A União de Nações Sul-Americanas (Unasul) foi formalizada como personalidade jurídica internacional pelo Tratado Constitutivo da Unasul aprovado na Reunião Extraordinária de Chefes de Estado e de Governo em Brasília, no dia 23 de maio de 2008. A entidade entrou em plena vigência em 11 de março de 2011 com a ratificação pelo legislativo uruguaio do Tratado, perfazendo-se assim a exigência mínima de ratificação por nove Estados subscritores. Antes já haviam ratificado Argentina, Peru, Chile, Venezuela, Equador, Guiana, Suriname e Bolívia. Após o Uruguai, ainda em 2011, ratificaram a Colômbia, o Brasil e o Paraguai, perfazendo os doze países signatários e que abarcam todos os Estados independentes do sub-continente sul-americano.
Contudo, o surgimento da Unasul é ao mesmo tempo a culminância dos diversos processos de integração existentes na região, como continuidade de um de longa duração que surgiu ainda com Simón Bolívar, mas é também uma ruptura com o passado histórico de subordinação às forças internacionais, em particular aos Estados Unidos da América, bem como com o passado recente de hegemonia neoliberal.
Origens da Unasul
Durante a década de 1990 a América do Sul viveu o período de hegemonia do neoliberalismo e seu programa de reformas estruturais. A preponderância de governos alinhados ao grande capital financeiro internacional e a essa doutrina econômica produziu mais uma década perdida, após os trágicos anos oitenta. A política econômica neoliberal possibilitou apenas um crescimento medíocre, com taxas médias entre 1990-2004 de 2,6%, muito inferiores aos 5,6% de 1971-1980 e apenas pouco superiores ao período de estrangulamento pela crise da dívida latino-americana, na década de 1980, com seus irrisórios 1,3%. A herança deixada foi o aprofundamento da vulnerabilidade externa, com o aumento da especialização em produtos primários e industriais de baixa intensidade tecnológica, bem como a financeirização da economia pelo modelo de câmbios sobrevalorizados, taxas de juros altas e atração de capital especulativo, com o crescimento dos endividamentos interno e externo, tornados motores da acumulação na região, ampliando a desindustrialização, a dependência e a periferização e produzindo sucessivos déficits comerciais. Essa financeirização se torna patente ao se analisar a participação do setor financeiro no PIB latino-americano entre 1980 e 2002, que passou de 12,9% para 16,5%, enquanto a participação da indústria caiu de 26,5% para 17,3%. Esse processo, somado às privatizações e desregulamentação do mercado de trabalho, gerou uma ampliação das desigualdades internas, da precarização laboral, da superexploração da força de trabalho e dos desequilíbrios das balanças de pagamento. Esse modelo neoliberal entrou em decadência – ainda que não tenha desaparecido e lute para reconquistar hegemonia – com a inversão cíclica das entradas de capitais a partir de 1998, que impediu a manutenção do financiamento das contas negativas das transações correntes. Entre os efeitos disso, em particular no Cone Sul, está a desarticulação do modelo de integração aberto regional que marcou todos os anos 1990. Este modelo, que se foi construindo por toda América Latina de forma clara no Mercosul, era a expressão externa da doutrina neoliberal. Isto se refletia na crença de que a integração tinha como único objetivo aprofundar a liberalização do comércio e dos investimentos, para que as forças de mercado totalmente libertadas operassem no sentido da convergência das diversas economias. As crises do real e do peso argentino, moedas dos Estados líderes desse processo, levou à retração do comércio intrarregional, numa tentativa de restabelecer os saldos comerciais com o resto do mundo e tentar superar a crise do balanço de pagamentos que atingiu a região entre 1999 e 2003.
A chegada ao poder de governos de esquerda, fortemente marcados por um nacionalismo popular integracionista e antiimperialista, e por governos de centro-esquerda de tipo terceira via abre um novo período na região, tanto para as políticas internas dos diversos Estados como para a integração. Marcando esta viragem está a vitória eleitoral de Hugo Chávez na Venezuela em 1998, que é seguida pela eleição de governos progressistas na Bolívia, Equador, Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile. Essas vitórias se conjugaram com um período de crescimento das economias periféricas, a partir de uma melhora dos termos de troca impulsionado pela demanda chinesa por produtos primários e de menor intensidade tecnológica.
Nessa conjuntura, iniciam-se sucessivas cúpulas de chefes de Estado e governo da América do Sul que dão uma nova dinâmica à integração regional no subcontinente, em particular com vistas à integração não só comercial e liberalizante, mas que avance no sentido da redução de assimetrias e na integração produtiva dos países. Como principais impulsionadores estavam o presidente venezuelano Hugo Chávez, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente argentino Néstor Kirchner. Em 2004, na III Cúpula Sul-Americana em Cuzco (Peru), firmou-se a Declaração de Cuzco, que decidiu pela conformação da Comunidade de Nações Sul-Americanas. Esta foi se desenvolvendo na Cúpula de Brasília de 2005 e na Cúpula de Cochabamba (Bolívia) em 2006, mas ganhou um impulso fundamental na Cúpula Energética Sul-Americana de Isla Margarita (Venezuela) em 2007, naqual ficou decidido dar o atual nome para o organismo e marcou-se a Cúpula de 2008 que deu, enfim, a forma final à Unasul, para o qual convergem o Mercosul e a Comunidade Andina de Nações (CAN), além do Chile, Guiana e Suriname. O novo organismo internacional congrega quase 400 milhões de pessoas, 17,8 milhões de quilômetros quadrados com um grande potencial em recursos naturais e um parque industrial já consolidado em países como a Argentina e o Brasil.
O organismo tem a sede permanente de sua Secretaria Geral em Quito, capital do Equador, mais precisamente em Ciudad Mitad del Mundo, e a sede de seu Parlamento em Cochabamba, Bolívia. Na Cúpula Extraordinária da Unasul, em dezembro de 2014, foi inaugurada a sede definitiva do organismo, tendo o edifício sido batizado de Néstor Krichner em homenagem ao ex-presidente argentino e primeiro secretário-geral da entidade, que ocupava o cargo quando de seu falecimento.
A Unasul possui uma presidência pró-tempore anual, exercida rotativamente pelos chefes de Estado dos países membros em ordem alfabética. Compõem a Unasul quatro órgãos: o Conselho de Chefas e Chefes de Estado e de Governo, instância máxima decisória, responsável pelo estabelecimento das linhas políticas, das prioridades e dos planos de ação, programas e projetos, que fz reuniões ordinárias anualmente; o Conselho de Ministras e Ministros de Relações Exteriores que, entre outras funções, prepara as propostas para as reuniões dos chefes de Estado e governo, tendo reuniões ordinárias semestrais e extraordinárias passíveis de serem convocadas pela presidência pró-tempore a pedido de metade dos Estados Membros; o Conselho de Delegadas e Delegados, composto por um representante de cada Estado Membro que se reúne bimestralmente e se encarrega de implementar as decisões do Conselho de Chefas e Chefes de Estados e de Governo, além das resoluções do Conselho de Ministras e Ministros de Relações Exteriores; e a Secretaria Geral da Unasul, órgão técnico e de apoio que, sob a condução do Secretário Geral, executa as atribuições mandatadas ao mesmo pelos outros órgãos. Por iniciativa da instância máxima da Unasul criam-se Conselhos Ministeriais e Setoriais temáticos que já somam doze, abarcando as diversas dimensões do organismo, desde Educação a Energia.
Apesar de sua breve vida, a Unasul já logrou grandes feitos, como a criação do Conselho Sul-Americano de Defesa que permitiu, sem a intromissão da OEA ou outros organismos internacionais, a resolução dos conflitos internos na Bolívia, entre a Colômbia, Venezuela e Equador e uma resposta ao golpe no Paraguai, em 2012. A recente criação da Escola Sul-Americana de Defesa (Esude), que formará os novos oficiais das Forças Armadas, é um marco na ruptura com a ingerência americana na região e assumirá um papel de antagonista à Escola das Américas do Departamento de Defesa estadunidense, numa perspectiva de construção de forças armadas progressistas e democráticas. Além disso, a Unasul desenvolve uma série de projetos infraestruturais importantes para a integração produtiva. Em 2011, a Unasul adquiriu o status de observador na Assembléia Geral da ONU.
Um dos desafios mais importantes para a Unasul é a redução da heterogeneidade e as assimetrias regionais. Como provou o fracasso da integração europeia, patente na atual crise, a mera ação das forças do mercado, sem o desenvolvimento de mecanismos diretos, solidários e planejados por meio do Estado, aprofunda as disparidades e compromete a integração. Entre estes mecanismos de transformação produtiva está implícita a necessidade de um novo arranjo financeiro que impulsione o desenvolvimento e a convergência do conjunto dos países.
A Nova Arquitetura Financeira Regional e o Banco do Sul
Com a crise econômica mundial iniciada entre 2007 e 2008, impõe-se na Unasul um dos debates mais importantes ocorridos em seu seio: a construção de uma Nova Arquitetura Financeira Regional. Essa discussão é ensejada pela necessidade de “diminuir a dependência da região dos fluxos financeiros internacionais, reduzir os custos, facilitar a obtenção de divisas para o comércio e financiar de maneira autônoma o desenvolvimento na região.” (Carcanholo, 2011, p.259).
Essa nova arquitetura se assentaria em três pilares (Carcanholo, 2011). O primeiro, um fundo de contingência para combater problemas de liquidez de curto prazo nos países da Unasul, sendo um escudo contra a instabilidade internacional e ataques especulativos às moedas da região, sem os critérios de condicionalidade recessivos e de ajuste estruturais neoliberais impostos pelo FMI. O segundo, a construção de um sistema de pagamentos regional que diminua a dependência em relação ao dólar e a outras moedas conversíveis nas transações dentro do espaço da Unasul. Caminha, assim, no mesmo sentido da proposta do Sucre dentro do espaço da ALBA, servindo como unidade de conta, para que após as compensações das compras e vendas entre os países apenas as diferenças sejam pagas em dólares.
O terceiro pilar e o alvo de maior polêmica foi a criação do Banco do Sul. O debate em torno à construção de um mecanismo de financiamento ao investimento regional de médio e longo prazo, por fora das condicionantes externas dos organismos internacionais tradicionais, como o Bando Mundial e o BID, foi viabilizado pela conjuntura favorável da primeira década do século XXI (Carcanholo, 2011). No entanto, encontra pela frente a resistência da corrente teórica hegemônica neoliberal, que baseia sua visão sobre o financiamento à produção na crença na capacidade ótima de alocação dos recursos do mercado e, por isso, preconiza que o financiamento ao desenvolvimento passaria pelo impulso ao sistema bancário privado existente e abertura para capitais internacionais com desregulamentação financeira, ampliando a poupança externa. Por sua vez, o Banco do Sul se insere numa lógica distinta, de promoção ativa e consciente, por meio de mecanismos estatais, do processo de integração regional e alocação de recursos para a convergência. Por isso, os setores neoliberais da região e de fora atacaram desde o início o projeto, insinuando que seria insustentável financeiramente no médio e longo prazo.
Mas o maior problema do Banco do Sul é sua incapacidade de avançar em suas funções. Apesar de ter sido lançado, em 2007, pelos presidentes de Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Paraguai, Uruguai e Venezuela e tendo um capital autorizado de 20 bilhões de dólares, o banco, sediado em Caracas (Venezuela), pouco avançou. Um dos elementos desestabilizadores de sua implementação é o Brasil, que nas discussões iniciais declarou que não comporia o mesmo, mas depois, ao decidir participar, entrou na disputa de concepções. Para o governo brasileiro, a capitalização não pode se dar a partir das reservas internacionais dos países, mas com uma captação por meio dos mercados de capitais e com critérios de rentabilidade para sua atuação, distorcendo o sentido inicial do mesmo (Carcanholo, 2011). Isto expressa a permanência de uma cultura subimperialista que contamina sua “burguesia, as oligarquias e parte da burocracia estatal brasileira [e] as fazem considerar o nosso financiamento à integração e a construção de instituições supra-nacionais ameaças à soberania do país. Se aceitam o princípio de um país/um voto na gestão do Banco do Sul, o esvaziam financeiramente para privilegiar o BNDES em suas operações regionais.” (Martins, 2012a).
Outros desafios
Outros problemas no caminho da consolidação da Unasul convergem para o mesmo vértice: a atuação estadunidense sobre a região de forma a desarticular a integração independente do subcontinente. Para isso, aposta na desestabilização de governos progressistas e conta com o apoio importante dos países da Aliança do Pacífico. Estes representam a continuidade sob nova forma do espírito da ALCA. Pois, ainda que tenha sido derrotada na Cúpula das Américas de 2005, em Mar del Plata (Argentina), sua “essência continua viva nos tratados de livre comércio que continuam vigentes, naqueles que estão sendo negociados no momento, assim como nos tratados bilaterais de investimentos” (Carcanholo, 2011). Como chama a atenção Sader (2014), o “Mercosul privilegia a integração regional, enquanto a Aliança para o Pacifico o faz com os Tratados de Livre Comercio bilaterais com os EUA”, por isso, o novo secretário geral da Unasul, Ernesto Zamper, terá que “encontrar formas de convivência e de colaboração entre eles.”
Um dos maiores desafios já feitos à Unasul, orquestrado pelos Estados Unidos em aliança com a elite paraguaia, foi o golpe de Estado que depôs em 2012 o então presidente Fernando Lugo. Além de criar um ambiente de terror para impedir a vitória eleitoral da Frente Guazu nas eleições que se avizinhavam e bloquear, assim, a constituição de um governo progressista com maioria parlamentar, o golpe objetivava mudar o tabuleiro político da região e converter o Paraguai numa barreira de contenção aos governos de esquerda e de centro-esquerda na região (Martins, 2012b).