Caracaço

Em 6 de fevereiro de 1989, catorze dias depois de haver tomado posse pela segunda vez da presidência da Venezuela, Carlos Andrés Pérez anunciou ao país a decisão de superar a crise econômica e fiscal que havia herdado de governos anteriores, mediante a aplicação de um programa de ajustes macroeconômicos e um plano de reestruturação da economia de orientação neoliberal. Era a primeira vez que um governo venezuelano aceitava de maneira explícita submeter-se às orientações do Fundo Monetário Internacional (FMI). O anúncio frustrou a população, que havia eleito CAP – como Pérez era chamado coloquialmente – com a ilusão de voltar aos dourados anos 1970, quando, durante seu primeiro governo, os elevados preços do barril de petróleo no mercado internacional produziram uma prosperidade sem precedentes no país. Durante a campanha eleitoral, Pérez jogou com essa imagem, dando a entender que sua eleição significaria uma volta à abundância. Além disso, manifestou um enfático “não ajoelhar-se” diante do FMI. Não obstante, em duas semanas, seu discurso e sua prática mudaram completamente.

Nos dias seguintes ao anúncio presidencial, começaram a aplicar-se as primeiras medidas do “pacotaço”. Na segunda-feira, 27 de fevereiro de 1985, entrou em vigência o aumento da passagem no transporte público, como resultado do ajuste de 100% no preço da gasolina que o governo aplicara no dia 26, procurando chegar, no mercado interno, aos preços internacionais. Foi o estopim. Desde cedo começaram protestos estudantis, logo compartilhados pelo povo. Viram-se atos de violência em Guarenas – cidade-dormitório de Caracas – motivados pelo aumento. Reações similares se deram pouco depois em áreas populares de Caracas, como Caricuao, em cruzamentos do transporte urbano, como o terminal do Novo Circo, e em outras zonas suburbanas da capital, como La Guaira e Catia La Mar. Também se iniciaram protestos de estudantes e de multidões em cidades como San Cristóbal, Barquisimeto, Mérida e Los Teques.

À medida que transcorria o dia e os fatos começavam a ser difundidos pela mídia, esse tipo de ação expandiu-se para outras cidades: Valencia, Maracaibo, Cumaná e Puerto Ordaz. Os setores populares desceram de suas casas nos morros (cerros) para tomar de assalto os centros e estabelecimentos comerciais. Saqueavam tais lugares para apoderar-se de produtos que, em sua maioria, eram-lhes vedados por seu custo inacessível ou por sua escassez nos meses anteriores. Ao mesmo tempo, multidões tomavam algumas vias centrais das cidades, construindo barricadas e queimando ônibus, veículos privados e pneus. Nas primeiras horas, até mesmo a Polícia Metropolitana da cidade de Caracas, que havia mais de um mês não recebia salário, participou de alguns saques, contribuindo para que fossem feitos ordenadamente. Os manifestantes gritavam palavras de ordem contra o alto custo de vida, o aumento do preço do transporte e o pacote de medidas econômicas. Entre os grafites se destacavam: “O povo tem fome” e “O povo está furioso”. Em algumas ocasiões, os saques eram precedidos pelo canto do hino nacional, e várias vezes se viram bandeiras hastea­das.

Ao cair a tarde, e sem que as autoridades nacionais dessem explicações necessárias ou tratassem de controlar a situação, a capital havia entrado em colapso. O metrô fechou as portas e a população teve de voltar a pé para casa. Nessa noite, os saques se generalizaram pelos quatro cantos de Caracas e de outras cidades. Também ocorreram festas nos bairros populares, churrascos com uísque e champanhe e outros produtos obtidos com os saques.

No dia 28 de fevereiro, os acontecimentos haviam transbordado e estava em curso a mais séria crise governamental e política da etapa da democracia pactua­da no Ponto Fixo. Vinte e quatro horas depois de iniciada a explosão social, nem o presidente nem seus ministros apareciam para tranquilizar e controlar o país. Porém, na madrugada, o governo havia ordenado que as Forças Armadas e a Guarda Nacional fossem para as ruas, com o objetivo de reprimir os distúrbios. Começava então o que o padre Arturo Sosa, da revista SIC, qualificou como a segunda fase do 27 de fevereiro: uma fase repressiva, na qual os militares decidiram controlar a situação nos bairros, fosse como fosse, produzindo toda sorte de excessos. Uma semana depois, os números oficiais registravam trezentas mortes – os não oficiais, pelo menos o dobro –, e as perdas materiais eram incalculáveis.

Na tarde de 28 de fevereiro, o presidente, em cadeia nacional pelos meios de comunicação, procedeu à suspensão das garantias constitucionais em todo o país, que só seriam restabelecidas, parcialmente, dez dias depois. Implementou-se o toque de recolher em Caracas e em outras cidades, que foi sendo retirado pouco a pouco nos dias seguintes. De suas casas, a população viu pela televisão Pérez fazer esse anúncio, e todo o seu gabinete aplaudir medidas extremas demais para um regime democrático. Iria ser difícil para o governo superar a repentina crise de popularidade.

Não obstante a magnitude do protesto, o presidente manteve inalterados o pacote econômico e o ministério. Em 7 de março, em cumprimento ao cronograma, decretou-se a liberação de preços. O pacote continuou, com escassas modificações, até 1992. E a multidão continuou nas ruas.

O Caracaço pode ser considerado como um momento de ruptura no processo histórico da sociedade venezuelana. Uma mudança de consciência da população, o primeiro sintoma alarmante do estado da democracia construída desde o Pacto de Ponto Fixo. Criaram-se entidades, como o Programa Venezuelano de Educação-Ação em Direitos Humanos (Provea), e novas organizações políticas se fizeram visíveis, num esforço para deslocar os partidos do Ponto Fixo, seriamente questionados por sua conduta. O sindicalismo afinado ao bipartidarismo seguiu o mesmo caminho de deslegitimação. Três anos depois, se dariam as insurreições militares que precipitaram a crise política do governo Pérez.