Agrária, Reforma

Para compreender melhor a reforma agrária, é preciso entendê-la como uma política territorial. Ela não envolve apenas os fatores econômico e social, de produção de alimentos e mercadorias e ressocialização de famílias sem terra. O que está em questão é a reprodução de um modo de vida, da organização da produção e do território regido pelo trabalho familiar do camponês ou da comunidade indígena. Tal condição só é possível se existir esse território camponês e indígena, disputado também pelo agronegócio. Com o desenvolvimento do agronegócio, intensifica-se a concentração de terras em poder de latifundiários e empresas multinacionais, que expropriam os camponeses e indígenas, e também se apropriam de florestas e campos naturais. Para resistir a esse processo de expropriação e exclusão, os camponeses e indígenas organizam-se em movimentos socioterritoriais, ou seja, movimentos sociais que têm o território como razão de existência e pressionam o Estado para a realização de um projeto de reforma agrária.

A reforma agrária é uma política pública, de competência do Estado, para promover o acesso à terra aos camponeses sem terra, por meio da descentralização da estrutura fundiária, composta predominantemente da soma das propriedades camponesas e indígenas e das propriedades capitalistas. Todavia, a efetivação de um projeto de reforma agrária não garante a total descentralização da estrutura fundiária, deixando aberta a possibilidade de reconcentração da terra. Simultaneamente, podem ocorrer processos de descentralização e concentração da estrutura fundiária, como se observa no exemplo do Brasil, onde, entre 1992 e 2003, as áreas das propriedades aumentaram em 89 milhões de hectares (tabela abaixo). Nesse período foram desapropriados pouco mais de 20 milhões de hectares, todavia houve um aumento de 52 milhões de hectares nos imóveis capitalistas com mais de 200 hectares. Os imóveis camponeses com menos de 200 hectares também tiveram um crescimento de 37 milhões de hectares.

Mudanças na estrutura fundiária brasileira (1992-2003)

1992

2003

Imóveis
(em ha)

Área (em milhões de ha)

%

Área (em milhões de ha)

%

Mais de 200
(capitalistas)

245

74

297

71

Menos de 200
(camponeses)

86

26

123

29

Total

331

100

420

100

Fonte: Sistema Nacional de Cadastro Rural
(Org. Bernardo Mançano Fernandes).

Analisando a tabela, pode-se deduzir que, se nesse período não tivesse sido realizada a reforma agrária, os imóveis capitalistas possivelmente teriam crescido 72 milhões de hectares e os imóveis camponeses, apenas 17 milhões de hectares. Observa-se que houve aumentos absolutos das propriedades capitalistas e das propriedades camponesas, todavia a participação relativa dos imóveis camponeses aumentou de 26% para 29%. Esse exemplo demonstra a concentração e descentralização simultâneas da estrutura fundiária. Esses processos aconteceram, principalmente, nos países em que a fronteira agrícola está aberta e onde novas áreas estão sendo incorporadas, principalmente terras públicas, como florestas e campos.

Diversos países da América Latina já realizaram projetos de reforma agrária que não foram suficientes para descentralizar a estrutura fundiária, tendo ocorrido reconcentração da terra. Os exemplos são o México, a Venezuela, o  Chile, o  Peru e a Bolívia. Nesses países, no começo do século XXI, a reforma agrária foi uma política reivindicada pelos movimentos indígenas e camponeses, exatamente porque os modelos de desenvolvimento da agropecuária não resolveram os problemas fundiários e territoriais. Depois da “revolução verde”, que intensificou o uso de insumos e a mecanização da agricultura e da pecuá­ria, surgiram estudos defendendo o fim da reforma agrária. O argumento principal era de que, com o uso de novas tecnologias, o problema da fome seria superado e as políticas de reforma agrária seriam dispensáveis. Esse discurso foi retomado, recentemente, com o advento dos organismos geneticamente modificados, também chamados de “alimentos transgênicos”.

As revoluções tecnológicas na agropecuária e as políticas agrícolas ampliaram o processo de produção de alimentos, associando-se com diversos setores industriais e com os mercados, criando, assim, o novo modelo de desenvolvimento denominado agronegócio. Embora esse modelo tenha aumentado extraordinariamente a produtividade agrícola e pecuária, também gerou problemas ambientais e desemprego estrutural, além de manter as desigualdades e a fome. Ainda na década de 1990, o Banco Mundial passou a apoiar, pela primeira vez, políticas de reforma agrária em alguns países como Guatemala, Brasil e Colômbia, mas sob uma nova modalidade: a reforma agrária de mercado. A ação do Banco Mundial modificou o conceito de reforma agrária, que até então era unicamente uma política de intervenção do Estado, que desapropriava as áreas declaradas úteis para esse fim.

O aumento da produtividade e/ou a inovação tecnológica não diminuem as desigualdades. O controle do território e a soberania alimentar são condições efetivas para minimizar a pobreza e diminuir a fome. Tais condições são construídas na democracia, com o fortalecimento das organizações populares e do Estado, com a criação de espaços políticos para participação e com a realização de políticas públicas. A reforma agrária como política de mercado tem aumentado os problemas sociais, pois em geral as piores terras são vendidas aos camponeses, que não conseguem produzir e tampouco pagar pela terra. A participação da agricultura camponesa é fundamental para o desenvolvimento dos países. As distribuições territorial e populacional são a base para a existência da democracia e para o fortalececimento da interação entre o campo e a cidade.