. Em 1979, ela contava com um orçamento expressivo para padrões latino-americanos – US$ 430 milhões, dos quais 16% eram destinados à investigação científica – e, computadas apenas as “ciências duras”, empregava quase 3 mil pesquisadores, dos quais 40% em tempo integral.
Apesar de apresentar uma certa expansão, as políticas de ciência e tecnologia latino-americanas, limitadas pelos condicionamentos socioeconômicos da região, não conseguiram desenvolver uma complexidade institucional similar à de suas congêneres europeias, nem a capacidade de impactar significativamente o sistema produtivo que permitiu à Europa ocidental aproximar-se dos níveis de produtividade dos Estados Unidos nos anos 1970.
Crise do desenvolvimento dependente
Em meados dos anos 1950, a ênfase na importação de tecnologia e em sua vinculação ao mercado interno entrou em contradição com as limitações das exportações – de baixo valor agregado e fraca densidade tecnológica. Para solucionar o problema, procurou-se combinar a substituição de importações com a internacionalização dos processos produtivos, que passaram a comandar a dinâmica do crescimento, limitando a capacidade de coordenação do Estado. As importações de máquinas cederam lugar à importação de capitais. As maquinarias foram introduzidas diretamente sob o controle das multinacionais, que se desenvolveram no período aceitando a ideia de transladar equipamentos já obsoletos para as regiões e os mercados que antes acessavam por meio de exportações. Nesse procedimento ocorreu uma importante transformação: as maquinarias se converteram em capital e não em mercadorias a serem vendidas às empresas locais. Incorporou-se às maquinarias não só a tecnologia a elas vinculada, mas também a exploração capitalista e a possibilidade de gerar lucros e grandes massas de mais-valia, depois enviadas aos países centrais para remunerar proprietários não residentes, investir em mercados mais competitivos e importantes ou gerar novas fronteiras tecnológicas de produtos e processos.
Essa mudança implicou significativas alterações nas sociedades latino-americanas. Depois da euforia associada ao forte crescimento econômico entre 1956 e 1961, estabeleceu-se entre 1962 e 1967 um período de saída de capitais que implicou retração salarial e retrocesso do poder popular, que se afirmava desde os anos 1930. A afirmação do internacionalismo dependente redefiniu o nacionalismo, debilitando-o. O nacionalismo se isolou cada vez mais na burocracia estatal e assumiu uma forte expressão subimperialista ao buscar combinar o capitalismo de Estado à hegemonia e à liderança hemisférica dos Estados Unidos para viabilizar os desejos de afirmação nacional e regional. No Brasil e na Argentina, essa combinação se fez por meio de ditaduras militares que aprofundaram as dimensões sociais regressivas do capitalismo dependente.
Políticas diferentes
No Brasil, os militares apostaram no aprofundamento da substituição de importações para atender a suas aspirações de potência nacional. Para isso impulsionaram as políticas de ciência e tecnologia, baseando-se na estrutura institucional criada nos anos 1950 e 1960 para expandi-las, acentuando e reformulando prioridades. Deram continuidade às tentativas de domínio da tecnologia nuclear para fins pacíficos e militares; à busca de autossuficiência energética em petróleo; à elaboração de combustíveis alternativos, em especial o álcool da cana-de-açúcar, em aliança com os usineiros; à melhoria das condições de cultivo e plantações agrícolas, e perseguiram o domínio das tecnologias de informática. Transferiram, ainda, tecnologia de pesquisa básica e aplicada ao setor produtivo, por meio de centros de pesquisa governamentais ou de empresas estatais com centros de P&D próprios (Petrobras , Telebrás, Companhia Vale do Rio Doce e Eletrobrás).
Entre as principais iniciativas no plano tecnológico podem ser mencionadas: a tentativa de organizar um sistema nacional de ciência e tecnologia via SNDCT; as políticas de informática que estabeleceram em 1976, 1979 e 1984 – respectivamente, as reservas de mercado para mini e microcomputadores e softwares; a criação da COBRA, em 1974, primeira empresa brasileira de fabricação de computadores; a criação da Embraer, em 1969, que recebeu tecnologia transferida do Centro Tecnológico da Aeronáutica (CTA) para produzir, em escala comercial, aviões de médio e pequeno porte; a criação da Indústria de Materiais Bélicos do Brasil (IMBEL), em 1977, que transferiu tecnologia de produção, principalmente, de blindados leves, para a Engesa, após a ruptura unilateral do Acordo de Assistência Militar Brasil e Estados Unidos; a criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em 1973, para transferir tecnologias ao agronegócio e o estabelecimento do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), em 1975, programa que, com tecnologia transferida às montadoras pelo CTA, elaborou o motor a álcool para veículos automobilísticos.
No ensino superior, a ditadura brasileira destituiu das universidades os intelectuais mais vinculados a um projeto nacional-popular ou socialista e concentrou a pesquisa na pós-graduação, reorientando a prioridade da integração científica internacional da Europa para os Estados Unidos. Para isso expandiu o número de cursos de pós-graduação – de 125 para 974, entre 1969 e 1979 –, sendo auxiliada, nessa reorientação, pela política da Fundação Ford de criar uma comunidade acadêmica “emergente” no país.
Na Argentina, o regime militar foi muito mais destrutivo para a ciência e tecnologia, colocando-se frontalmente contra a experiência dos governos de Juan Domingo Perón e Isabelita, que apresentaram um enfoque nacionalista de desenvolvimento, orientando a política científica e tecnológica para o controle de um capitalismo de Estado. Elaboraram-se planos nacionais para a eletrônica e a petroquímica, protegeu-se e financiou-se a produção local de bens de capital, enfatizou-se a transferência de tecnologia e penalizou-se a remessa de lucros, criando uma importante base de apoio social que associava intelectuais, estudantes, pequenos e médios empresários e sindicatos. O desmonte desse projeto exigiu uma profunda intervenção nas universidades, com o êxodo de aproximadamente 30 mil cientistas e técnicos e a redução em 27% do número de estudantes universitários entre 1975 e 1979. A tentativa de absorver a pesquisa universitária em institutos especializados do Conicet desmontou as redes de investigação. A adoção do neoliberalismo como tentativa de superar a inserção marginal da Argentina nos projetos de desenvolvimento dos países hegemônicos revelou-se um fracasso, afetando negativamente sua indústria sem atrair o investimento estrangeiro direto. O resultado foi desastroso para a ciência e a tecnologia: o único empreendimento tecnológico de maior vulto dos governos militares – o projeto Condor II, referente à construção de um míssil –, não foi concluído.
A redemocratização recompôs aos poucos o orçamento das universidades e sua capacidade de pesquisa, mas a crise da dívida externa afetou toda a região, em particular, os Estados que estatizaram as dívidas do empresariado, restringindo o alcance das políticas do setor nos anos 1980.
Balanços
Os resultados alcançados pelas políticas científico-tecnológicas latino-americanas, entre 1950 e 1980, foram bastante limitados em relação à meta inicial de fundamentar a soberania em ciência e tecnologia. A geração de ciência – apoio fundamental para a consecução da última etapa da substituição de importações, associada à produção de bens de capital – requer uma ampla redefinição das relações sociais internas e internacionais dos países da região, de modo a constituir uma fonte importante de produção de tecnologias. Tais políticas concentraram-se na iniciativa estatal, que se responsabilizou pela quase totalidade dos dispêndios nacionais em P&D, e não conseguiu atingir seus objetivos.
Manejando recursos limitados, desarticulados da indústria e voltados à pesquisa básica, à pós-graduação das universidades e aos centros de pesquisa – em detrimento da pesquisa aplicada e do desenvolvimento –, encontram ainda barreiras decisivas na superexploração do trabalho que as desconectou dos diversos níveis de ensino, limitando a difusão do conhecimento e a expansão do número de cientistas. Sem o apoio substantivo da burguesia e conservando uma força de trabalho de baixa qualificação média, o projeto de ciência e tecnologia desenvolvimentista se isolou em camadas restritas da burocracia estatal e perdeu força à medida que se evidenciaram as limitações da substituição de importações e do desenvolvimento dependente. Esse isolamento se aprofundou com as restrições e ameaças de sanção pelos Estados Unidos e países centrais diante da pretensão de domínio de tecnologias estratégicas, como a nuclear.
As evidências do subdesenvolvimento e da dependência científica não foram alteradas pelo desenvolvimento científico-tecnológico desse período. Se nos Estados Unidos os gastos em P&D alcançaram entre 2% e 3% do PIB, nos anos 1950 e 1960, na América Latina eles tiveram níveis muito mais baixos. No Brasil, caso de maior intensidade de P&D da região – excetuando-se Cuba – esses gastos oscilaram entre 0,2% e 0,8% do PIB nos anos 1970 e 1980. Por outro lado, as disparidades internacionais evidenciaram-se também na taxas de matrícula nos níveis secundário e terciário: entre 1965 e 1985, a população em idade escolar matriculada no ensino médio passou de 16% para 35% no Brasil e de 17% para 55% no México, enquanto na Coreia do Sul saltou de 35% para 92% e, no Japão, de 82% para 96%. Já no ensino terciário, em 1985, essa população alcançou 11% no Brasil, 15% no México, 30% no Japão e 32% na Coreia do Sul.
Um balanço dos principais resultados dessa política permite indicar:
• A montagem de sistemas de pós-graduação, sobretudo no Brasil e no México, que contribuem para elevar os níveis do desenvolvimento científico e tecnológico local e são capazes de apresentar certa iniciativa própria. Esses níveis se manifestam na melhoria da região no que se refere aos indicadores bibliométricos internacionais e no crescimento limitado, mas contínuo, de cientistas e engenheiros. Entretanto, a expansão se orienta demasiadamente, especialmente no caso brasileiro, para os Estados Unidos, o que condiciona a formação dos pesquisadores, em detrimento da cooperação científica regional com o Sul e com centros europeus, além de estar muito desvinculada de outros níveis de ensino.
• O baixo grau de vinculação entre as universidades e os centros de pesquisa, de um lado, e o setor produtivo, de outro. Isso se manifesta pelo descompasso entre a melhoria dos indicadores bibliométricos de produção científica e a evolução medíocre dos dados referentes à solicitação e ao registro de patentes. As iniciativas tecnológicas alcançadas nesse período foram relativamente limitadas e não tiveram continuidade – como aconteceu nos casos de domínio da informática ou da tecnologia nuclear –, ainda que ocorressem avanços significativos na prospecção de petróleo, na pesquisa agrícola e, em certa medida, mas com expressivas instabilidades, na utilização do álcool como combustível.
• A escassez dos recursos aplicados em ciência e tecnologia. A limitação tem como grande responsável o desinteresse das burguesias locais em realizar atividades de P&D, ainda que a dependência financeira restrinja o setor governamental. Essa atividade, no setor privado, é institucionalizada em um pequeno número de empresas que, em geral, dirigem-na para a adaptação tecnológica e engenharia de rotina.
• A conservação da superexploração do trabalho como um enorme obstáculo ao desenvolvimento científico-tecnológico, o que restringe a elevação da qualificação média da força de trabalho e as possibilidades da região em internalizar as novas tecnologias organizacionais – associadas ao toyotismo – que, desde os anos 1960 e 1970, aproximam o “chão da fábrica” dos centros de P&D, democratizando a gestão de modo a se apropriar da subjetividade do trabalhador e fomentar um instrumento decisivo de inovação tecnológica.
• O alto nível de concentração regional dos investimentos em P&D e em atividades de ciência e tecnologia, limitando as possibilidades e o impacto nacional da cooperação interinstitucional. Em 1990, a capital do México detinha 51% dos docentes de pós-graduação do país e 48% dos membros do Sistema Nacional de Investigação. No Brasil, o Sudeste concentra as dotações científico-tecnológicas, e, na Argentina, elas se concentram na região de Buenos Aires.
No quadro latino-americano, Cuba desponta como outro paradigma de ciência e tecnologia. Ilha com pouco mais de 11 milhões de habitantes e que, apesar do embargo econômico que sofre dos Estados Unidos, mantém intensidade de investimento em P&D – índice que mede sua relação com o PIB – similar à brasileira. Mas a combinação dessa intensidade com um padrão mais elevado de educação popular – meta do governo socialista – permite maior produtividade e um nível de alcance relativamente superior ao trabalho científico. Isso lhe possibilita liderar vários dos ramos de pesquisas biotecnológicas da região, ainda que parta de um contingente de pesquisadores e de uma base demográfica muito mais limitada.
Estagnação
Se as décadas de 1950 a 1970 foram de institucionalização e avanço das políticas de ciência e tecnologia, as de 1980 e 1990 assistiram, respectivamente, à relativa estagnação e à reformulação dessas políticas.
Nos anos 1980, a crise econômica mundial (1967-1970) castigou a América Latina. A elevação das taxas de juros internacionais por iniciativa dos Estados Unidos, em 1979, e aprofundada pelos governos republicanos na década seguinte, desdobrou-se em um período de predomínio dos egressos de capitais, o que expôs a região a expressivos déficits no balanço de pagamentos. A estatização da dívida externa e o endividamento público interno – que permitiram ao Estado remeter para o exterior os dólares obtidos com os saldos comerciais a partir do ajuste estrutural que orientou a política macroeconômica da região – desarticulou a capacidade de investimento e as possibilidades de levar a cabo as políticas industriais e científico-tecnológicas.
Os gastos em P&D nos anos 1980 apresentaram avanços limitados e perderam o dinamismo, ao mesmo tempo em que se esvaziaram os instrumentos de coordenação das políticas de ciência e tecnologia. No Brasil, a crise de planejamento se revelou nas limitações do III PBDCT, referente ao período 1980-1985, que, diferentemente dos anteriores, não incluiu programas, projetos e atividades para a realização de suas metas. Embora se tenha criado o Ministério de Ciência e Tecnologia em 1985, esvaziaram-se os recursos do FNDCT/FINEP que permitiriam a integração e coordenação de suas ações. Por outro lado, os dispêndios nacionais em ciência e tecnologia, que iniciaram a década correspondendo a 0,7% do PIB – índice três vezes superior ao de 1973 –, alcançaram 0,8% em 1988 e retornaram a 0,7% em 1990. As principais conquistas tecnológicas brasileiras no período ocorreram na prospecção de petróleo em águas profundas e ultraprofundas, no setor de informática e na telefonia.
A Argentina e o México, nos anos 1980, não apresentaram inovações relevantes em ciência e tecnologia, revelando a obsolescência de suas políticas. Os níveis de intensidade de P&D permaneceram inferiores aos do Brasil. A redemocratização na Argentina buscou recompor os orçamentos das universidades, mas seus resultados foram bastante tímidos. Em 1988, elas recebiam 8% do orçamento público para P&D, e o Conicet, 36%.
O grande elemento de criatividade institucional no período foi a Política Nacional de Informática (PNI) brasileira de 1984. Ela transformou em lei e sistematizou um conjunto de ações governamentais para promover a geração de tecnologias capazes de desenvolver um setor de bens e serviços informáticos no país, baseados na empresa nacional. Instituiu-se o controle das importações por oito anos, estabeleceram-se ações de fomento, de preservação da competitividade e de limitação do monopólio, e se condicionou a atuação das empresas estrangeiras. Estas podiam participar do mercado interno, mas o uso da tecnologia estrangeira era limitado aos casos de ausência de similar nacional, de contribuição ao desenvolvimento científico e tecnológico do país e de apresentação, pela empresa, de planos de exportação. Junto à PNI se desenvolveu a Política Nacional de Telecomunicações (PNT), cuja grande realização foi o desenvolvimento da tecnologia de central telefônica nacional, a Trópico.
Novos paradigmas
Embora tenham gerado resultados de certa expressão, a PNI e a PNT encontraram limites na ausência de uma macroeconomia do desenvolvimento. A adesão do governo brasileiro ao Fundo Monetário Internacional (FMI), apesar das tensões limitadas e pontuais, e o condicionamento das políticas públicas às altas taxas de juros internacionais e internas restringiram suas perspectivas. Nos anos 1990, a ofensiva dos Estados Unidos sobre a região reformulou os paradigmas das políticas científico-tecnológicas ao submetê-las ao neoliberalismo movido pelo Consenso de Washington. O desenvolvimento de tecnologias próprias foi trocado pela subordinação à abertura comercial e financeira e, em larga medida, às ações do poder norte-americano em campos como legislação internacional de patentes (Acordos TRIPS, da sigla em inglês para Acordos sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio) estabelecida na Organização Mundial do Comércio (OMC) e tratados de não proliferação de armas de destruição em massa. As metas das principais economias da região foram redefinidas, o objetivo de alcançar o desenvolvimento industrial e de seus setores estratégicos (bens de capital e complexo eletrônico) foi trocado pela busca da competitividade e do restabelecimento da doutrina das vantagens comparativas.
A indústria foi penalizada pela combinação de assimetrias do mercado internacional – com sobrevalorização cambial e elevação das taxas de juros –, que marcaram a primeira fase de implementação do Consenso de Washington. Mas o restabelecimento das doutrinas das vantagens comparativas, em uma etapa do capitalismo na qual a divisão internacional do trabalho estava determinada pela revolução científico-técnica, implicou forte ataque ao desenvolvimento científico da região. De um lado, estavam os países que produziam ciência básica e conhecimento geral e os articulavam ao desenvolvimento de produtos de ponta orientados ao mercado mundial – o que lhes permitia monopolizar a direção da economia mundial, as soluções para os problemas planetários e auferir os rendimentos do circuito da crescente conversão da ciência em inovações de alto valor agregado. Do outro lado, aqueles que compravam parte dessas tecnologias e as utilizavam em atividades produtivas específicas – os chamados nichos tecnológicos –, limitando o alcance de seu desenvolvimento científico a um enfoque setorial, complementar e adaptativo. O ataque à ciência básica da América Latina colocou em questão a identidade científica e a originalidade cultural da região, ameaçadas pela crescente mercantilização da subjetividade. Sob orientação do Banco Mundial (BIRD), o gasto público nas universidades e na educação superior foi visto como excessivo e reorientado em favor da educação fundamental.
As políticas de ciência e tecnologia buscaram então ajustar o aparato tecnológico da região à inserção produtiva, financeira e comercial determinada pelo mercado mundial. Ao instituírem a produtividade e a competitividade como metas, priorizaram a empresa privada, o investimento estrangeiro e a importação de tecnologia como motores do desenvolvimento. O Estado deveria ceder sua centralidade na promoção das tecnologias e reorientar seus gastos para o setor produtivo, restringindo a pesquisa básica em favor de demandas tecnológicas mais específicas e limitadas.
Encontram-se entre as principais iniciativas dessas políticas, a partir dos anos 1990: a derrogação da reserva de mercado para a informática brasileira com a reforma da PNI, em 1992; a privatização de estatais que possuíam importantes centros de P&D; a reformulação das leis sobre patentes e propriedade intelectual, a partir dos tratados de livre-comércio dos Estados Unidos com diversos países da região, e a assinatura do TRIPS – que garante o monopólio estrangeiro de inovações e invenções – ou do TRIPS-plus, que permite a monopolização estrangeira da biodiversidade regional; a ratificação dos tratados de não proliferação de armas nucleares; as restrições orçamentárias à pesquisa básica; e o estímulo a uma atuação maior das empresas, por meio de incentivos fiscais, disponibilização de fundos setoriais e, principalmente, pressão da economia mundial mediante políticas de abertura e de competição.
A nova PNI brasileira, de 1992, priorizou a competitividade em detrimento da tecnologia nacional. A seguir, no governo de Fernando Henrique Cardoso, o país ratificou o TRIPS e o Regime de Controle de Tecnologias de Mísseis (MCTR), em 1995, e o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), em 1997. A Argentina ingressou no MCTR, em 1993, e aderiu ao TNP em 1995, bem como o Chile, e reformulou sua lei de patentes em 1996, lei que foi considerada pelos Estados Unidos ainda insuficiente para atender a seus interesses. O México criou, junto com os Estados Unidos e o Canadá, o NAFTA (Tratado de Livre-Comércio da América do Norte), que entrou em vigor em 1994 e resultou na reestruturação de sua lei de patentes. O país aderiu ao TRIPS em 2000. A nova Lei de Ciência e Tecnologia, aprovada em 2002, priorizou o aumento da participação do setor produtivo mexicano na P&D. Isso se faria pela reorientação dos gastos estatais e pelo aumento dos empresariais, estimulados por isenção fiscal e dotação de fundos públicos voltados à inovação tecnológica.
Ciência, tecnologia e neoliberalismo
Um balanço dos efeitos do neoliberalismo sobre a ciência e a tecnologia permite destacar seus profundos limites para o desenvolvimento de sistemas nacionais ou regionais de inovação, pois:
• Ampliou-se a dependência tecnológica da região, em função da opção pela importação de tecnologias, investimento direto e adoção de novas normas sobre patentes.
• A ênfase na produtividade e na competitividade reduziu relativamente a participação no PIB dos setores produtivos de maior valor agregado.
• Os gastos em P&D se mantêm em níveis insuficientes, limitados pela baixa demanda da empresa privada e do investimento estrangeiro em geração de invenções e inovações.
• A oposição entre pesquisa básica, aplicada e desenvolvimento é falsa e sua desconexão, ao permanecer, reproduz os baixos níveis de gastos em P&D, reorientados pelo empresariado privado para segmentos de menor intensidade tecnológica.
Vejamos com mais detalhes essas afirmações.
Para avaliar as tendências tecnológicas de um país, pode-se tomar em consideração as patentes. Apesar de insuficientes para medir o grau de dependência, sua evolução permite detectar as tendências de uma economia nacional em direção à soberania ou seu inverso. Os resultados disponíveis são amplamente desfavoráveis aos países latino-americanos. No Brasil, em 1990, 12.744 patentes haviam sido requisitadas, sendo 52% por residentes, enquanto no ano 2000, das 23.877 solicitadas, apenas 35% o foram por residentes. No México, em 1990, das 1.619 patentes outorgadas, apenas 8% foram concedidas a residentes. Esse índice caiu ainda mais em 2003, alcançando 2% das 6.008 patentes outorgadas – uma redução de 132 para 121 patentes concedidas a mexicanos no período. Na Argentina, em 1990, foram outorgadas 759 patentes, das quais 32% para argentinos. Em 2000, esse índice caiu para 9,1% das 1.587 patentes concedidas – reduzindo de 249 para 156, entre 1990 e 2000, o número das patentes obtidas por residentes. No Chile, de 1990 a 2000, o índice de patentes concedidas a chilenos caiu de 16% para 6%, e o seu número de 101 para 37. No Peru, no mesmo período, o índice de patentes concedidas a residentes caiu de 8% para 2,9%, e o número de patentes a peruanos se reduziu de 14 para 9. Colômbia e Venezuela apresentaram tendências semelhantes: queda no número de patentes destinadas a residentes e eventualmente queda no seu número absoluto. Já no caso cubano, entre 1990 e 2001, o número de patentes outorgadas se elevou de 59 para 116. O índice de patentes a cubanos caiu de 84% para 59%, mas permaneceu elevado, registrando o interesse crescente de estrangeiros na economia de Cuba e a capacidade desta de combiná-lo com a preservação de sua soberania.
Esses resultados negativos contrastam com a melhora discreta de indicadores de publicação em revistas de referência internacional, evidenciando que a tentativa das políticas científico-tecnológicas dos anos 1990 em priorizar a inovação tecnológica não tem atingido os resultados esperados, preservando a segmentação entre pesquisa básica, de um lado, e pesquisa aplicada e desenvolvimento, de outro. O Brasil aumentou sua participação em artigos publicados no Science Citation Index (SCI) de 0,5% para 1,5%, entre 1990 e 2003; o México, de 0,2% para 0,6%; e a Argentina, de 0,3% para 0,5%. Para o conjunto da região, no período 1981-2000, a participação em artigos nos SCI se elevou de 1,3% para 3,1%. Em parte, esse aumento se explica pelo avanço do colonialismo cultural e científico, que facilitou o acesso às revistas de referência internacional que compõe o index, fortemente controlado pelos Estados Unidos.
A trajetória dos segmentos produtivos, nos anos 1990, evidenciou retração no desenvolvimento dos setores de maior complexidade, com impactos negativos para a expansão dos gastos em P&D. Essa retração se manifestou na forte queda da indústria em relação ao PIB. Entre 1980 e 2000, sua parcela relativa caiu no Brasil de 33,6% para 19,8%; na Argentina, de 27,9% para 16,7%; no México, de 22,7% para 21,1%; e, no Chile, entre 1990 e 2000, de 18,9% para 12,7%. Observando-se a parcela do segmento metal-mecânico, de alta complexidade dentro da indústria, verifica-se também a tendência à redução: no Brasil, de 24,7% para 21,3% entre 1980 e 1990; na Argentina, de 25,7% para 17,6% entre 1980 e 1996; e, no Chile, de 18,9% para 12,7% no mesmo período. Já o México aumentou sua participação na indústria metal-mecânica de 24,7% para 28% entre 1980 e 1997, em razão da forte atividade das maquiladoras, que são parte do comércio intrafirma das transnacionais e de sua busca por custos mais baixos de mão de obra e transporte. As maquillas importam grande parte de seus componentes produtivos e os reexportam, agregando baixíssimo valor à produção.
A informática brasileira sofreu os efeitos negativos da liberalização. A comercialização de produtos cresceu 33% ao ano entre 1981 e 1989, no período da reserva de informática. O crescimento anual caiu para 8,5% entre 1990 e 1998, sendo que a reserva de mercado foi abolida em 1992. O aumento da comercialização nesse período se explica pelo drástico crescimento das importações e não pela expansão da produção nacional, que, na verdade, teve crescimento anual negativo (-1%) entre 1989, ano de pico de produção da reserva de mercado, e 1998. Para o segmento de hardware, as importações – que representavam 29% dos produtos comercializados –, caíram para 7,8% em 1989 e se elevaram para 27% em 1998, contribuindo para o saldo negativo dos produtos de alta tecnologia na balança comercial. O complexo eletrônico, que reúne os produtos da informática, das telecomunicações e da eletrônica de consumo e componentes, ampliou o seu déficit comercial em 23% ao ano, entre 1992 e 2000, com um salto em valores absolutos de US$ 1,1 bilhão a US$ 6,3 bilhões.
Efeitos contraditórios
O impacto do neoliberalismo nos segmentos de maior complexidade da região produz um efeito contraditório sobre a ciência e tecnologia, pois a destruição que promove dos setores de maior valor agregado dos complexos produtivos latino-americanos empurra os gastos de P&D para baixo e compensa, em grande parte a pressão oriunda do mercado internacional para aumentá-los. O modesto crescimento dos investimentos em P&D na América Latina, desde os anos 1990, orientou-se para segmentos com menores perspectivas internacionais de acumulação de riquezas. No Brasil, esses dispêndios se elevaram discretamente dos 0,8% alcançados em 1988 até um pico de 1% em 2001. A participação do governo no financiamento caiu drasticamente – de 71% para 31,5% entre 1990 e 2002 –, afetando as universidades, que executavam cerca de 80% desses gastos. As empresas, por sua vez, elevaram sua participação de 23,9% para 39,5% no período. Entretanto, os gastos empresariais tenderam a se deslocar para segmentos de baixa complexidade.
Em 2000, a composição setorial relativa da indústria de transformação brasileira evidenciava sua obsolescência e especialização em segmentos de baixo valor agregado em comparação aos países da OCDE, de esforço tecnológico elevado. A participação do segmento de têxteis, confecções, calçados e couro equivalia em 262% à dos países da Organização para a Cooperação Econômica e o Desenvolvimento (OCDE); a de produtos alimentícios, bebidas e fumo, em 171%; a de produtos químicos, (excluídos os farmacêuticos), em 144%; e a de metalurgia básica, em 127%. Já os segmentos de maior complexidade, como o de produtos farmacêuticos, correspondiam a 78,6%; veículos automotores, a 68%; outros equipamentos de transporte, a 55%; máquinas e equipamentos, a 52%; e material eletrônico e de comunicações, a 42%.
No México, os dispêndios em P&D se elevaram, mas se mantiveram em um patamar muito baixo. Passaram de 0,2% para 0,4% entre 1992 e 2000. A execução da P&D nas universidades, em relação ao total, caiu de 53,8% para 26,8%, enquanto nas empresas ascendeu de 10% para 30% entre 1993 e 2002. Na Argentina, os gastos em P&D permanecem em torno de 0,4% desde os anos 1990, preservando-se também sua distribuição, em termos de financiamento e execução, entre governo, empresas e universidades. No Chile, a P&D oscila em torno de 0,5% do PIB, aumentando-se sua execução em empresas, desde o insignificante patamar de 2,5% a 37,8%, entre 1990 e 2003. Em Cuba, a P&D é de aproximadamente 0,6% desde os anos 1990, mas o que marca sua diferença em relação a outros países da região é a articulação com o setor produtivo. A pesquisa básica corresponde a aproximadamente 10% do total dos dispêndios, enquanto a pesquisa aplicada e o desenvolvimento experimental dividem com certo equilíbrio os gastos restantes. Tal quadro a diferencia muito de países como México e Argentina, nos quais a pesquisa básica correspondeu a cerca de 20 a 30% dos dispêndios, a partir dos anos 1990, ou Chile, em que alcançou 50% destes.
Os gastos em P&D são limitados também pela estrutura da propriedade empresarial. Estão fortemente concentrados nas matrizes das empresas transnacionais, tornando os países cujo dinamismo econômico é ativado pelo investimento estrangeiro fortemente restringidos em sua capacidade de desenvolver um sistema nacional de inovação importante. Uma análise comparativa, de 2000, da relação entre esforço de P&D e estrutura da propriedade, reunindo Brasil e países de menor esforço de P&D da OCDE, permite visualizar essa realidade na região. O Brasil tem níveis globais de P&D equivalentes a 91% dos desses países, mas se verifica uma alta correlação entre os segmentos nos quais há maior controle do capital estrangeiro e a limitação do esforço tecnológico, o que se manifesta em gastos inferiores à proporcionalidade média brasileira. O nível de controle estrangeiro e o esforço tecnológico relativo são, respectivamente, os seguintes: em veículos automotores, 83% e 63%; em material eletrônico e telecomunicações, 59% e 22,9%; em produtos químicos, 48% e 53%; em informática, 45% e 64%; em produtos alimentícios, bebidas e fumo, 24% e 168,8%; em papel e celulose, 21% e 188%; em metalurgia básica, 15% e 98%; em produtos de madeira, 9% e 260%; em têxteis, confecções, couro e calçados, 9% e 80%.
A limitação do esforço tecnológico atua diretamente sobre a competitividade setorial, provocando déficits comerciais expressivos. Os segmentos nos quais é maior o controle do capital estrangeiro são os de menor intensidade exportadora. Em 2000, o Brasil respondia por 1,02% das exportações mundiais. Mas em informática a participação era de 0,15%; em material eletrônico, 0,4%; e, em veículos automotores, 0,87%. Já onde havia forte controle nacional da propriedade o resultado superou a média: em metalurgia básica, respondia por 2,43% das exportações mundiais; em produtos de madeira, por 2,78%; e, em produtos alimentícios, bebidas e fumo, por 3,3%.
Crise do neoliberalismo e alternativas
Se o panorama da ciência e tecnologia na América Latina não é favorável, a crise do neoliberalismo abre espaço para a chegada das forças de esquerda e centro-esquerda ao poder e para a construção de políticas alternativas. Isso coloca em pauta os exemplos históricos a serem tomados em consideração para reestruturar a ciência e tecnologia da região, tornando-a efetivamente um instrumento de soberania.
Na verdade, a construção de um sistema de inovação e de ciência e tecnologia à altura das aspirações de soberania que moveram o início de sua construção requer o enfrentamento de antigos e novos desafios. A abertura comercial e financeira associada ao neoliberalismo aumentou o poder do capital estrangeiro nas estruturas produtivas da região, desarticulou a capacidade de planejamento do Estado, reduziu sua intervenção no processo de produção e destruiu setores tecnologicamente intensivos. As pressões para elevar o esforço tecnológico, advindas da concorrência internacional, foram neutralizadas por esses processos. A superexploração do trabalho se aprofundou e limitou o aumento do valor da força de trabalho, ampliando o desemprego e excluindo as grandes massas da região do esforço tecnológico.
As experiências de êxito na organização de sistemas de ciência e tecnologia, apesar de suas diferenças, apresentam em comum algumas características. A mais decisiva: o desenvolvimento de uma forte capacidade interna de geração de inovações, que não pode ser substituída pela importação de tecnologias, mas sim impulsionada e complementada. Essa tese, óbvia para os países centrais, o é também para os periféricos e semiperiféricos, pois em uma economia mundial comandada por um capitalismo de competição monopólica, as posições de poder dos Estados dependem da capacidade de inovação que desenvolvam.
A União Soviética representou uma primeira tentativa contra-hegemônica de criação de um sistema próprio de ciência e tecnologia. Partiu do planejamento estatal – que influenciaria o keynesianismo –, para definir ciência e tecnologia como atividades de natureza coletiva, que ganham protagonismo na organização social em etapas muito desenvolvidas das forças produtivas. O pensamento soviético se projetou sobre o Leste Europeu e o Ocidente e desenvolveu o conceito de revolução científico-técnica, que encontrou seu mais alto grau de elaboração nas obras do tcheco Radovan Richta. A União Soviética intensificou sua industrialização, elevou a qualificação de sua força de trabalho e alavancou seu crescimento econômico, alcançando resultados expressivos na tecnologia espacial e militar. Entretanto, a burocratização dos métodos de gestão e o relativo isolamento dos fluxos internacionais de tecnologias limitaram sua projeção na economia-mundo a partir dos anos 1970. A dissolução do Estado soviético, em 1991, e a adesão de repúblicas que o integravam ao neoliberalismo tiveram efeitos deletérios, resultando em fechamento de centros de pesquisa, fuga de cérebros e destruição socioeconômica, que se expressaram na elevação do desemprego e da pobreza, na queda da expectativa de vida ou do PIB per capita, em 44%, entre 1990 e 1998.
Outra experiência de construção de um sistema de ciência e tecnologia soberano se manifestou no capitalismo politicamente negociado do leste asiático – que tem como raiz histórica a necessidade de os Estados Unidos conterem a expansão do socialismo asiático, associado às revoluções soviética, chinesa, norte-coreana e vietnamita. Os Estados Unidos apoiaram a construção de polos de desenvolvimento em regiões estratégicas da Ásia (Japão, Taiwan e Coreia do Sul), o que exigiu a liquidação do latifúndio e dos segmentos especuladores em favor da reforma agrária, do emprego, da educação e da industrialização. Tratou-se, inicialmente, de um “desenvolvimento por convite”, sob forte iniciativa norte-americana, mas a criação de uma nova elite empresarial e estatal nesses países lhes permitiu tomar as rédeas do processo e impor aos Estados Unidos um programa de desenvolvimento muito mais profundo, que radicalizou suas dimensões nacionais e sociais. Restringiu-se o investimento direto estrangeiro e garantiu-se uma sólida base produtiva nacional; por meio do aparelho de Estado, conglomerados nacionais ou redes de empresas assumiram o controle de setores tecnológicos-chave; condicionaram-se as importações de tecnologias ao estímulo a setores estratégicos; desenvolveram-se novas técnicas de gestão, que viabilizaram a participação dos trabalhadores nos processos de decisão, convertendo-se essa democratização em um instrumento de inovação tecnológica e de absorção produtiva do amplo esforço de capacitação educacional; intensificaram-se os investimentos em P&D e buscou-se apoio norte-americano por meio do acesso ao seu mercado e ao financiamento externo. A contrapartida era o alinhamento desses países à hegemonia dos Estados Unidos.
Esses processos alcançaram o seu auge com o desenvolvimento do toyotismo no Japão. Contudo, o fim da Guerra Fria restringiu o apoio dos Estados Unidos. A valorização do iene e as contrapartidas associadas aos fundamentos sociais da produtividade derrubaram a taxa de lucro e limitaram drasticamente os investimentos do empresariado japonês no país. A Coreia do Sul e Taiwan, com níveis salariais mais baixos, ainda apresentam, atualmente, importante dinamismo, embora mais moderado que o dos anos 1980.
O modelo chinês
O protagonismo asiático deslocou-se, nos anos 1990, para a China, que representa um outro processo de construção de um sistema nacional de ciência e tecnologia. Com o socialismo, a China desenvolveu políticas sociais que permitem a erradicação da pobreza e da superexploração do trabalho, assim como a elevação do valor da força de trabalho por meio do incremento dos níveis de educação e consumo. Mas, para romper o isolamento tecnológico que a mantém na periferia da economia mundial, a China busca integrar-se ao mercado global, utilizando-o como fonte de aprendizado e capacitação tecnológica, graças a uma forte atuação do Estado, que garante altos investimentos em P&D e educação, a preservação de setores produtivos estratégicos, a vinculação da política monetária ao desenvolvimento e da política cambial à promoção de exportações e à proteção do mercado interno.
O êxito chinês indica uma das especificidades da atual economia mundial. O capitalismo contemporâneo apresenta grandes dificuldades em incorporar os altos custos da transição para o trabalho qualificado que o avanço da revolução científico-técnica supõe, mantendo um nível elevado de sobreacumulação de capital, que é parcialmente absorvido pelo setor financeiro. Mas seus limites de expansão associam-se ao crescimento dos estoques das dívidas, o que obriga à retração da onda especuladora dos anos 1980. A força de trabalho qualificada e barata tornou-se um ativo estratégico para absorver o excedente de capital, e pode ser oferecida pelos países periféricos que rompem com a dependência para investir na sua formação.
É nesse contexto contraditório que se coloca a afirmação chinesa. De um lado, prorroga o desenvolvimento da economia mundial capitalista, mas, de outro, ao promover a ascensão social de 20% da humanidade, questiona um de seus supostos, que é a estratificação bem-definida de suas zonas: centro, semiperiferia e periferia. A direção socialista da economia ainda encontra reforço no fato de vincular-se a baixas taxas de lucro, sendo potencialmente mais ajustada aos fundamentos sociais da competitividade que as novas tecnologias supõem.
Tais conteúdos do processo chinês ilustram os caminhos do desenvolvimento latino-americano. Países como o Brasil, de vocação continental, devem ser pioneiros em um processo de desenvolvimento nacional e regional que os rearticule ao mercado mundial. Os excedentes econômicos da região devem estar voltados para a expansão dos fundamentos sociais, nacionais e regionais da soberania. Isso implica a elevação dos níveis de educação e consumo dos trabalhadores; uma reforma agrária voltada para a segurança alimentar e o desenvolvimento sustentável; a democratização dos processos de trabalho; a ampliação da P&D para no mínimo 2% do PIB; o fortalecimento das empresas nacionais e sua vinculação com as universidades e a subordinação do capital estrangeiro e das políticas macroeconômicas ao desenvolvimento nacional e regional.
É esse conjunto articulado de iniciativas que poderá viabilizar a construção de um sistema de ciência e tecnologia efetivamente importante na região, fundamentando a projeção brasileira na economia mundial. Encontrar os caminhos sociais e políticos de sua implementação está entre os grandes desafios para as próximas décadas.
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