A privatização de ramos da economia, como os de infraestrutura, de telecomunicações e mineração, principalmente por multinacionais estrangeiras, e a consequente desnacionalização das economias latino-americanas foram consequências da aplicação das políticas neoliberais e do receituário do Consenso de Washington, a partir da década de 1990. Essas políticas substituíram o modelo dependente e associado instituído na América Latina do pós-Segunda Guerra Mundial, sobretudo ao longo dos anos 1950.
O processo de desnacionalização foi instituído, inicialmente, combinando-se e, em certa medida, conflitando com a regulação institucional criada entre as décadas de 1930 e 1950. Aquela reservava ao Estado o direito de intervir diretamente na economia, controlando uma parte significativa do setor produtivo, sobretudo a infraestrutura básica (eletricidade, siderurgia, telefonia, petróleo, finanças, oleodutos, aeroportos, estradas etc). O ingresso de capitais estrangeiros foi admitido, em larga escala, ainda na década de 1950, para atuar, sozinho ou combinado com recursos nacionais, no segmento de bens de consumo duráveis – em particular, na indústria automobilística – e, em menor medida, no de bens de consumo leves – principalmente eletrodomésticos. O Estado reservara para sua administração os setores de infraestrutura, proporcionando as externalidades para o setor privado, ou seja, alavancando os investimentos, formando joint-ventures e aceitando, limitadamente, competências concorrentes em sua área de atuação.
Esse modelo permitiu o crescimento progressivo do peso do capital estrangeiro na economia latino-americana, pois esse capital explorava os segmentos de maior dinamismo econômico e lucratividade, beneficiando-se dos serviços subfaturados pelo Estado.
A partir da década de 1980, a crise desse modelo passou a pôr em risco o tripé em que se assentava: a articulação entre capital estrangeiro, Estado e setor privado nacional. Começaram, então, a ser adotados mecanismos de privatização, que reduziram radicalmente a participação do Estado no setor produtivo e implicaram a desnacionalização de empresas nacionais. Estas passaram a ser, parcial ou totalmente, adquiridas por similares estrangeiras, que decidiram investir também no setor de serviços. Os setores priorizados foram o financeiro e o de serviços públicos, como telecomunicações, energia, água, estradas e aeroportos. Elas passaram a focalizar, também, os recursos estratégicos, como petróleo e outras matérias-primas-chave.
Privatização nos três maiores
O processo privatizante, iniciado nos anos 80, ganhou grande impulso na década de 1990, quando foi estabelecido um novo período de ingresso de capitais estrangeiros na América Latina. Segundo dados do Banco Mundial, entre 1990 e 1998, as privatizações de empresas públicas na América Latina alcançaram US$ 154 bilhões. Uma parcela significativa dessa soma, entretanto, não gerou liquidez à região, pois assumiu a forma de liquidação de títulos da dívida externa.
O Brasil liderou os ingressos por privatização nesse período, sendo responsável por 43% do total, o México por 20,4% e a Argentina por 15,4%.
Dados do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), do Brasil, indicam que, entre 1991 e 2002, a soma alcançada com privatizações chegou a U$ 105,5 bilhões, e que o capital estrangeiro respondeu por 48,2% dos ingressos. Os Estados Unidos lideraram as aquisições estrangeiras, com 16% do volume total, seguidos de perto pela Espanha, que aportou 14,9% dos ingressos em privatizações. O capital externo orientou-se, principalmente, para os setores elétrico e de telecomunicações. Esses segmentos foram responsáveis por 62% dos recursos auferidos, que, somados aos 16% representados por siderurgia e mineração, alcançam 78% do total.
O pico de ingressos com as privatizações, no Brasil, ocorreu entre 1997 e 1998, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, quando foram negociados ativos por U$ 62 bilhões. As companhias priorizadas para a privatização foram a Embratel, a Telebras, a Companhia Vale do Rio Doce, a Usiminas, a Companhia Siderúrgica Nacional e a Light.
No caso mexicano, grande parte das privatizações ocorreu ainda na década de 1980, a partir do governo de Miguel de la Madrid. Em 1982, existiam no México 1.115 entidades paraestatais, mas, em 1986, o número havia caído para 697 e, em 1990, para 280. Nos governos de Carlos Salinas de Gortari e de Ernesto Zedillo, os eixos da privatização foram os bancos, a siderurgia, as redes de televisão, a telefonia e os serviços públicos, como estradas, portos e aeroportos. Os resultados das privatizações foram deletérios, conduzindo à internacionalização do setor bancário. Em 2002, 85% dos ativos financeiros mexicanos já estavam em mãos estrangeiras.
As notórias injunções políticas para as privatizações consagraram Carlos Slim Helú, empresário próximo a Carlos Salinas e Ernesto Zedillo, que passou a ser dono da maior fortuna da América Latina e considerado um dos homens mais ricos do mundo. Slim, a partir desse ano, passou a reivindicar também a privatização da PEMEX, que já terceirizava várias de suas atividades.
Na Argentina, a maior parte das privatizações ocorreu entre 1990 e 1994, durante o governo de Carlos Saúl Menem. Ele vendeu nada menos que cerca de quatrocentas empresas, transferindo para o controle estrangeiro a própria estatal petrolífera, a YPF, as ferrovias, a distribuição de gás, o abastecimento de água – setor em que o país foi pioneiro –, o saneamento básico, a geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, a Empresa Nacional de Telecomunicações (ENTEL), a Aerolíneas Argentinas, as firmas siderúrgicas e petroquímicas, a administração de sistemas portuários e os canais de rádio e TV, entre outros segmentos.
Na segunda metade da década de 1990, foram negociadas outras empresas argentinas, como a de correios e telégrafos e as principais estações aeroportuárias do país. Entre 1990 e 1999, o Estado arrecadou com as privatizações U$ 23,8 bilhões, dos quais U$ 18,4 bilhões foram pagos em efetivo e U$ 4,6 bilhões em swaps de títulos da dívida – graças ao Plano Brady. O volume de recursos recebido pelo governo argentino, entretanto, foi bem menor, se considerada a absorção de grande parte dos passivos das empresas privatizadas. Para citar alguns exemplos, no caso da YPF, o governo transferiu apenas U$ 2,8 bilhões de uma dívida de U$ 11,8 bilhões, enquanto, na privatização da ENTEL, transferiu U$ 380 milhões de uma dívida de U$ 1,76 bilhão. O capital estrangeiro respondeu por 67% dos ingressos com a privatização, liderado por Espanha (42%) e Estados Unidos (26%). A privatização afetou principalmente os setores petrolíferos (39%), de produção de energia elétrica (25%), de comunicações (13%) e de gás (12%).
A rentabilidade das empresas privatizadas, por outro lado, tornou-se muito superior à rentabilidade média da economia argentina, gerando lucros extraordinários. Entre 1994 e 1999, a rentabilidade das empresas privatizadas alcançou 12,4%, contra taxas que oscilaram entre 5,8% e 2,4% para o conjunto da economia. Em relação à rentabilidade sobre o patrimônio líquido, o resultado nas empresas privatizadas tornou-se ainda superior, alcançando 15,4%, no período, e 23%, no segmento de abastecimento de água e saneamento básico, com as tarifas de águas argentinas elevando-se, entre 1993 e 2001, em 103,1%, contra uma inflação acumulada de apenas 7,3%.
Controle das economias nacionais
A onda de privatizações, na década de 1990, também se generalizou nos demais países da região, replicando as mesmas tendências: elevação interna e redução externa dos preços dos serviços públicos privatizados. No Chile, a internacionalização das minas de cobre – cuja produção, em 1999, já estava 67% em mãos estrangeiras – provocou uma forte queda nos preços do metal. Na Bolívia, foi privatizada a produção de petróleo, gás e eletricidade, bem como as ferrovias, a companhia de aviação, as telecomunicações e o abastecimento de água. A assimetria entre os preços internos e os externos provocou, a partir de 1998, revoltas populares, cujo ápice foram os protestos que culminaram com a eleição do aimará Evo Morales para a presidência, em 2006.
Associada à privatização e à imposição do neoliberalismo na região, propagou-se a desnacionalização da economia latino-americana. O Brasil ilustra a profundidade desse processo. Entre 1991 e 1999, o capital estrangeiro aumentou sua participação relativa nas receitas das 350 empresas líderes do Brasil de 14,8% para 36,4%. O salto foi obtido graças à redução das receitas das empresas estatais de 44,6% para 24,3%, entre 1996 e 1999, e das empresas privadas nacionais de 44,1% para 39,3%. O desempenho das empresas internacionais deveu-se sobretudo à performance do setor de serviços e da indústria. No primeiro, o capital estrangeiro aumentou sua participação de 9,4% para 26,1% e, no segundo, de 36% para 53,5%.