Movimentos sociais

Os anos 1990 deram passagem a uma renovada mundialização capitalista, em sua forma neoliberal, de profundo impacto na América Latina. Prolongando um processo­ iniciado nas décadas anteriores, auspiciado agora pelo chamado Consenso de Washington, a adoção das políticas neoli­berais generalizou-se em toda a região para assumir uma dimensão mais radical. As profundas e regressivas consequências, em termos sociais e democráticos, que a aplicação dessas políticas deflagrou (das quais a pauperização das massas é uma das expressões mais trágicas) resultaram das agudas transformações estruturais que modificaram a geografia societária dos capitalismos latino-americanos no marco da nova ordem aparentemente imposta pela chamada “globalização neoliberal”.

A aplicação dessas políticas sem dúvida enfrentou numerosas resistências e protestos na região. Vale mencionar que na primeira metade da década de 1990 dois presidentes latino-americanos (Fernando Collor de Mello no Brasil e Carlos Andrés Pérez na Venezuela) precisaram abandonar seus cargos como resultado, entre outras questões, do crescente mal-estar e repúdio social. Não obstante, no contexto regional, as resistências à aplicação do receituário neoliberal apresentaram uma configuração muito mais fragmentada em termos sociais e mais localizada em termos setoriais e territoriais que as precedentes; ao mesmo tempo em que, na maioria dos casos, mostraram-se incapazes de obstruir a implementação dessas políticas. No terreno das disciplinas sociais, esse processo, mediado pela hegemonia conquistada pelo pensamento único e suas formulações sobre o “fim da história”, significou o deslocamento da problemática do conflito e dos movimentos sociais do espaço relativamente central que esta havia tido nas décadas passadas – ainda que desde perspectivas diferentes – a um lugar quase marginal e empobrecido.

A despeito disso, até o final daquela década, a realidade social latino-americana seria novamente marcada pelo incremento do conflito social (gráfico ao lado). Pela magnitude regional que alcança – mais além das exceções e diferenças nacionais – e pelas características apresentadas, pode-se admitir o surgimento de um novo ciclo de protesto social. Este se inscreve em um campo de forças resultantes das regressivas transformações estruturais, forjadas pela implantação do neoliberalismo nos países da região, e que emerge como uma contestação a elas.

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Marcha em silêncio dos zapatistas, em San Cristóbal de las Casas, em Chiapas, no México, em dezembro de 2012 (Centro de Medios Libres)
Diversos analistas já destacaram como fato emblemático do despertar desse ciclo o levante zapatista de princípios de 1994. De fato, de diferentes pontos de vista, a revolta dos indígenas de Chiapas apresenta alguns dos elementos que distinguem os movimentos sociais que caracterizam a realidade político-social da região nos últimos anos. O impacto nacional e internacional do levante chiapaneco dará conta, assim, da emergência de movimentos de origem rural constituídos a partir de sua identidade indígena, e da demanda democrática dos direitos coletivos desses povos, que em sua reivindicação de autonomia questionam as bases constitutivas do Estado-Nação. Também é consoante ao protesto por uma democratização radical da gestão político-estatal, assim como da convocatória para convergências continentais e globais.

Não se trata somente, então, do início de um novo ciclo de protestos sociais, mas sim de um tipo que aparece encarnado em sujeitos coletivos que, seja em relação às suas características organizativas, inscrições identitárias, repertórios de protesto e conceituações de ação coletiva, seja em relação à política e ao Estado, apresentam características particulares e diferentes daquelas que ocuparam a cena pública no passado. Em contrapartida, essas experiências e o incremento do protesto social na América Latina se desenvolverão de maneira quase simultânea ao crescimento do conflito em outras regiões do planeta, num processo que marcará a constituição de um espaço de convergência internacional em oposição à mundialização neoliberal: aquilo que os mass media batizaram como movimento “antiglobalização” e que, mais precisamente, poderia ser chamado movimento “altermundialista”.

Nos últimos anos, o crescimento do conflito e a emergência de movimentos sociais convergiram em diferentes processos de confrontos sociais que, atingindo uma ampla significação nacional, implicaram, em alguns casos, a queda de governos, a instauração de crises políticas ou o fracasso de iniciativas de caráter neoliberal. A irrupção, nas cidadelas da governabilidade, dos setores sociais mais castigados pela aplicação desse receituário (camponeses e indígenas, os desempregados e os sem-terra, trabalhadores e setores urbanos empobrecidos) não só abriu novos horizontes – fendendo a hegemonia do pensamento único – como significou o desenvolvimento de uma intensa experimentação democrática e de reconstituição de alternativas societárias.

Este ensaio pretende apresentar algumas das características que distinguem a atual configuração dos movimentos sociais na América Latina e no Caribe, a partir da análise do ciclo de conflitos sociais ao longo do período de hegemonia neoliberal. Merecerão uma reflexão particular as mudanças e a evolução das organizações sindicais no marco das transformações estruturais marcadas pelo modelo neoliberal. Também serão apresentadas algumas tendências que parecem definir a ação coletiva dos movimentos sociais contemporâneos em relação com o território, a democracia e as convergências de caráter regional e internacional.

Crise do pacto keynesiano-fordista

Já se destacou que o novo ciclo de protestos impulsionado em fins da década de 1990 e os movimentos sociais que o protagonizam apresentaram características diferenciadoras daqueles dos anos 60 e 70. O primeiro fato evidente é que, em sua maioria, as organizações sociais promotoras desses protestos surgiram ou foram refundadas nas duas últimas décadas. Mas o aspecto mais importante diz respeito à configuração que esses movimentos assumem e que os distingue, inclusive, do mapa do conflito social característico dos anos 1980 e de princípios dos 1990.

Pelo menos até o final da década de 1980, o conflito assalariado (e particularmente o industrial) constituiu um dos eixos destacados do confronto social na região. Sua hegemonia esteve associada a uma forma historicamente delimitada da relação capital-trabalho: o pacto keynesiano-fordista, que marcou durante quatro décadas as relações trabalhistas do ciclo de desenvolvimento econômico, conhecido como período de substituição de importações, e que teve, entre outros, dois objetivos principais.

No plano econômico, as premissas formuladas pelo inglês John Maynard Keynes eram uma tentativa de dar resposta às transformações técnico-produtivas que criaram as condições para a produção em massa. O crescimento do lucro a partir da redução dos custos salariais mostrava-se já incompatível com a generalização do consumo de massas. Os baixos salários constituíam um obstáculo à expansão da demanda, indispensável, segundo Keynes, para o estabelecimento de um novo ciclo de equilíbrio econômico do capitalismo. Só uma administração política da crise permitiria responder a um problema que não era mais que o resultado lógico do funcionamento do mercado. Dessa forma dava-se prioridade à questão do desemprego e à intervenção estatal na economia, delineando os eixos de um modelo econômico-social diferente daquele dos economistas neoclássicos.

Em segundo lugar, é preciso entender a difusão do pacto keynesiano como uma resposta das classes dominantes à crescente agitação política e social que protagonizaram as classes operárias no mundo, inclusive na periferia capitalista.

Nas décadas posteriores à Revolução Mexicana (1910) e à Revolução Russa (1917), a ativa participação de organizações sindicais e de partidos de esquerda de tradição operária, tanto na luta contra o fascismo quanto nas greves de massas que floresceram na América Latina, impulsionou as elites a buscar mecanismos de reconhecimento institucional das organizações operárias que garantissem a estabilidade política do sistema democrático liberal. O pacto keynesiano supôs, então, o reconhecimento institucional dos sindicatos operários como mediadores entre os capitalistas individuais e o conjunto do capitalismo. Nesse esquema o Estado se atribuiu duas funções essenciais: gerir o interesse coletivo em certas esferas da economia (por meio da intervenção no setor público) e “legitimar” a ordem social, garantindo direitos e uma relativa estabilidade trabalhista. O Estado também interveio ativamente na definição de uma política salarial capaz de expandir o consumo e a demanda internas. O reconhecimento institucional dos sindicatos não só permitia resolver o problema político indicado anteriormente, como, ademais, era percebido como um fator de desenvolvimento econômico.

O esquema societário do pacto keynesiano, que na América Latina teve sua expressão nos regimes caracterizados como “nacional-populistas”, modelou durante décadas o comportamento das organizações sindicais, tanto em seu vínculo com o poder público como em suas formas e estruturas organizativas.

Na medida em que o Estado se transformou no sujeito mais importante da interpelação e satisfação da demanda operária, particularmente no que se refere à política salarial e de direitos trabalhistas, a proximidade das organizações sindicais foi decisiva para o encaminhamento de reivindicações. Assim, a forma de intervenção do movimento operário por meio dos sindicatos industriais foi essencialmente interpelativa, limitando sua capacidade para dotar-se de uma estratégia que, incorporando a reivindicação salarial e de direitos, referendasse uma prática de auto-organização dos trabalhadores no próprio processo produtivo. A negociação centralizada com o poder público impregnou o modelo organizativo sindical, no qual a sua disciplina e a legitimidade das direções operárias resultavam decisivas. O próprio processo produtivo na fábrica difundiu formas de socialização e de identidade operária fortemente arraigadas entre os trabalhadores. Essa forte cultura operária e sindical, característica do perío­do keynesiano-fordista, reconheceu na mediação estatal a garantia de acesso e gozo de direitos sociais, mas limitou ou amputou a construção de uma ordem social autônoma.

Esse modelo de organização sindical marcou – de uma forma ou de outra – a nervura organizativa da maioria dos movimentos sociais urbanos e rurais, cumprindo um destacado papel na articulação político-social das demandas particulares dos sujeitos coletivos. As transformações estruturais que o neoliberalismo impôs a todas as ordens da vida social (e em particular na economia e no mercado de trabalho, com os processos de desindustrialização e financiamento econômico) colocarão em crise essa matriz da ação coletiva e debilitarão (ainda que sem eliminar) o peso dos sindicatos de assalariados como sujeitos privilegiados do conflito.

Marcha de abertura do Fórum Mundial Temático, em Porto Alegre, no Brasil, em janeiro de 2012 (Valter Campanato/ABr)

Reconfiguração dos sujeitos sociais

Como contrapartida, resultado dos processos de concentração da renda, da riqueza e dos recursos naturais que acompanharam as políticas neoliberais, novos movimentos sociais de base territorial – tanto no mundo rural como no espaço urbano – emergiram no cenário latino-americano. Eles se formaram, por exemplo, em relação à identidade étnico-cultural (os movimentos indígenas) e à carência (os chamados “movimentos sem”, tais como os sem-terra, sem-teto ou sem-trabalho). Ou, ainda, em relação a um habitat compartilhado (por exemplo, os movimentos de moradores de favelas).

Assim, o modelo de “reprimarização” econômica e a centralidade que nesse contexto assumiram os processos de reestruturação agrária tiveram como contrapartida a emergência de destacados movimentos de origem rural. Na mesma direção operaram a privatização e a exploração intensiva dos recursos naturais, que transformaram a vida de numerosas comunidades do campo. Esse foi sem dúvida um dos elementos distintivos da nova fase, particularmente protagonizado pelos movimentos indígenas, em especial no Equador, no México e na Bolívia.

Esses movimentos conquistaram uma forte influência em nível nacional e internacional, que transcendeu as reivindicações setoriais, e chegou a questionar tanto as políticas econômicas neoliberais, e a legitimidade política dos governos que as impulsionam, quanto a forma constitutiva do Estado-Nação na América Latina. Por exemplo, no caso equatoriano, o movimento indígena lutou pelo reconhecimento de um projeto político que, refletindo a reivindicação de um Estado plurinacional, procura garantir o autogoverno das diferentes nacionalidades indígenas. Sob uma reivindicação de autonomia ainda mais radical, a experiên­cia do movimento zapatista reclamou o reconhecimento constitucional dos direitos dos povos indígenas, parcialmente cristalizados nos chamados Acordos de San Andrés (1995), assinado entre os zapatistas e representantes do governo federal. A luta por esses direitos inspirou a “carava­na pela dignidade”, que percorreu boa parte do México nos primeiros meses de 2001 em protesto pelo cumprimento dos acordos. Soma-se a esse quadro a ação dos movimentos indígenas do Altiplano bolivia­no (e também, ainda que em menor medida, do lado peruano), assim como a ação dos chamados “movimentos cocaleiros” protagonizados pelos camponeses do sul do Peru e das regiões bolivianas dos Yungas e do Chapare, contra a política de erradicação do cultivo da folha de coca, exigida pelo governo norte-americano. A prolongada ação dos povos mapuches do sul chileno (particularmente corporificada na chamada Coordenadoria Arauco-Malleco) contra a apropriação de suas terras e a exploração predadora dos recursos naturais, como no vale do Cauca colombiano, é outro exemplo desse tipo de luta que parece desdobrar-se em toda a região latino-americana. Vale destacar também o impulso tomado a partir de 2002 pelos povos originários da América Central contra o Plano Puebla-Panamá (PPP), destinado a acelerar a penetração do capital e os investimentos transnacionais na América Central.

Conflitos nos campos e nas cidades

O surgimento e a consolidação dos movimentos indígenas na cena político-social vieram acompanhados pela emergência de mobilizações camponesas que alcançaram uma significativa presença tanto em nível nacional como regional. Um caso emblemático, no Brasil, foi o do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). As seguidas ocupações de propriedades rurais e de edifícios públicos em busca de uma reforma agrária progressiva e integral, suas ações contra a difusão do modelo de agricultura transgênica e o desenvolvimento dos chamados “assentamentos” fizeram do MST um movimento social de grande relevância política. Sua experiência exemplificou um processo de crescente mobilização e organização dos setores rurais em nível regional, que estimulou a difusão de movimentos sem-terra em outros países latino-americanos (por exemplo, na Bolívia e no Paraguai). Também se intensificaram as lutas camponesas no México, no Paraguai e na América Central, e sua capacidade de convocar os pequenos produtores, castigados pelas políticas de liberalização do setor agrícola, levadas adiante pelos acordos de livre-comércio.

Na mesma direção, vale destacar o crescimento dos protestos e os processos de convergência experimentados no campo, contra as consequências econômicas e sociais provocadas pela queda dos preços internacionais de numerosos produtos agrícolas, pelas políticas creditícias draconianas e pelas barreiras alfandegárias para esses tipos de produto, vigentes nos países industrializados.

De outro lado, no espaço urbano, os efeitos estruturais do desemprego acarretados pelas políticas neoliberais significaram – fundamentalmente em países do Cone Sul – a aparição e consolidação de movimentos de trabalhadores desempregados. A Argentina apareceu como o caso mais emblemático desse fenômeno. Principalmente a partir de 1999, esses movimentos dos piqueteiros ocuparam um lugar central no cenário do protesto contra o neoliberalismo e na aceleração da crise político-social que levou à renúncia do presidente Fernando De La Rúa, em dezembro de 2001.

Por outro lado, as cidades latino-americanas viram-se submetidas a profundos processos de reconfiguração espacial e social devido ao impacto das políticas liberais. Os processos de “descentralização municipal” orquestrados ao calor dos ajustes fiscais (com o objetivo de “aliviar” a responsabilidade dos governos centrais de transferir recursos às administrações locais) tiveram enormes consequências na vida cotidiana dos habitantes das cidades. A fragmentação e bipolarização do espaço urbano, o abandono das áreas públicas, a deterioração dos serviços e a difusão da violência são apenas algumas das consequên­cias mais visíveis da profunda transformação socioespacial ocorrida nas cidades da região.

Os conflitos urbanos recentes parecem dar conta dessa multiplicidade de problemáticas derivadas da polarização social impulsionada pelo neoliberalismo. As lutas pelo acesso à moradia (movimentos sem-teto), pela melhoria dos serviços públicos e contra a alta de tarifas destes, pela defesa da escola pública e contra as políticas de descentralização apresentam também, em numerosos casos, a confluên­cia de diversos setores sociais. O flagelo ocasionado pelas catástrofes naturais (terremotos, ciclones, inundações), agravadas pelo crescente impacto ecológico do desenvolvimento capitalista atual, assim como o abandono das populações urbanas diante da necessidade de ajuda oficial e investimento em infraestrutura, explicam as numerosas mobilizações em protesto pela assistência dos governos locais e nacionais.

Se em décadas passadas a participação e a mobilização juvenil na América Latina se canalizaram em grande medida pela forte presença do movimento estudantil universitário, o protesto dos jovens parece adotar novas formas e meios de expressão. A queda nos níveis de escolarização resultante dos efeitos combinados do processo de privatização educativa, da concentração de renda e do crescimento da pobreza talvez esteja entre as causas da relativa perda de peso dos movimentos estudantis. Mesmo que os estudantes formem ainda um setor dinâmico no cenário do conflito social – inclusive ativamente envolvidos em protestos de vários segmentos, que transpassam as reivindicações educati­vas –, o descontentamento juvenil também se manifesta de outras formas. Ele se desenvolve, por exemplo, por meio de um ativo envolvimento nos movimentos de desempregados, de jovens favelados no Brasil, em correntes e coletivos culturais alternativos de diversas características, em movimentos de direitos humanos, nos protestos indígenas e camponeses, e, ainda, em coletivos sindicais de trabalhadores jovens precarizados.

No mesmo sentido, é necessário ressaltar a importante presença e o caráter protagonista que as mulheres ocupam nos movimentos sociais da atualidade. As figuras femininas destacaram-se também na constituição desses movimentos territoriais, aparecendo assim refletidas tanto no papel destacado das mulheres “piqueteiras”, zapatistas e indígenas, como na revitalização e reformulação das correntes feministas de décadas passadas que se cristalizaram, entre outras experiências, na chamada Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e na referência à “feminização da pobreza”.

Conflitos trabalhistas: o setor público

A importância alcançada por esses movimentos de base territorial está longe de significar o desaparecimento do conflito dos trabalhadores assalariados urbanos. Não apenas porque em muitos desses movimentos pode-se distinguir a presença de trabalhadores nas difusas e heterogêneas formas que a categoria assume sob o neoliberalismo, que resulta em processos de identificação não vinculados à relação entre capital e trabalho, entre os quais estão os critérios de “pobreza”, de “etnicidade”, de ofícios e de atividades “informais” e de comunidades primárias. A constatação a que nos induz a continuidade dos conflitos sociais na América Latina é que o mundo do trabalho – particularmente no espaço urbano –, longe de ser um sujeito secundário da prática reivindicativa, ocupou um lugar destacado no mapa do protesto social, representando aproximadamente um terço dos fatores de conflito relevantes, de maio de 2000 a dezembro de 2004. Não obstante, esse peso quantitativo dos protestos contrasta com as dificuldades que estes (e as organizações sindicais que os impulsionam) têm para transcender seu caráter setorial e atingir uma dimensão nacional, e marca uma redefinição em favor de um significativo protagonismo dos trabalhadores do setor público. Em 2004, os conflitos protagonizados por esse segmento, segundo os registros fornecidos pelo OSAL-Clacso, representaram 74,60% do total de protestos dos trabalhadores ocupados.

As lutas dos assalariados públicos desdobram-se em face das reiteradas políticas de reforma e privatização desenvolvidas pelas políticas neoliberais, em particular como resultado da colocação em prática de pacotes de ajuste fiscal, exigidos e negociados pelos governos com os organismos internacionais. Nesse setor adquire particular relevância a dinâmica dos mestres e professores, cujas reivindicações se referem fundamentalmente a aumentos salariais, pagamento de salários pendentes, ampliação do orçamento educativo, rechaço às propostas de reformas educacionais (em particular, à flexibilização das condições trabalhistas). Em alguns países, as ações resultantes da oposição à privatização da educação pública permitem a convergência com setores estudantis (no âmbito universitário) e também com outros segmentos como os dos pais de alunos, que, apoiando os protestos docentes e participando na defesa da educação pública, parecem indicar a aparição da forma “comunidade educativa” no desenvolvimento desses conflitos.

Cabe destacar igualmente a intensa prática reivindicativa dos empregados administrativos que se mobilizam contra demissões, por aumentos salariais ou pagamento de salários atrasados e contra a reforma do Estado. E também os conflitos protagonizados pelos trabalhadores da saúde, por aumentos salariais, melhorias nas condições de trabalho e destinação de maiores verbas orçamentárias aos hospitais públicos e ao sistema de saúde em geral. É interessante realçar que as formas de protesto no setor adotam recorrentemente a modalidade de greves prolongadas – inclusive por tempo indeterminado – e se articulam tanto como greves nacionais e regionais convocadas pelos sindicais quanto como processos de mobilização de rua. O mesmo ocorre com as manifestações contra a privatização de empresas públicas.

Convergência contra as privatizações

Se a onda privatista “de primeira geração”, empreendida no início dos anos 1990 por alguns governos da América Latina, se defrontou com uma resistência social liderada fundamentalmente pelos sindicatos e trabalhadores dos setores implicados, as lutas contra as privatizações de “segunda geração” aparecem em alguns casos como um momento de agregar valor social ao protesto, que se manifesta por meio do surgimento de espaços de convergência político-sociais de caráter amplo. Nas mobilizações da década anterior, em que os protestos ficaram restritos aos trabalhadores e suas organizações sindicais, sem a formação de frentes sociais mais amplas que transcendessem as reivindicações particulares, estes em geral foram derrotados. Circunscrito o conflito aos empregados de determinadas empresas, após a privatização, boa parte deles foi demitida e passou a engrossar as filas de desempregados.

O novo ciclo de protestos sociais analisado parece mostrar, pelo contrário, uma nova estratégia. Alguns exemplos recentes, como os protestos impulsionados pela Frente Ampla Cívica de Arequipa, no sul do Peru, contra a venda das empresas públicas do setor elétrico (2002), e pelo Congresso Democrático do Povo no Paraguai em favor da revogação da lei que habilitava a privatização de empresas do Estado (2002), ilustram a ampla convergência de setores sociais em coordenadorias contra as privatizações (federações camponesas, sindicatos, estudantes, ONGs e partidos políticos). Não raro suas lutas resultam provisoriamente vitoriosas e obrigam os governos a recuarem em suas intenções privatistas. O antecedente mais importante desse tipo de protesto foi a chamada “Guerra da Água” em Cochabamba, Bolívia (2000), que frustrou o intento de conceder e privatizar o serviço de água potável naquela cidade a um consórcio internacional encabeçado pela empresa norte-americana Bechtel.

Esse tipo de mobilização assume muitas vezes uma acentuada radicalização em suas formas (levantes urbanos, bloqueios prolongados de vias, ocupação de instalações de empresas) que parece acompanhar uma tendência ao confronto das ações, característica do atual ciclo de protestos na região. Em contrapartida, também a denúncia contra a corrupção e a demanda por maior participação democrática e transparência na vida política local impulsionaram as populações pobres das cidades a manifestar seu descontentamento, promovendo processos de convergência multissetorial, sob a forma de distúrbios ou de mobilizações comunitárias.

Um novo sindicalismo

Esses processos de convergência, que remetem ao surgimento de dinâmicas inovadoras para enfrentar a ofensiva neoliberal, tiveram uma dupla incidência na prática e no debate do mundo sindical latino-americano. Por um lado, induziram alguns agrupamentos à reformulação de suas estratégias sindicais, e, em outros casos, culminaram na criação de novas correntes e centrais sindicais com uma perspectiva de luta que tenta ampliar os limites reivindicativos e de alianças sociais do período fordista. Essa tendência, presente em alguns países desde meados da década de 1980, adquiriu maior visibilidade na década seguinte e aparece como um traço distintivo do panorama sindical da América Latina.

A criação da Central Única dos Trabalhadores do Brasil (CUT) em 1983, no calor das lutas dos metalúrgicos do ABC paulista contra a ditadura, resultou de um processo de convergência de agrupamentos antiburocráticos e de esquerda e foi um marco no panorama sindical da região. No âmbito da transição democrática no Uruguai, e como resultado da aproximação entre o Plenário Intersindical de Trabalhadores e a Convenção Nacional de Trabalhadores (CNT), nasceu, em 1985, a central PIT-CNT, que também aglutinou a experiência de luta dos trabalhadores contra a ditadura nesse país. Reunidas no Congresso Constitutivo da Central Unitária de Trabalhadores (CUT) da Colômbia, diferentes correntes ideológicas do sindicalismo aprovaram a criação da entidade em fins de 1986, com o objetivo explícito de lutar contra o Fundo Monetário Internacional, a dívida externa e a banca internacional. Em 1992, setores sindicais distanciados da Confederação Geral do Trabalho (CGT) da Argentina formaram o Congresso dos Trabalhadores Argentinos, que a partir de 1996 se organizou como Central dos Trabalhadores Argentinos (CTA). A criação da CTA produziu-se em aberto questionamento ao modelo neoliberal e ao “sindicalismo de negócios” encarnado pela CGT, adotando um modelo sindical aberto, ao qual se incorporaram, desde sua criação, agrupamentos de trabalhadores desempregados.

Para o caso do México, cabe assinalar a fundação da União Nacional de Trabalhadores (UNT), em 1998, como resposta ao apoio da tradicional Confederação de Trabalhadores do México (CTM) às políticas neoliberais implementadas pelos sucessivos governos do Partido Revolucionário Institucional (PRI). No mesmo país, formou-se, em 2002, a Frente Sindical Mexicana, com a participação do Sindicato Mexicano dos Eletricistas (SME), entre outros. Ambos convergiram para ações de luta unitária junto ao El Barzón (movimento de agricultores endividados, formado em 1993), Congresso Agrário Permanente, Frente Sindical Camponesa, Social e Popular, entre outras organizações, com o objetivo de alterar o rumo das políticas econômicas e sociais do governo do presidente Vicente Fox. É importante também mencionar a criação, em abril de 2003, da União Nacional de Trabalhadores da Venezuela (UNT), como uma resposta de amplos setores sindicais, ligados ao processo bolivariano, à participação da Central de Trabalhadores da Venezuela (CTV) nas ações de desestabilização do regime democrático durante 2002. A UNT, que postulou sua autonomia em relação ao governo do presidente Hugo Chávez, promove a cogestão dos trabalhadores nas empresas públicas. Sob o impulso da CUT, essas experiências convergiram na Coordenadoria de Centrais Sindicais do Cone Sul (CCSCS), criada em 1986 para buscar alternativas ao rumo neoliberal que a integração do Mercosul adotou.

Esses e outros agrupamentos e centrais sindicais tiveram uma ativa participação nos processos de convergência regional e internacional que assumiram particular relevância no presente cenário do protesto social latino-americano. Tais dinâmicas constituem, por sua amplitude, inserção geográfica e nível de aglutinação em termos de movimentos, coletivos e sociais, uma experiência sem precedentes no continente. No passado, as experiências de coordenação internacional de movimentos sociais tiveram suas expressões mais destacadas no âmbito das organizações sindicais ou de setores estudantis universitários. Centradas na defesa de interesses setoriais e/ou profissionais, essas convergências encontravam grandes dificuldades de transcender sua condição e atingir uma esfera reivindicativa específica. O impacto e as consequências da “globalização neoliberal” e, consequentemente, a irrupção nos cenários políticos nacionais de processos de magnitude continental (entre outros, por exemplo, os chamados acordos de livre-comércio) resultaram no aparecimento e na afirmação de experiências de coordenação hemisférica à qual confluem movimentos sindicais, de mulheres e estudantis, ONGs, partidos políticos, coletivos antimilitaristas, agrupamentos de defesa do meio ambiente etc. Nessa coordenação exercem um papel decisivo as organizações camponesas, particularmente por meio da Coordenadoria Latino-americana de Organizações do Campo (CLOC) e sua articulação internacional, a Via Campesina. A constituição da Rede Internacional dos Movimentos Sociais e a Campanha Continental contra a Área de Livre Comércio das Américas (CCCA), promovida pela Aliança Social Continental (ASC) e outras redes e coletivos, são talvez os exemplos mais destacados, aos quais se agregam numerosos encontros, regionais e continentais, contra o Plano Puebla – Panamá, a militarização regional e a intervenção estrangeira (particularmente em relação aos chamados Plano Colômbia e Iniciativa Andina), entre outras questões. A formação do Fórum Social Mundial (FSM, 2001-2005), do Fórum Social das Américas (FSA, 2004) e do Fórum Meso-americano (FM, 2002-2004) aparece como a experiência mais destacada dessas convergências, nos níveis continental e regional.

Cerca de 800 mulheres camponesas, organizadas pela Via Campesina, ocupam a multinacional Bunge, em Luziânia (entorno de Brasília), no Brasil, em março de 2015 (Antonio Cruz/ABr)

Novas práticas e novos horizontes

Nesse panorama das características atuais­ do conflito social na América Latina, aparecem já ressaltadas algumas das particularidades que distinguem a ação e con­formação dos movimentos sociais e populares contemporâneos na região. A análise dessas experiências e, particularmente, o entendimento e a conceituação das novidades que esses movimentos propõem no decurso histórico da ação coletiva e da contestação social são um dos centros de atenção da elaboração e revitalização do pensamento social latino-americano atual.

A renovada geração de estudos e publicações sobre tais temas supôs também a criação de um novo campo de problemáticas, assim como um enriquecimento dos marcos teóricos e metodológicos relacionados ao estudo dos movimentos sociais. Uma das manifestações dessas elaborações e dos debates apresentados diz respeito, por exemplo, ao lugar que no interior do pensamento crítico ocupou recentemente a discussão sobre a conceituação do poder e do papel que cabe ao Estado-Nação, em relação às visões da emancipação social promovidas por esses movimentos.

No que concerne aos sujeitos sociais que parecem protagonizar o novo ciclo de protestos, cabe ressaltar duas características já assinaladas. A primeira é o deslocamento do conflito assalariado para o setor público, enfraquecendo o impacto e a importância que têm sido impulsionados pelos trabalhadores do setor privado. Esse fato implica, por sua vez, uma configuração particular que atravessa a ação das organizações sindicais como dinâmica reivindicativa do setor público e convoca à participação e convergência de outros setores sociais na defesa do acesso e da qualidade da educação e da saúde como direitos dos cidadãos. Em muitos casos, as lutas contra essas políticas de desmantelamento e privatização, e o impulso dos processos de convergência – que adotam as formas de coordenadorias e frentes cívicas –, não necessariamente repousam sobre a dinâmica sindical assalariada, destacando-se a importância do papel desempenhado por outras organizações (movimentos camponeses, indígenas, desempregados, estudantes, movimentos urbanos, entre outros) na conformação dessas “coalizões sociais amplas”. A segunda característica refere-se à consolidação de movimentos de origem rural – indígenas e camponeses – que alcançam uma significação e influência nacional e regional. Eles desenvolvem uma notável capacidade de interpelação e articulação com setores sociais urbanos, conseguindo vincular, em muitos casos com êxito, a dinâmica da luta contra o neoliberalismo (política agrária, privatizações, ajuste fiscal) a um questionamento mais amplo das bases de legitimidade dos sistemas políticos na região.

Em relação aos “repertórios do protesto” é importante destacar uma tendência à radicalização das formas de luta, que se evidencia na difusão regional de levantes urbanos e de bloqueios de estradas (característicos, por exemplo, do protesto dos movimentos de trabalhadores desempregados na Argentina, e também dos movimentos indígenas e cocaleiros da Área Andina), na generalização de medidas de confronto, no enfraquecimento das medidas demonstrativas, nas ocupações de terras (impulsionadas pelos movimentos camponeses) ou de edifícios públicos ou privados e na duração temporal das ações de protestos (ações prolongadas ou por tempo indeterminado). De outro lado, a recorrência de longas marchas e manifestações que atravessam durante dias e semanas os espaços regionais e nacionais parece querer se contrapor à dinâmica de segmentação territorial promovida pelo neoliberalismo. Além disso, os distúrbios e levantes urbanos aparecem como estratégias que tendem a uma reapropriação coletiva do espaço comunitário e à recuperação de uma visibilidade social negada pelos mecanismos de poder.

Estes dois breves apontamentos – assim como a descrição do cenário do conflito social apresentado anteriormente – permitem então aprofundar, sem pretender esgotar a questão, o caráter da configuração particular que parece distinguir a experimentação dos movimentos sociais contemporâneos na região, sublinhando três características: territorialização, democracia e movimentos sociais, e um novo tipo de internacionalismo.

Territorialização

Em primeiro lugar, falemos da dinâmica de apropriação territorial que caracteriza a prática coletiva dos movimentos territoriais rurais e urbanos. Apresentada por Zibechi (2003) como “a resposta estratégica dos pobres à crise da velha territorialidade da fábrica e da fazenda… [e a] a desterritorialização produtiva… [impulsionada por] as contrarreformas neoliberais”, e também ao processo de privatização do público e à esfera política, essa tendência à reapropriação comunitária do espaço de vida onde se assentam esses movimentos refere-se tanto à expansão das experiências de autogestão produtiva, de resolução coletiva de necessidades sociais (por exemplo, no terreno da educação e da saúde), como às formas autônomas de gestão dos assuntos públicos. Neste continuum diverso podem ser abarcados os assentamentos cooperativos do MST brasileiro, as comunidades indígenas no Equador e na Bolívia, os municípios autônomos zapatistas no México, os empreendimentos produtivos dos diferentes movimentos de desocupados e o movimento de fábricas recuperadas, ambos na Argentina, assim como os distúrbios e levantes urbanos que implicaram a emergência de práticas de gestão do espaço público (tais são os casos, por exemplo, da Guerra da Água em Cochabamba, Bolívia, bem como a experiência das assembleias populares surgidas nos principais centros urbanos da Argentina após dezembro de 2001).

Nesse sentido, a crescente “territorialização” dos movimentos sociais é resultado tanto da extensão de formas de reciprocidade, isto é, de intercâmbio de força de trabalho e de produtos sem passar pelo mercado – ainda que com uma relação inevitável, mas ambígua e tangencial com ele – quanto de novas formas de autoridade política, de caráter comunal, que operam com o Estado ou sem ele. Em tensão permanente com o mercado e o Estado, estendida no tempo ou instável e temporária, assentada em práticas de produção e reprodução da vida ou operando simplesmente no terreno da gestão do público-político, essa dinâmica de reapropriação coletiva do território social parece orientar a experiência não só dos movimentos indígenas e camponeses, mas age também no espaço urbano. Neste passo, poderíamos afirmar, como fez Luis Tapia no artigo “A crise política de abril” (Osal  2, 2000), que “a política antineoliberal parece encaminhar-se para uma ação de produção e reprodução da sociedade, mais além da produção ampliada e deslocada dos capitais transnacionais”.

Democracia e movimentos sociais

Em consonância com essa experiência, a prática e a discursividade da maioria dos movimentos sociais examinados aparecem atravessadas pela revalorização de mecanismos democráticos de participação e decisão que, inspirados nas referências da democracia direta ou semidireta, orientam tanto seus modelos organizacionais, como seus programas e a demanda em relação ao Estado. Nesse sentido, por um lado, a promoção de formas participativas mais horizontais e abertas recebe o seu aval, se se levar em conta o perigo de “desconexão” entre os diferentes níveis organizacionais, de burocratização e manipulação, assim como, por outro lado, o confronto com a hegemonia neoliberal no terreno das políticas públicas se traduziu em um crescente questionamento do regime político, do modelo da democracia representativa e da forma que adotou a constituição do Estado-Nação na América Latina, promovendo perante esta uma diversidade de demandas, que vão desde a exigência de consultas – o referendum – até os protestos de autonomia e autogoverno impulsionados particularmente pelos movimentos indígenas.

As experiências de auto-organização social, vinculadas a formas assembleístas de organização, foram uma característica da emergência de muitos desses movimentos (por exemplo, das organizações de trabalhadores desempregados e assembleias populares, na Argentina, ou dos levantes urbanos da Guerra da Água e da Guerra do Gás, na Bolívia). Também as tradicionais experiências de gestão comunitária que caracterizaram as comunidades indígenas, reformuladas sob o impacto das políticas neoliberais, serviram como um olhar crítico e alternativo que diz respeito às formas de delegação e de representação. Nesse terreno a experimentação zapatista cristalizada na voz do “mandar obedecendo” é talvez a mais clara e sugestiva, ainda que não a única. Por outro lado, a utilização e presença, no programa de muitos movimentos, de instrumentos de democracia semidireta puderam ser constatadas, por exemplo, na demanda do referendum sobre o gás e na convocação à Assembleia Constituinte, nas jornadas de outubro na Bolívia (2003), nos referendum contra as privatizações no Uruguai ou na exigência de plebiscitos vinculantes sobre a ALCA, que impulsiona as coalizões sociais constituídas na oposição a tal acordo comercial em nível continental.

Na mesma direção, seja sob a forma da demanda de um Estado plurinacional, no caso do movimento indígena equatoriano, seja na exigência e construção do autogoverno nos municípios autônomos zapatistas, a reivindicação da autonomia dos povos indígenas assumirá, em sua projeção social, os postulados de uma democratização radical das formas do Estado-Nação, particularmente da “colonialidade do poder” que caracterizou sua constituição.

Por último, o acesso a governos locais de representantes desses movimentos (especialmente na experiência das serras equatorianas e no vale do Cauca, na Colômbia) supôs pôr em marcha mecanismos de participação e controle popular na gestão destes. Na diversidade das experiências descritas anteriormente pode assim assinalar-se a emergência de uma tendência democratizadora, que atravessa a prática coletiva dos movimentos sociais tanto em seus espaços de autonomia como no terreno do Estado, e expressa em que medida a democracia participativa assumiu uma nova dinâmica protagonizada pelas comunidades e grupos sociais subalternos, na luta contra a exclusão social e a trivialização da cidadania.

Marcha dos movimentos sociais pela XII Cúpula Presidencial da ALBA (Aliança Bolivariana Para os Povos da Nossa América), em Guayaquil, no Equador, em julho de 2013 (Xavier Granja Cedeño Ministerio de Relaciones Exteriores y Movilidad Humana/Cancillería Ecuador)

Um novo tipo de internacionalismo

Desde os protestos contra o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI, 1997-1998), a Batalha de Seattle, que frustrou a autoproclamada Rodada do Milênio da Organização Mundial do Comércio (1999), a criação e o aprofundamento da experiência do Fórum Social Mundial (FSM, 2001 a 2005) e as “jornadas globais” contra a intervenção militar no Iraque (2003-2004), a nervura de um novo internacionalismo tingiu de maneira profunda e singular os movimentos sociais na arena mundial. O caráter eminentemente social dos atores envolvidos (ainda que não desligado de inscrições político-ideológicas), sua heterogeneidade e amplitude, a extensão verdadeiramente internacional das convergências, as formas de organização e as características que assumem tais articulações marcam a novidade desse internacionalismo.

A América Latina não ficou alheia a esse processo. Pelo contrário, a realização em 1996 do I Encontro pela Humanidade e contra o Neoliberalismo, organizado pelo zapatismo nas profundidades da selva chiapaneca, assim como o nascimento do FSM na cidade brasileira de Porto Alegre, assinalaram a profunda imbricação entre o crescimento do protesto, os movimentos sociais na América Latina e a emergência das convergências globais contra a mundialização neoliberal. Ao longo dos últimos anos, tais experiências estiveram marcadas particularmente pela evolução dos chamados acordos sobre liberalização comercial e, em particular, pela iniciativa norte-americana de criação da ALCA.

Esses processos de resistência abrangeram tanto a constituição de espaços de coordenação em nível regional (que agrupam um amplo arco de movimentos, organizações sociais e ONGs) como o surgimento de experiências de convergência similares, em nível nacional (por exemplo, as campanhas nacionais contra a ALCA). Eles resultaram, em âmbito continental e ao lado da experiência dos fóruns sociais e das mobilizações contra a guerra, na expressão atual e no prolongamento do movimento “altermundialista”, que emergiu e se consolidou na última década.

Em relação às convergências contra o “livre-comércio”, a experiência regional remonta aos protestos que despertaram a negociação e a entrada em vigor, em 1994, do Acordo de Livre-Comércio da América do Norte (NAFTA), à criação da Aliança Social Continental (1997), à organização da I Cúpula dos Povos das Américas (1998) – em oposição à II Cúpula de Presidentes dos 34 países americanos que participam da negociação da ALCA – e à organização dos Encontros Hemisféricos contra a ALCA (Havana, 2002 a 2005). Os processos de convergência e protesto se intensificaram em nível regional particularmente em torno da dinâmica e das características que essas negociações assumiram a partir de 2003 – marcadas pela aproximação da data inicialmente prevista para sua finalização (2005), data esta que não pôde ser cumprida, pelas dificuldades e resistências que enfrentou e pela aceleração dos Tratados de Livre-Comércio (TLC) plurilaterais. Na América Central, essas experiências frutificaram na criação e desenvolvimento dos fóruns centro-americanos e do chamado Bloco Popular centro-americano. No caso dos países que integram o Mercosul, as campanhas nacionais contra a ALCA impulsionaram, com a participação de centrais sindicais, consultas populares em larga escala, assim como evoluíram ao crescente questionamento do “livre-comércio” perante as diferentes negociações comerciais empreendidas pelos governos do Cone Sul.

Finalmente, na Área Andina, a articulação do repúdio a esses tratados e gigantescos protestos nos espaços nacionais (por exemplo, a Guerra do Gás na Bolívia, 2003), bem como a emergência de instâncias de coordenação regional (por exemplo, a realização da primeira Jornada Andina de Mobilização contra a ALCA, em abril de 2004) marcaram a riqueza desses processos. A realização no Equador do I Fórum Social das Américas (julho de 2004) tornou-se um ponto de chegada dessas experiências. O evento permitiu potencializar a luta andina contra o livre-comércio, em particular na Colômbia, onde ocorreram enormes mobilizações contra o TLC, na segunda metade do ano.

A governabilidade neoliberal em xeque

O início da nova década encontrou as “democracias neoliberais” da América Latina e as elites políticas e econômicas, impulsionadoras e beneficiárias do modelo, aturdidas pelos ecos dessa profunda e recorrente “interpelação plebeia”. A legitimidade política e ideológica da ordem neoliberal se viu questionada em muitos países da região e uma visível vontade de mudança de rumo, na orientação político-econômica dominante nas últimas décadas, impregnou o discurso e a prática dos movimentos sociais mais relevantes.

No marco da crise econômica que atravessou boa parte da América Latina entre fins dos anos 1990 e os primeiros anos do novo século, e diante das tentativas de aprofundar as políticas neoliberais, esse processo se traduziu, por um lado, em levantes e insurreições populares que chegaram a derrubar vários governos. Por outro lado, expressou-se também no surgimento de “maiorias eleitorais” críticas ao neoliberalismo, no consequente triunfo de coalizões partidárias e de novos elencos governamentais. Isso ocorreu sobretudo nos países do Cone Sul, que puseram o acento de sua discursividade política nos estragos sociais produzidos pela aplicação do receituário neoliberal e nos quais, em alguns casos, grupamentos oposicionistas capazes de chegar ao poder tinham profundos vínculos com os próprios movimentos sociais. Assim, também a continuidade do protesto social e sua reconceituação democrática da política, entendida como possibilidade de mudança, enfrentaram as iniciativas das elites. Estas tendiam a limitar institucionalmente as demandas sociais, a acentuar e expandir um diagrama de militarização social e de criminalização das rebeldias, e a disputar, com suas próprias ações, o espaço da mobilização de rua.

Dependendo da força e dinâmica em que se encontravam os movimentos sociais, da pujança e unidade no interior do bloco dominante, da existência e profundidade da crise de legitimidade do regime neoliberal, essas saídas se combinaram de distintas maneiras em cada contexto nacional, propondo, em sua generalidade, um cenário marcado por novos desafios e dificuldades para os movimentos sociais emergidos no período recente. Não cabe fazer aqui a análise detalhada de tais movimentos e dos diferentes contextos político-sociais nos quais se inscrevem. Valeria assinalar que, seja sob a forma de milita­rização, relegitimação institucional ou transformação de políticas públicas, o novo cenário latino-americano requer o debate sobre a relação existente entre o Estado e as classes sociais, sobre as noções de autonomia e integração, de democrati­zação e transformação social. As considerações apresentadas a seguir podem contribuir para esse futuro debate.

Ventos de mudança

As rebeliões po­pulares que derrubaram governos resultaram particularmente visíveis na área andina: de 1999 a 2005, cinco dos seis presidentes latino-americanos desalojados do poder governavam países da região (Equador, 1999; Peru, 2000; Argentina, 2001; Bolívia, 2003; Equador, 2005 e Bolívia 2005). Esse questionamento do poder político, que contrasta com a relativa estabilidade institucional de que gozaram os governos depois das “transições democráticas”, nos anos 1980 e parte dos 1990, estendeu-se também em alguns paí­ses – como mostra o caso argentino – aos poderes Legislativo e Judiciário, interpelados como corresponsáveis pela implementação das mencionadas políticas. Não obstante, a capacidade destituidora que a mobilização popular soube alcançar proporcionou novos problemas e desafios na hora de criar uma saída efetiva ao neoliberalismo, marcando a complexidade das transições abertas.

De outro lado, as aspirações de transformação levantadas por vastos setores populares se cristalizaram, também no Cone Sul, na eleição de novos elencos governamentais que encarnavam essa vontade de mudança. Nesse sentido seria possível abarcar as experiências de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil (2002), Néstor Kirchner na Argentina (2003), Tabaré Vázquez no Uruguai (2004) e Evo Morales na Bolívia (2005), em uma lista que, para muitos analistas, poderia incluir também Lucio Edwin Gutiérrez Borbua no Equador (2002) e Nicanor Duarte Frutos no Paraguai (2003). A continuidade da política neoliberal no governo de Gutiérrez levou, a meses de sua assunção, à ruptura da aliança com as principais organizações indígenas, abrindo um processo de crise e recomposição que ainda não está concluído. Também a intensa repressão estatal e paraestatal que enfrentou o ciclo de protestos camponeses ao longo de 2004, no Paraguai, implicou um refluxo das mobilizações rurais. Na lógica governamental, a militarização do campo se prolongou nos recentes acordos para o ingresso de efetivos militares norte-americanos, com operações conjuntas e a instalação de uma base militar daquele país em território paraguaio.

No caso do Brasil, a continuidade da política econômica neoliberal que caracterizou o governo do PT daria passagem a uma crescente tensão e rupturas no interior do partido, no campo da coordenação política dos movimentos sociais. O quadro argentino revelou uma situação similar, ainda que em um contexto diferente. A eleição de Néstor Kirchner com 22,2% dos votos – após a deserção de Carlos Menem – e o prolongamento dos ecos da crise e das mobilizações de fins de 2001 condicionaram o novo governo a buscar o apoio de uma parte do movimento social, agravando as tensões no interior deste, notadamente entre aquelas organizações que se integram ao projeto presidencial e as que se confrontam com as políticas em curso. No âmago do incipiente governo uruguaio, é possível prever semelhantes tensões e disputas.

Ainda que muitos desses novos governos gozassem de uma conjuntura internacional mais favorável, que permitiu a recuperação de um certo dinamismo econômico, a situação se transformou em maior capacidade de recomposição da crise de legitimidade do modelo social forjado pelo neoliberalismo, sem haver necessariamente sua ruptura. Isso significa que os benefícios do crescimento econômico não se refletiram em uma modificação substantiva da regressiva distribuição da renda e da riqueza inerente ao neoliberalismo; ao contrário, um balanço provisório das políticas econômicas adotadas por esses governos evidencia a persistência de uma orientação baseada na disciplina fiscal. Assim, a possibilidade de aprofundar o “círculo virtuoso do crescimento” aparece associada, nos discursos e políticas governamentais, à capacidade de atração de investimentos externos, particularmente ao aprofundamento do modelo exportador vinculado ao agronegócio e à exploração intensiva dos recursos naturais.

Nesse cenário, a experiência do chamado “projeto bolivariano”, na Venezuela, configurou-se como um caso particular. Nele ocorreram intensos processos de mo­bilização popular com a adoção de políticas públicas de clara orientação pós-neoliberal, marco de uma importante polarização político-social, que, após o referendum revogatório presidencial (agosto de 2004), resultou em uma consolidada maioria a favor das transformações em curso. Nesse sentido, a fracassada série de paralisações cívicas, golpe militar, lock out patronal e conspirações que assediaram o governo do presidente Hugo Chávez desde fins de 2001, bem como a guinada radical da organização e participação político-social dos setores subalternos, deram passagem a uma experiência de governo que se distingue claramente na região, por avançar em um caminho de transformação social. Assim, a apropriação pública da renda do petróleo, resultado das reformas implementadas na empresa petroleira estatal, permitiu o desenvolvimento de um conjunto de amplas políticas sociais. Também a negativa do governo venezuelano à iniciativa norte-americana da ALCA teve sua contraparte na energia dedicada a promover e construir as linhas de uma integração regional de caráter alternativo, convocada após a referência à Alternativa Bolivariana para as Américas. À diferença do restante das experiências latino-americanas, no caso venezuelano, o próprio governo aparece como um dos impulsionadores da mobilização e organização sociais, sem que deixe de se propor, em outros termos, a problemática da autonomia dos movimentos sociais com respeito ao Estado.

Surge o “neoliberalismo de guerra”

As tentativas de aprofundar as políticas neoliberais contribuíram para uma crescente militarização das relações sociais, em um processo que foi batizado como “neoliberalismo de guerra”. O termo não se refere apenas à política de confronto aberto e de intervenção militar esgrimida como prerrogativa internacional pelo presidente George W. Bush, particularmente após os atentados de 11 de setembro de 2001. No fundamental, diz respeito ao aprofundamento de um esquema social repressivo na América Latina, que abrange as reformas legais que cerceiam direitos e liberdades democráticas e outorgam a si mesmas maior poder e impunidade, ao acionar as forças policiais, o incremento da repressão estatal e paraestatal e a crescente intervenção das Forças Armadas nos conflitos sociais internos. Toda essa mobilização se orienta para a criminalização da pobreza e do protesto social, sob o retorno do estigma das “classes perigosas” que caracterizou tanto os regimes oligárquicos do princípio do século XX quanto as ditaduras “contrainsurgentes” da década de 1970. Justificada sob o pretendido combate ao narcotráfico, ao terrorismo ou à delinquência, a ideologia da “segurança” pretende assim a reconstituição da questionada “governabilidade neoliberal”. Uma de suas expressões mais trágicas foi o incremento da presença militar dos Estados Unidos ao longo de toda a região latino-americana e a intervenção multilateral no Haiti. No terreno das políticas domésticas, o caso colombiano figura como um dos principais laboratórios da implantação desses diagramas repressivos, particularmente sob a gestão do presidente Álvaro Uribe. Seu governo abre um processo que não só procura aprofundar o enfrentamento militar com a guerrilha – após a ruptura dos acordos de paz do período anterior – como também desdobrar uma política de “militarização social”, na tentativa de afirmar uma legitimidade autoritária, particularmente nos setores urbanos das classes médias.

A tentativa de relegitimação repressiva e autoritária, que parece caracterizar essa quarta onda neoliberal, é acompanhada, no plano econômico-comercial e diplomático, por uma ofensiva continuada que busca aprofundar a liberalização comercial e a proteção ao capital transnacional por intermédio da assinatura de tratados de livre-comércio (fundamentalmente com os Estados Unidos e a União Europeia), sob a justificativa de garantir uma nova fase de crescimento e “prosperidade econômica” para a região. A face do “neo­liberalismo de guerra” acompanha desse modo a promoção de uma reconfigu­ração radical e ainda mais regressiva da geografia política, social e econômica da América Latina, como resultado da acele­ração dos chamados “tratados de livre-comércio”, que têm na ALCA sua máxima expressão. Assim, no marco da renovada iniciativa que assumem nas negociações e acordos de liberalização comercial, os movimentos sociais e o ciclo de disputas que estes vêm protagonizando na América Latina ao longo dos últimos anos enfrentam, no questionamento ao processo de concentração de ingressos e riquezas em curso, um cenário que intensifica a tensão entre uma efetiva democratização social e a militarização da ordem pública.

Outra América

Este ensaio procurou dar conta, de maneira breve, dos rumos pelos quais transita e das características que adota o processo de disputa social e política aberto com a crise do modelo neoliberal forjado na década de 1990, bem como das características que parecem assinalar a configuração dos movimentos sociais contemporâneos. Como foi apontado, o processo não é homogêneo e se expressa diferentemente em cada uma das regiões e países. Nesse sentido, a evolução da região norte (México, América Central e Caribe) parece evidenciar uma notória consolidação dos processos de liberalização comercial, pedra angular dos planos estratégicos de Washington. Em contrapartida, a convulsionada situação política em grande parte da região andina é uma manifestação das fortes tensões sociais resultantes da tentativa de aprofundar os “novos” receituários neoliberais, que se traduzem na dificuldade de estabilização dos regimes que impulsionam essas políticas. A experiência da chamada “revolução bolivariana” na Venezuela, à qual haveria que somar o cenário aberto na Bolívia, após a queda do governo de Carlos Mesa e, em especial, com a eleição de Evo Morales para a presidência da República, em dezembro de 2005, configura-se das saídas possíveis mais significativas ao neoliberalismo. Surgem mudanças que apontam para uma resposta às dificuldades vividas pelos movimentos sociais, com a viragem de linha do movimento zapatista do México, que desmobiliza seus intentos locais de governo, para concentrar sua atuação em frentes políticas nacionais. Já os movimentos camponeses equatorianos vivem as repercussões negativas de sua participação na equipe de Lúcio Gutiérrez, dividindo-se e debilitando-se diante da mudança rápida de orientação desse governo. Por outro lado, na região sul, os movimentos sociais enfrentam o desafio de transcender a perda de legitimidade do neoliberalismo, buscando disputar o rumo dos processos em curso. Para isso, torna-se significativa a possibilidade de conquistar autonomia política, capacidade crítica e organizativa, por parte dos movimentos sociais. Nesse contexto, são as resistências, programas e horizontes emancipatórios que caracterizam o princípio do século XXI, os que alumbram os contornos dessa “outra América possível” que tanto reclamam os povos do continente.

Dados Estatísticos

Evolução do conflito social na América Latina e no Caribe (18 países)*

* Levantamento realizado com base na consulta de jornais nacionais para dezoito países latino-americanos: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Porto Rico, República Dominicana, Uruguai e Venezuela. Elaborado pelo Observatório Social da América Latina (OSAL-Clacso, Conselho Latino-americano de Ciências Sociais).

Bibliografia

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