Geopolítica

Desde que os Estados Unidos despontaram como potência regional capaz de disputar o território das Américas com os europeus, sua história no mundo se orientou pelas linhas gerais marcadas em 1823 pelo presidente James Monroe. Sua comunicação ao Congresso afirmava que:

o continente americano, devido às condições da liberdade e independência que conquistou e mantém, não pode mais ser considerado como terreno de uma futura colonização por parte de nenhuma das potências europeias. […] Estamos obrigados a considerar todo intento de [Europa para] estender seu sistema a qualquer nação deste hemisfério, como perigo para nossa paz e segurança […] como a manifestação de uma disposição hostil aos Estados Unidos […]

Naquela época, a emergente República iniciava sua busca de recursos, mão de obra e territórios. Depois da brutal “conquista do Oeste”, que arrasou os povos nativos, passou-se à conquista do continente. As riquezas da América e do Caribe foram fundamentais para a conversão dos Estados Unidos em gigante mundial. Dos metais para a construção de ferrovias e maquinarias e dos cereais para sua crescente população trabalhadora foi transitando ao petróleo, à borracha, ao sisal, ao café, às frutas tropicais, à biodiversidade, à eletricidade e à água. Cada momento tecnológico indica as capacidades de apropriação e transformação da natureza e as necessidades introduzidas pelo desenvolvimento industrial nas sociedades modernas.

Se o ferro e o aço traçaram o esqueleto das comunicações por terra, a borracha possibilitou o uso de veículos mais leves, dotados de pneus. O crescente ritmo de trabalho agradeceu ao café e ao açúcar por manterem operários atentos e ágeis, enquanto a luz emergia dos fios de cobre. O estanho iniciava a conservação de alimentos e a sofisticação das máquinas, e os grandes volumes de produção faziam uso das fibras duras como o sisal para embalagem, antes do surgimento de fibras produzidas quimicamente, capazes de recriar, e até de multiplicar, algumas qualidades das naturais.

Em meados do século XX, os Estados Unidos estavam em pleno auge tecnológico. A Segunda Guerra Mundial lhes havia permitido acelerar seu ritmo de inovação e ampliar espetacularmente as escalas de produção e comercialização sem sofrer muito desgaste devido ao conflito. Sua participação no momento da vitória e nos projetos de reconstrução posteriores converteram-no em líder indiscutível do mundo capitalista, ainda que sem eliminar a concorrência oriunda do mundo socialista, liderado pela União Soviética. De todo modo, seu estilo produtivo e organizativo se impôs como paradigma. A América Latina seguia seus passos, como provedora de matérias-primas e no papel de receptadora da tecnologia obsoleta que suas indústrias renovadas expulsavam.

O conflito havia gerado uma situação de relativa prosperidade na América Latina. Seus bens primários tinham saída garantida (alimentos ou insumos para a indústria de guerra); os empresários locais conseguiram, com tecnologia média, colocar-se em um mercado que se descuidava circunstancialmente para privilegiar a produção bélica; as fontes de trabalho aumentaram nas cidades dando uma sensação de progresso, ainda que suportado por um estrangulamento do campo, que gerou crises em meados dos anos 1960.

Esse florescimento do pós-guerra levou a América Latina a subestimar o significado da concorrência, apesar de encontrar-se geograficamente na área de desdobramento do capitalismo norte-americano. Pensou-se na possibilidade de queimar etapas e alcançar um desenvolvimento equivalente, ou pelo menos próximo, ao do colosso do norte. Nada mais ilusório. Nem bem terminaram a Segunda Guerra Mundial e a Guerra da Coreia, os Estados Unidos voltaram a orientar seus interesses ao continente americano, buscando alternativas de investimento, mercados e o armazenamento confiável das matérias-primas que sua pujante indústria estava exigindo.

A condição insular da América e os laços econômicos criados até esse momento ofereciam a possibilidade de converter o continente em uma fortaleza que, protegida pelos oceanos, permitisse aos Estados Unidos criar condições inigualáveis de concorrência, garantindo sua relativa autossuficiência diante do resto do mundo.

De fato, já em 1947, firmou-se um compromisso continental estabelecendo que

um ataque armado por parte de qualquer Estado contra um Estado americano será considerado como um ataque contra todos os Estados americanos. Cada uma das partes contratantes se compromete a ajudar a fazer frente ao ataque.

Firmado por 22 países americanos, o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) buscava adiantar-se à Organização das Nações Unidas (ONU) nos assuntos relativos ao continente. Os Estados Unidos asseguravam dessa maneira que sua posição prevalecesse sobre a dos concorrentes.

Estava em jogo o princípio pan-americano de Monroe em dois sentidos: tentando excluir a concorrência interna para construir uma situação de invulnerabilidade relativa e, simultaneamente, consolidando a posição de superioridade em relação ao exterior, atuando como bloco perante o resto do mundo.

A América Latina na encruzilhada

O continente, no entanto, era sumamente heterogêneo. Ainda que em alguns casos o entendimento de interesses com os Estados Unidos parecesse ter condições de sustentar-se, em muitos outros havia um espírito nacionalista descolonizador, que se mantinha desde as lutas de independência e se reforçava com as ameaças imperialistas vindas do norte. Na Guatemala, Jacobo Arbénz Guzmán assumiu a presidência em 1951 e iniciou uma série de reformas nacionalistas que afetavam interesses de algumas das primeiras transnacionais do mundo, como a United Fruit Company, paradigma das relações entre os Estados Unidos e a América Latina nessa época. Arbénz tentou romper o monopólio do transporte da empresa criando um sistema estatal e expropriou parte de suas terras depois de aprovar leis agrárias que visavam a sua redistribuição. Planejou também criar uma indústria elétrica nacional para diminuir custos e a dependência e maximizar as possibilidades de desenvolvimento do país. A aplicação dessas políticas foi logo interrompida por um golpe de Estado organizado pela Central Intelligence Agency (CIA), prática que se repetiria desde então, sistematicamente, na história da América Latina.

A queda de Arbénz ocorreu em 1954, o mesmo ano em que o presidente Getúlio Vargas, do Brasil, depois de recuperar o petróleo e a eletricidade, de defender os preços de produtos primários de exportação e dos salários, pressionado pelos mesmos interesses externos, decidiu suicidar-se diante da iminência de um golpe militar.

O continente se encontrava em um momento de definição. A guerra havia estimulado o desenvolvimento econômico pelo menos nas atividades relacionadas com a satisfação de mercados internos e de substituição de manufaturas para indústrias básicas que trabalhavam a plena capacidade. A ilusão de um desenvolvimento autônomo, ou pelo menos com uma margem de manobra e possibilidades maiores que as conhecidas antes do conflito mundial, acendia paixões nacionalistas. Seguindo a teoria de Rostow, muitos afirmavam que o desenvolvimento era uma questão de etapas sequenciais, em que os países da América Latina estavam mais atrasados por terem chegado ao capitalismo um pouco mais tarde que a Europa e os Estados Unidos. A versão latino-americana dessa teoria, formulada pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), estimava que o caminho do desenvolvimento consistia em avançar ocupando os nichos que os Estados Unidos – e o mundo desenvolvido – deixavam para trás. Seria possível passar, em ritmo acelerado e saltando etapas, da produção de bens básicos para a de insumos intermediários e depois para a de meios de produção.

Vitoriosos na guerra mundial, os Estados Unidos se preparavam para uma época de bonança e expansão de seu domínio. A ampliação da escala de negócios durante os anos de conflito serviu para consolidar na indústria o modelo fordista, que havia alcançado uma produção em massa de mercadorias para o grande público, com uma tecnologia que se converteu em paradigma do desenvolvimento. A linha de montagem, já posta em prática nas fábricas de automóveis de Henry Ford, na década de 1910, difundiu-se rapidamente. A modalidade industrial de enormes coletivos de operários, alimentando um sistema de produção que lhes impunha tempos precisos e tarefas repetitivas que favoreciam a intensificação da jornada de trabalho, e a introdução dos eletrodomésticos e de novas dinâmicas na vida cotidiana para limitar o tempo empregado em atividades consideradas não produtivas – ainda que fossem reprodutivas da força de trabalho – foram adotadas em todo o mundo ocidental. As massas eram incorporadas a novas disciplinas de vida e de trabalho, porém também ao consumo de alguns bens industriais, obviamente, com uma diferença notável entre aquelas que habitavam as regiões desenvolvidas e as do resto do planeta. No caso da América Latina, as bondades da generalização do fordismo foram percebidas fundamentalmente pelas classes médias que cresceram ao amparo do aumento da exploração do setor industrial e da precarização do campo, enquanto os operários eram submetidos a rígidas rotinas de trabalho nas fábricas ou a uma crescente pauperização no meio rural.

Por outro lado, o avanço do socialismo, fortalecido, paradoxalmente, também pela Segunda Guerra Mundial, era visto como horizonte possível pelas forças de esquerda e pelos movimentos populares, que lutavam por uma reforma agrária, pela nacionalização-estatização dos bens estratégicos e pela imposição de limites ao capital estrangeiro, já naquela época com forte presença em atividades extrativistas básicas e em todos os setores industriais importantes.

O antecedente da expropriação do petróleo no México, em 1938, marcou uma rota de trânsito. As forças “anti-imperialistas”, algumas crescidas na ilusão desenvolvimentista e outras inspiradas nos êxitos do socialismo naquele momento, deram lugar a governos nacionalistas em vários países latino-americanos e iniciaram uma nova gesta independentista no terreno da salvaguarda de seus recursos e da proteção aos processos internos de industrialização.

Nacionalismo e anti-imperialismo, embora confrontados em muitos pontos, caminhavam em uma direção que os contrapunha às políticas dos Estados Unidos e os convertia em ameaças aos interesses norte-americanos.

A América Latina encontrava-se, naquele momento, tal como nos dias atuais, no início do século XXI, em uma encruzilhada.

Redefinições estratégicas da Guerra Fria

Desde os anos 1940, as potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial dividiram-se em uma rearticulação de forças internacional, pressagiando um novo conflito que questionava o próprio sistema capitalista. O socialismo real oferecia, com todas as suas limitações, uma alternativa de organização social que punha em dúvida (e em risco) a legitimidade do lucro como princípio dinâmico de uma sociedade que produzia simultaneamente riqueza e miséria.

Em 1947, o Congresso dos Estados Unidos emitiu o National Security Act, por meio do qual o Departamento de Defesa foi ungido como entidade suprema de política militar e se criou a CIA para fazer frente a uma guerra disfarçada, a chamada Guerra Fria, em que alguns dos principais executores eram espiões.

Foi nesse marco que se iniciou um novo estilo de intervenções na América Latina, no qual a Guatemala (1954) foi considerada exemplar. Os Estados Unidos, colocando-se como árbitro e polícia, atribuíram-se a “missão” de garantir universalmente a propriedade privada e o estilo de desenvolvimento que lhes era próprio. A batalha contra o comunismo, então, foi a pedra de toque de uma estratégia de dominação mundial que foi chamada de “segurança nacional”.

Mas ainda que no plano internacional a simples existência do bloco socialista fosse o elemento visível que justificava a reorganização completa do Estado norte-americano rumo ao confronto, nas Américas, Cuba, essa ilha pequenina a apenas 145 km das costas dos Estados Unidos, era a iminência de um perigo real e próximo, de acordo com o que se entendia em um sentido amplo, monroeano, como seu próprio território.

Nesse momento, a corrente de pensamento chamada nacional-desenvolvimentista, elaborada pela CEPAL e forjada ao calor do crescimento industrial que acompanhou a guerra, propunha uma via de desenvolvimento, fortalecendo os processos capitalistas nacionais. Já começava a surgir, porém, a visão marxista das teorias da dependência, desenvolvida por Andre Gunder Frank, Ruy Mauro Marini, Bambirra, Dos Santos e outros, cujos antecessores como Ramiro Guerra, José Carlos Mariátegui e Sergio Bagú, dentre os mais destacados, haviam lançado as bases do latino-americanismo. Todos eles se empenharam em demonstrar que o desenvolvimento do capitalismo implicava a “colonialidade” e o subdesenvolvimento de uma grande parte do planeta – que incluía a América Latina e o Caribe –, e que, portanto, as alternativas no capitalismo se limitavam a jogos de força, mas não a transformações substanciais. Cuba era considerada a melhor imagem de uma nova busca descolonizadora pela independência e autodeterminação, que, em um contexto delimitado pela disputa capitalismo-socialismo, empreendia caminho próprio rumo à construção de uma sociedade sem exploração.

As lutas de liberação nacional, influenciadas pelo êxito da Revolução Cubana, sucederam-se em toda a região, enquanto os Estados Unidos tentavam afiançar sua posição de força no continente, tecendo compromissos com os outros governos latino-americanos.

Respondendo a esse desafio tão próximo, definiu-se rapidamente uma política continental que se anunciava como uma Aliança para o Progresso. Um plano de dez anos entre os “governos livres” do continente – entre os quais evidentemente não estava o de Cuba –, que trabalharia para “eliminar a tirania no hemisfério”. Em 13 de março de 1961, o presidente Kennedy, em uma comunicação histórica ao Congresso de seu país e aos membros do corpo diplomático da América Latina, dizia: “propomos completar a revolução das Américas”, e oferecia apoio aos governos da área para melhorar as condições de vida da população e controlar qualquer tentativa de reproduzir a experiência cubana, a qual, da sua perspectiva, não era revolucionária e desenvolvimentista, senão totalitária e comunista.

A Aliança marcou um feito nas relações continentais. Focada na educação, mobilizou os recém-criados “Corpos de Paz”, formados por voluntários habilitados militarmente, que em muitos casos eram reservistas ou veteranos do Exército dos Estados Unidos, para que apoiassem com treinamento programas técnicos ou assessorassem universidades e institutos de investigação da América Latina. Isso pôs em evidência a concepção contrainsurgente que teve o plano, questão que se reforça ao revisar o destino dos recursos canalizados por meio da USAID (U.S. Agency for International Development), agência criada, ex professo, para garantir materialmente a Aliança. O financiamento estava repartido em ajuda ao desenvolvimento e assistência militar, porém os maiores montantes se outorgaram nos momentos dos golpes de Estado ou nas ditaduras.

No plano mundial, a retirada das tropas norte-americanas do Vietnã, em 1973, prenúncio do triunfo vietcongue e norte-vietnamita de 1975, pesou fortemente sobre uma reorientação de interesses ao controle e à segurança interna do continente americano, por meio do acréscimo dos desdobramentos militar, policial e de inteligência previstos na Aliança para o Progresso e mediante a ampliação das relações econômicas.

Presença da USAID

Assim, a América do Sul, cenário de lutas guerrilheiras e de insurreições populares ao longo dos anos 1960-1980, foi a principal área de atração dos recursos da USAID nesse período. O Brasil foi o país mais favorecido em assistência militar, com um montante de US$ 1,06 bilhão entre 1961 e 1968, e porcentagens acima de 33% entre 1964, ano do golpe militar, e 1968, ano em que a ditadura de Costa e Silva emitiu o tristemente célebre Ato Institucional n o 5 (AI-5), que tornou ainda mais repressor o regime. A vigência do AI-5 estendeu-se até 1978, acompanhada pelo apoio financeiro da USAID, que entre 1974 e 1976 outorgou outros US$ 477 milhões em ajuda militar. A isso deve-se agregar um financiamento de US$ 10,35 bilhões entre 1961 e 1974 para sustentar um modelo econômico, imposto pelas ditaduras, permissivo aos investimentos norte-americanos.

Os destinos e momentos de interesse em cada um ressaltam ao se observar os montantes outorgados e a seleção de países majoritariamente receptores (ver quadros).

É possível constatar que as ditaduras da Argentina receberam, sobretudo, ajuda militar, enquanto Colômbia, Chile, Bolívia, Equador e Peru foram favorecidos com os dois tipos de assistência durante os anos de insurgência guerrilheira e de golpes militares.

Depois desse período, o foco da ajuda transferiu-se para a América Central, onde um país tão pequeno como El Salvador recebeu US$ 1,46 bilhão em assistência militar e US$ 4,04 bilhão em auxílio econômico entre 1982 e 1990, anos fundamentais da luta da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) e mais amplamente dos processos revolucionários na região. A Honduras chegaram US$ 1,89 bilhão em ajuda econômica e US$ 675 milhões em assistência militar, montantes que cobriram também o apoio às atividades dos “contras” nicaraguenses. Na realidade, nesses anos, toda a área centro-americana foi foco de atenção e os recursos se pulverizaram entre vários dos sete países que a compunham, com El Salvador como enclave principal.

O ciclo revolucionário foi assim seguido ou acompanhado por um ciclo repressivo que impôs presidentes, sustentou ditaduras militares (e algumas civis) e terminou por derrotar as forças libertárias, usando os recursos da USAID e as habilidades da CIA. Sua mais acabada expressão foi o Plano Condor (também conhecido como Operação Condor), que inaugurou um novo sistema de inteligência multinacional, baseado na tortura e no desaparecimento dos militantes presos, completamente inescrupuloso e violador dos direitos humanos.

Ainda que efetivamente haja uma lógica regional nas políticas da USAID, as dinâmicas locais marcaram as oscilações ou “picos” da política geral. Algumas das intervenções que coincidiram com os picos mais altos na provisão de recursos foram as do quadro a seguir.

Concorrência mundial e hegemonia

Se o Vietnã representou uma derrota política e militar aos poderes concentrados nos Estados Unidos, as ameaças de renegociação internacional dos preços dos hidrocarbonetos, avançadas pela Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP) nos anos 1970, perfilavam-se como uma ameaça econômica que punha em risco o sistema de obtenção de lucros em seu conjunto, marcando um dos momentos de concorrência mais destacados do século XX.

A busca de sistemas produtivos e de comunicação poupadores de energia levou ao desenvolvimento de tecnologias de miniaturização que começaram por reduzir o peso dos aparatos de produção e transporte. Um novo campo de concorrência desencadeava uma luta encarniçada, permitia uma redefinição de hierarquias no interior do mundo capitalista e dava oportunidade aos países europeus e asiáticos de despontar com suas propostas de aceleração. A liderança do sistema capitalista estava em disputa.

Os Estados Unidos, maiores consumidores de hidrocarbonetos no mundo (cerca de 25% do petróleo mundial), foram diretamente afetados pela iniciativa da OPEP. Foi preciso dinamizar seu aparato de geração de tecnologia para enfrentar a concorrência. Evidentemente, também resultou indispensável disciplinar o mercado petroleiro com estratégias de debilitação da OPEP que tentaram – e em grande medida conseguiram – dividir o bloco árabe. Ao mesmo tempo, construiu-se um contrapeso com a abertura de todas as jazidas petrolíferas do continente americano, o que, adicionalmente, contribuiu para manter o campo energético sob controle dos Estados Unidos. As desregulamentações e as políticas de ajuste promotoras da privatização dos recursos naturais essenciais converteram-se em ferramenta privilegiada da reorganização capitalista em curso. O mesmo aconteceu com a dívida externa.

Simultaneamente, a necessidade de fazer frente aos coletivos operários dos grandes sindicatos estimulou o desenvolvimento de sistemas de codificação. Eles permitiam elevar os níveis de automatização, sobretudo nos postos de trabalho, funcionavam como engrenagem entre duas fases sucessivas ou constituíam um enlace ou nó no processo de trabalho, que se efetuava de acordo com as linhas de montagem do fordismo. Desse modo se conseguia recuperar o controle de conjunto do processo de trabalho e se enfraquecia a capacidade de luta dos trabalhadores.

A microeletrônica, a informática e sua aplicação no âmbito das comunicações, desenvolvidas no contexto da Guerra Fria pelos centros de produção tecnológica do Exército dos Estados Unidos, potencializaram os processos produtivos em escala planetária. Com isso, foram capazes de desabilitar as estruturas de organização operária, construídas na euforia posterior à Segunda Guerra Mundial, e de incorporar todas as forças produtivas ao mercado de trabalho. Barateamento do custo salarial e derrame dos processos produtivos na sociedade toda, descontadas as fronteiras fabris, foram resultados importantes dessa renovação tecnológica. Novo trabalho em domicílio, subcontratação, indústrias maquiladoras (off shore), fragmentação social e isolamento caracterizaram as sociedades dos anos 1980, os mais vitoriosos do neoliberalismo.

A luta pela liderança mundial centrou-se na criação de novas tecnologias e na capacidade para ter acesso a territórios com os recursos que, por sua essencialidade nos processos de produção, marcavam a diferença na concorrência.

Para os Estados Unidos, sem abandonar seu interesse no resto do mundo (nessa época foi muito importante sua penetração no mercado europeu e seu desdobramento produtivo ao Sudeste asiático), a consolidação de sua posição continental foi a base de sustentação, tanto de sua reconversão produtiva como do afiançamento de sua superioridade, relativa no terreno da autossuficiência e da disponibilidade dos recursos naturais críticos.

América Latina, alvo geopolítico

Uma vez liquidada a resistência no continente e com a introdução das novas tecnologias, a relação dos Estados Unidos com a América Latina se modificou. A derrota política das lutas revolucionárias deixou pouca margem ao protesto e as imagens das torturas insanas no Brasil, do terror pinochetista no Chile, dos 30 mil desaparecidos na Argentina, dos cárceres para tupamaros no Uruguai ou da repressão a céu aberto no Paraguai, aliados ao desemprego que já crescia com a reconversão tecnológica, eram as melhores formas de dissuasão para qualquer pretensão salarial ou democrática.

Já nesse momento, em vez de fábricas “chave na mão” que produziam para o mercado interno, buscava-se a implantação somente de algumas fases do processo produtivo, atendendo às características vantajosas de cada lugar e sem restrições de mercado. O importante era o barateamento dos custos para enfrentar a concorrência internacional. Os custos salariais na América Latina eram comparativamente menores, em torno de dez a um, em relação aos dos Estados Unidos, e a independência geográfica ou autonomização das esferas da produção e do consumo permitia até deprimi-los mais, sem comprometer a realização dos produtos. O uso da força de trabalho barata (não só da América Latina como também do Sudeste asiático) deslocou recursos destinados à reprodução dos trabalhadores para dedicá-los à investigação científica e tecnológica e à reconversão do aparato industrial. Em cálculos superficiais, o traslado desse tipo de fábrica (indústria leve) ao norte do México permitiu às empresas reter um montante adicional de US$ 1,77 bilhão, em 1980, só como produto da diferença salarial, valor que em 1990 chegou a US$ 10,79 bilhões. Isso no México, país com o qual os Estados Unidos têm uma fronteira de aproximadamente 3.152 km; não obstante, esses tipos de parque proliferaram em todos os países com baixos salários do mundo.

A reconversão tecnológica geral, além de propiciar uma nova geografia do trabalho, promove uma reorientação de interesses até novos recursos. As selvas perdem sua intimidade com a sequência em escala industrial de códigos genéticos e, de acordo com o antropólogo Arturo Escobar, a natureza é transformada em biodiversidade, isto é, em matéria-prima desintegrável. A medida alcançada pelo processo de acumulação e a escassez relativa de hidrocarbonetos reforçam o interesse por controlar as jazidas, a produção, a venda e o uso dos energéticos. Aos metais que materializam o esqueleto geral do processo produtivo, somam-se novos que dão leveza aos materiais, fazem-nos mais resistentes, mais dúcteis e mais adequados para as viagens espaciais, para o transporte planetário, para penetrar nos ambientes subterrâneos, para suportar as técnicas modernas de comunicação e para economizar energia em seu funcionamento. A água doce, indispensável aos seres vivos, começa a escassear pelo desmatamento, pelos detritos industriais e pelo desperdício e se converte em elemento central de disputa, que permite pensar em uma política de controle da população e da dinâmica do mundo inteiro.

Desencadeia-se, assim, uma corrida pelo monopólio de territórios, pois as matérias-primas estratégicas são recursos naturais geograficamente situados. A América Latina ressurge então como alvo geopolítico.

Interesses vitais dos Estados Unidos

Desde a concepção de James Monroe até a de George W. Bush, houve a trajetória de um expansionismo limitado ao continente americano para um planetário. Primeiro, os Estados Unidos avançaram para oeste e ocuparam territórios dos povoadores indígenas, que terminaram encerrados em reservas que mutilavam suas perspectivas de vida, suas cosmovisões e sua dignidade. Depois do oeste, seguiram para o sul e, sob mecanismos diversos, despojaram o México da metade de seu território. No Texas, onde se localizam algumas das melhores jazidas petroleiras, primeiro se colonizou e logo se promoveu uma separação do México, em 1836, uma espécie de independência temporária que preparou sua incorporação à União Americana, em 1845. Com respeito à Alta Califórnia, Novo México e parte dos estados de Tamaulipas, Coahuila, Chihuahua e Sonora (que se tornariam os estados norte-americanos do Arizona, Nevada, Utah, e parte do Colorado e do Wyoming), aos quais se somou o Texas, foi firmado um tratado de compra e venda, aproveitando a presença do Exército de ocupação norte-americano na Cidade do México, depois da invasão de 1847. O governo de Santa Anna cedeu aos Estados Unidos, no marco da invasão, uma área de 2,3 milhões de km², mais da metade do território mexicano original.

Essa vocação expansionista, própria do capitalismo, porém protagonizada exemplarmente pelos Estados Unidos, tem como motivação a busca incessante por uma melhor posição no jogo de forças, na concorrência e na disputa hegemônica. Não existe um mecanismo único de monopólio ou controle territorial. As possibilidades são múltiplas e vão desde a ocupação física aberta até as sutis imposições de regras, mediante planos econômicos como a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).

No que os Estados Unidos definiram como seus interesses vitais, encontra-se a essência de sua concepção de mundo, um mundo de concorrência perpétua, onde a sobrevivência só pode ser assegurada construindo condições de força ou superioridade relativa, colocando-se acima dos demais. Essa convicção, e sua vocação de vanguarda, que em algumas ocasiões (no governo George W. Bush, por exemplo) foi assumida como responsabilidade civilizatória ou legado divino, levou o Estado norte-americano a formular estratégias de longo alcance, com horizontes concretos de 25 e 50 anos, mas com uma visão de futuro quase atemporal.

Desde a fundação da República, os Estados Unidos – como nação – perseguiram vários objetivos fundamentais permanentes: a manutenção da soberania; a liberdade política e sua independência com seus valores, instituições e território intactos; a proteção de vidas e segurança pessoal dos norte-americanos dentro e fora do território e a procura do bem-estar para a nação e seu povo.

Alcançar estes objetivos […] requer fomentar um ambiente internacional em que as regiões decisivas (críticas) tenham estabilidade […] e estejam livres do domínio de poderes hostis […] (US Department of Defense National security strategy for a new century, 1998).

Ainda que a constituição do Estado-nação, em geral, responda ao propósito de defender coletivos humanos assentados em territórios específicos e com sentidos culturais compartilhados, no caso dos Estados Unidos a salvaguarda de sua segurança “nacional” supõe sua ação ilimitada em todo o planeta.

A formulação mais eloquente dessa estratégia se encontra no Departamento de Defesa, que define quatro eixos prioritários de atenção para cumprir essa alta missão:

• prevenir a emergência de hegemonias ou coalizões regionais hostis;

• assegurar o acesso incondicional aos mercados decisivos, aos armazenamentos de energia e aos recursos estratégicos;

• dissuadir e, se necessário, derrotar qualquer agressão contra os Estados Unidos ou seus aliados; e

• garantir a liberdade dos mares, vias de tráfego aéreo e espacial e a segurança das linhas vitais de comunicação.

Esses quatro propósitos gerais se aplicam tanto às atividades econômicas como às militares, sem deixar de abordar o âmbito cultural ou de construção de imaginários que lhes sirva de suporte.

De que maneira a América se relaciona com essas linhas estratégicas?

A América é um continente-ilha, e isso lhe outorga características especiais. Rodeada por mares, tem as condições de uma fortaleza protegida por um fosso natural. Sua geografia alongada, abarcando de polo a polo, localiza-a como fronteira entre dois oceanos e seus canais de passagem adquirem com isso uma importância maior, já que a rota melhor entre a Europa e “as Índias” continua sendo, como se pensava no século XV, a que melhor permite a comunicação pelos oceanos. Isso, por si só, coloca a América em posição geopolítica privilegiada. E, além disso, a América Latina tem um potencial de autossuficiência que, bem gerido, pode outorgar aos Estados Unidos – ou ao continente em geral – a possibilidade de lidar com uma situação de invulnerabilidade relativa que, dadas as circunstâncias atuais, não tem nenhum outro país ou potência no mundo.

Serão examinadas, a seguir, as riquezas estratégicas da América Latina.

Cinturão da América

Na exuberante região tropical da América encontra-se uma extensa floresta, desde as margens do impetuoso rio Amazonas até as terras maias e zapotecas do sudeste mexicano. Os biólogos lhe atribuem a origem de múltiplas e variadas espécies, entre as quais a nauyaca (cascavel), o iguana, os crocodilos e outras centenas de répteis; a anta, o puma, a onça e mais 369 mamíferos aquáticos ou terrestres. Também existem muitas espécies de aves não migratórias como o quetzal, e migratórias que vêm do Canadá ou da Cordilheira dos Andes, para reproduzir-se nos cálidos rincões do trópico. Entre os anfíbios, os taxionomistas identificaram 326, originários da região de Puebla – Panamá. As rãs dessa zona, junto com as da bacia amazônica, são altamente valorizadas pelos laboratórios farmacêuticos, assim como milhares de outras espécies desse continente natural do coiote, do tepezcuintle (paca), do ajolote (anfíbio das espécies das salamandras) e de muitas variedades de tartaruga, como se pode observar no quadro a seguir.

Venezuela, Bolívia e Equador, que também se encontram nessa faixa, têm entre 15 e 20 mil plantas raras cada um (World Resources, 1992-1993) e grande abundância e variedade de animais.

Ao longo de toda a região latino-americana se repartem espécies muito diversas pelas diferenças de clima e outras condições geográficas, mas também pela perseverança de culturas que as desenvolveram em sua interação com elas (ver tabela a seguir). Sabe-se que os seres humanos propiciaram a evolução da natureza junto com a sua própria.

A maioria das culturas que existiram no mundo manteve uma relação intersubjetiva com a natureza, o que permitiu seu crescimento e sua multiplicação. Já o capitalismo propôs outro tipo de relação, buscando dominá-la e reproduzi-la artificialmente. Isso levou, sobretudo na última metade do século XX, quando se contou com uma capacidade tecnológica muito mais poderosa, a um processo de apequenamento e extinção de outras formas de vida, convertendo-as em matérias-primas para a apropriação.

Recursos minerais

Além das enormes riquezas biológicas, muitas regiões do continente se encontram sulcadas por múltiplos metais. Alguns, como o ouro e a prata, levaram os europeus ao delírio e foram motivo de grandes catástrofes humanas; outros são menos vistosos, como o cobre, o ferro, o estanho, o tungstênio etc. Os relatos de Potosí, nos Andes, ou das minas da região do atual México são de uma suntuosidade que testemunha a abundância metálica dos solos dessa grande ilha continental.

Embora o ouro e a prata não tenham perdido importância, a necessidade crescente do uso de metais e metaloides nos processos produtivos e de comunicação, na geração de máquinas e equipamentos novos e mais eficientes, desloca a atenção para os outros, muito mais vinculados às definições da concorrência mundial.

A América, nesse terreno, tem um grau razoável de autossuficiência, sendo os maiores contribuintes o Canadá, o Brasil, o Chile, o México, a Colômbia e os Estados Unidos, ainda que com um relativo crescimento da Bolívia e da Argentina, em alguns metais específicos. A virtude é muito mais a variedade que a quantidade de metais importantes, ainda que nos casos do nióbio (100%), do cromo (61%), do cobalto (25%) e do níquel (32%), que são usados na tecnologia de ponta, se contem com reservas que outorgam uma posição de superioridade na concorrência internacional. A América apresenta uma vantagem adicional, a facilidade de acesso, que contrasta com as complicações de outras regiões de abundantes metais como a Ásia Central, a China, a Rússia e vários países africanos, nos quais se combinam guerras e políticas nacionalistas ou de rechaço à exploração dos recursos do subsolo por parte de empresas estrangeiras.

Se os minerais metálicos não permitem mais que manter uma estabilidade suficiente, ainda que não abundante, os minerais orgânicos proporcionam uma situação de maior conforto. As jazidas de hidrocarbonetos nutrem a insaciável economia norte-americana e lhe permitem enfrentar o mundo em condições de superioridade.

Desde que a OPEP se organizou para defender os preços de seus recursos, a América Latina começou a ter um papel central como contrapeso e abastecedora dos Estados Unidos. Atualmente, ainda que, grosso modo, as reservas petroleiras do Oriente Médio sejam as mais abundantes (63% das mundiais), a produção de petróleo da América e dessa região é equivalente e as reservas venezuelanas revalorizadas (80,58 bilhões de barris em 2004) são comparáveis às iraquianas antes da última invasão.

Os Estados Unidos, embora mais bem dotados que as outras potências mundiais de petróleo (terceiro produtor) e de gás (segundo produtor), são também o maior consumidor. De acordo com dados do Departamento de Energia, sua crescente atividade econômica permite estimar um aumento no consumo de petróleo em um terço e de 50% no de gás, entre 2000 e 2020. Em torno de 16% do consumo de petróleo é coberto atualmente com importações, 45% das quais provenientes do Canadá, da Venezuela e do México. No ano 2004, as importações petroleiras dos Estados Unidos se originaram principalmente do Canadá (16,4%), México (12,7%), Arábia Saudita (12,1%), Venezuela (11,8%) e Nigéria (8,7%), que no total cobriram 61,7% das necessidades externas desse líquido.

Os provedores dos Estados Unidos, fundamentalmente de seu próprio continente, asseguram sua superioridade geopolítica, por mais que, estrategicamente, a liderança mundial que pretende manter exija seu controle sobre os hidrocarbonetos do Oriente Médio e da África. Daí, em grande medida, as invasões ao Afeganistão e ao Iraque. Daí também o reforço de seu controle militar sobre o continente americano.

O sul de gelo

Embora a Terra seja um planeta com abundância de água, 99,7% de suas reservas não são aptas para o consumo humano e animal. Da água doce existente, 7 milhões de milhas cúbicas estão concentradas em forma de gelo nos polos e geleiras, e 3,1 milhões na atmosfera. A água subterrânea, os lagos e os rios aportam outros 2 milhões de milhas cúbicas.

A maior reserva de água em geleiras, 70%, está localizada no sul da Argentina, no Chile e na Antártida, o que começou a dirigir os interesses estratégicos e empresariais a essas zonas. Não obstante, a maior extração de água provém das jazidas em terra, superficiais ou subterrâneas. Daí o crescente interesse por regiões como a Tríplice Fronteira, a bacia amazônica e a selva maia. Entre estas, a que concentra a maior atenção é a primeira, por albergar rios abundantes e um aquífero subterrâneo que é o terceiro do mundo por seu tamanho e o mais interessante por sua acessibilidade. O magnífico caudal do Paraná, que desce da bacia amazônica, alimenta os mantos subterrâneos que conformam o Sistema Aquífero Guarani, rodeia o Paraguai e superficialmente alimenta a represa de Itaipu, a maior do mundo no momento de sua construção. A bacia formada por esse rio, com todos os seus afluentes, soma 970 mil km², mas o Sistema Aquífero Guarani abarca uma área de 1.195.700 km², 70% dos quais sob solo brasileiro, 19% na Argentina, 6% no Paraguai e 5% no Uruguai. Suas reservas de água (sua capacidade de armazenamento) são estimadas em 40 mil km³, com uma recarga de 160 km³. Estima-se que “estas reservas podem satisfazer as demandas de água de 360 milhões de habitantes (300 litros diários por pessoa) ao longo de 100 anos, esgotando apenas cerca de 10% de sua capacidade total” (Agência Nacional de Águas 2003, Projeto para a Proteção Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Sistema Aquífero Guarani).

O rio Amazonas, por sua parte, percorre entre 6.785 e 7.200 km desde Arequipa, subindo pelo centro do Peru, até sua desembocadura no Estado do Pará, no Brasil. Com mais de 7 milhões de km² de superfície e 3.666 diferentes espécies de peixes em seu leito, e um caudal de 120 mil m³ de água por segundo, esse rio é uma das reservas de água e vida mais maravilhosas do planeta, alimento da maior selva tropical úmida que se conhece. No entanto, sofre atualmente um desgaste acelerado devido ao desmatamento e ao mau uso das águas.

Efetivamente, a necessidade da água como recurso vital se contrapõe ao uso negligente de rios e lagoas como captadores de detritos, acompanhada de sua importância como geradora de energia elétrica, que é uma das formas de energia que registram maior crescimento em nossos tempos.

Os Estados Unidos calculam em 45% o aumento de seu consumo nesse setor no ano de 2020. Isso incrementou o interesse pela construção de represas por todo o continente para garantir um aumento correspondente na produção. Uma zona-alvo, por sua proximidade com esse país, é a região de Puebla Panamá, de topografia muito acidentada, grande abundância em águas correntes e uma precipitação média de 2,4 mil mm anuais.

Continente militarizado e sublevado

A busca pelo controle do território continental, uma vez ganha a batalha tecnológica nessa fase – e como base para tentar ganhar a seguinte –, conduziu os Estados Unidos a revitalizar velhos sonhos. A partir do lançamento das Iniciativas para as Américas, em 1990, rapidamente propagou-se a ideia de que a integração nacional e regional era a saída para as situações de desativação industrial e atonia econômica. Com o Tratado de Livre-Comércio da América do Norte (NAFTA) entre Canadá, Estados Unidos e México, iniciou-se uma euforia de planos e tratados que promovem abertamente a economia de mercado e a abertura de fronteiras a mercadorias e capitais – não à força de trabalho. As novidades nesses tratados foram a desigualdade das economias envolvidas (não como no tratado entre Canadá e Estados Unidos, imediatamente anterior) e as poucas considerações prévias tendentes a equipará-las (como ocorreu com a União Europeia).

O NAFTA foi sucedido por múltiplas iniciativas de caráter similar que buscavam pouco a pouco cobrir todo o continente, enquanto, por outro lado, avançava a iniciativa da ALCA, que tenta alcançar a integração completa de um só golpe, ainda que excetuando Cuba, como na época da Aliança para o Progresso.

O Plano Puebla Panamá (PPP), e seu encadeamento com o Plano Colômbia, constitui a tentativa mais ambiciosa de abarcar uma área de grande tamanho mas, sobretudo, da maior importância estratégica por causa dos recursos que contém, por ter em seu centro o Canal do Panamá e por sua posição geográfica. Não obstante, o caráter desses planos varia de acordo com as condições de cada região, e o Plano Colômbia é abertamente de cooperação militar, enquanto o NAFTA, o PPP e os outros acordos de livre-comércio têm prioritariamente um conteúdo econômico.

A ALCA, como projeto integral, é o mais abrangente e pretencioso na medida em que implica um reordenamento geral do continente sob normatividades supranacionais geridas pelos Estados Unidos, outorgando-lhes todas as vantagens sobre o uso e abuso dos recursos, a geografia e a economia.

Com efeito, todos esses tratados deslocam o umbral de permissividade que se outorga às empresas transnacionais e adotam a expropriação quase total dos recursos considerados da nação ou do povo. Isso, agregado às políticas de ajuste que os precederam e os acompanham, desencadeou o repúdio dos povos que se organizam e se levantam em revoltas aparentemente passageiras, em insurreições populares ou em campanhas, conseguindo deter alguns desses projetos.

A urgência por controlar o mundo depois da queda do muro de Berlim e da implosão da União Soviética e a resistência gerada na América demonstraram a insuficiência do mercado para impor as novas disciplinas do poder e derivaram na militarização crescente das relações internacionais. À experiência do Plano Colômbia, iniciado no ano 2000, coincidindo com a retirada das tropas norte-americanas do Canal do Panamá (31 de dezembro de 1999), vão-se somando a instalação de bases militares norte-americanas em outras zonas e a promoção de políticas de segurança, de tolerância zero e antiterroristas em todos os países do continente. Sem falar nas patrulhas marítimas e ribeirinhas contempladas nos sistemáticos exercícios militares, nos quais os Estados Unidos conseguiram envolver todos os Exércitos e Forças Armadas dos países latino-americanos.

O plano geral das posições militares responde a uma estratégia de envolvimento e penetração que pretende estabelecer uma “dominação de espectro completo” (Comando Conjunto dos Estados Unidos 2000 Joint vision 2020). Por um lado, esse plano cria cercos ou zonas privilegiadas de acesso aos recursos naturais estratégicos e, por outro, busca intimidar, controlar, penetrar e desmobilizar, quando não diretamente destruir, qualquer signo de oposição a essas políticas de insurgência.

O controle militar do grande território continental responde a dois elementos: à concorrência e à necessidade de monopolizar essa área geográfica com tudo o que contém, e à necessidade de empreender políticas contrainsurgentes que detenham as capacidades organizativas, as mobilizações e o rechaço à dominação dos povos latino-americanos. Todos os movimentos que entraram em cena nas últimas duas décadas (1985-2005) têm, como referente central, as lutas pelo território, pelos recursos, pela autodeterminação e contra a ocupação por parte das transnacionais. Quer dizer, são lutas que atentam contra a possibilidade de que os Estados Unidos construam realmente uma posição estratégica de autossuficiência e invulnerabilidade relativa.

O novo desdobramento de bases, soldados, equipamentos e forças de inteligência para a América Latina é produto também de uma nova concepção estratégica sobre a região, contida na doutrina de segurança nacional dos Estados Unidos, nas iniciativas relacionadas com a constituição da força de segurança hemisférica e, em sua concepção geral, da guerra de quarta geração ou guerra assimétrica.

A posição hegemônica dos Estados Unidos depende, em mais de um sentido, de sua relação segura com o resto do continente. A América Latina é, nesse contexto, sua maior prioridade, mas também seu maior desafio.

A região, mais uma vez, encontra-se em uma encruzilhada: sucumbir ante essa nova onda colonizadora ou reclamar sua liberdade para construir seu próprio futuro. Os povos latino-americanos, no início do século XXI e depois de quinhentos anos de domínio, parecem estar tomando esse caminho.

 Mapas

geopolitica-2.png

 

geopolitica-4.png

 

Dados estatísticos

 

USAID: ajuda militar (milhões de dólares constantes)

1952-1959

1960-1969

1970-1979

1980-1989

1990-2003

América Latina
e Caribe

2.174,3

4.647,1

2.816,8

2.742,5

1.694,5

Argentina

0,0

594,0

433,5

0,3

41,0

Bolívia

2,1

120,3

164,2

17,9

190,7

Brasil

976,4

1.233,9

658,6

0,3

5,2

Chile

171,0

572,2

173,0

0,1

24,1

Colômbia

253,1

424,4

333,7

91,5

522,8

Equador

116,3

218,4

47,7

71,7

43,6

El Salvador

0,0

31,0

31,4

1434,2

257,8

Honduras

4,9

38,2

53,4

674,6

115,6

Nicarágua

7,3

51,7

62,4

0,0

25,1

Peru

301,3

473,8

243,1

0,0

0,0

República Dominicana

43,4

92,2

100,0

70,8

34,7

Uruguai

122,9

138,6

126,3

0,0

0,0

Fonte: Elaborado com dados de US Overseas Loans & Grants (Greenbook).

USAID: ajuda econômica (milhões de dólares constantes)

1952-1959

1960-1969

1970-1979

1980-1989

1990-2003

América Latina
e Caribe

5.484,8

32.061,6

13.803,1

18.722,6

22.006,3

Argentina

231,4

932,1

6,5

4,7

29,2

Bolívia

807,2

1.604,2

1.045,3

881,8

2.333,4

Brasil

1.147,2

8.943,0

1.436,7

7,0

224,7

Chile

460,2

3915,1

835,6

75,4

87,4

Colômbia

303,5

3753,6

2.048,6

162,6

2.189,8

Equador

158,5

905,5

376,2

504,2

574,9

El Salvador

41,6

514,6

239,9

4.046,9

1.923,1

Honduras

139,8

397,4

490,6

1.812,3

1.116,3

Nicarágua

113,4

568,3

476,8

203,1

1.413,5

Peru

307,0

1381,6

817,0

1.243,9

2.752,9

República Dominicana

10,5

1.854,5

651,2

1.238,4

480,0

Uruguai

87,9

447,6

205,4

43,4

32,6

Fonte: Elaborado com dados de US Overseas Loans & Grants (Greenbook).

 

Intervenções dos Estados Unidos

Ano

Acontecimento

País

1961

Golpe de Estado contra Velasco Ibarra

Equador

Instalação dos Peace Corps

Colômbia

1963

Golpe de Estado contra a eleição de Juan José Arévalo

Guatemala

Golpe de Estado contra Juan Bosch

República Dominicana

1964

Golpe de Estado contra o presidente João Goulart apoiado pela Operação Brother Sam. Iniciou-se a ditadura militar de Marechal Castelo Branco.

Brasil

Início da American Security Operation – conhecida como plano LASO – para controlar as insurreições populares independentistas que se iniciaram em Marquetalia

Colômbia

Golpe de Estado contra Paz Estenssoro

Bolívia

Criação da Organização Democrática Nacionalista, força paramilitar contrainsurgente

El Salvador

1965

Invasão para impedir a recondução ao governo do presidente Bosch (os Estados Unidos desembarcaram mais de 42 mil soldados com participação de forças navais, aéreas e de infantaria)

República Dominicana

1966

Golpe de Estado do general Onganía

Argentina

1967

Captura de Ernesto Che Guevara

Bolívia

1971

Golpe de Estado do general Banzer contra o presidente Juan José Torres com total apoio da CIA

Bolívia

1973

Golpe de Estado do general Augusto Pinochet contra o presidente Salvador Allende

Chile

1975

Início da Operação Condor e consolidação do governo militar
de Pinochet

Chile

1976

Ações repressivas que desembocaram no golpe de Estado da Junta composta dos militares Videla, Massera e Agosti

Argentina

1994

Invasão para reinstalar Jean-Bertrand Aristide no governo

Haiti

Espécies endêmicas no cinturão da América

País

Mamíferos

Aves

Répteis

Anfíbios

Plantas
superiores

México

140

92

368

194

12.500

América Central

30

17

121

132

3.698

Brasil

119

185

Colômbia

34

67

1.500

Peru

49

112

5.356

Total

372

473

489

326

23.054

Fonte: WRI. Recursos mundiais, 2002, Washington; INEGI. Plano Puebla Panamá (compêndio de informação
da região), México.

 

Espécies silvestres no cinturão da América

País

Mamíferos

Aves

Répteis

Anfíbios

Plantas
superiores

México

491

800

704

310

26.071

América Central

1.306

3.353

1.178

634

49.790

Brasil

417

1.500

485

56.215

Colômbia

359

1.700

51.220

Peru

460

1.541

233

18.245

Total

3.033

8.894

1.882

1662

201.541

Fonte: WRI. Recursos mundiais, 2002, Washington; INEGI. Plano Puebla Panamá (compêndio de informação
da região), México; Estrada e Coates. As selvas tropicais do México: recurso poderoso, porém vulnerável.
SEP-FCE-CONACYT, México.

 

Bibliografia

  • CECEÑA, Ana Esther. La tecnología como instrumento de poder. México, D.F.: Ediciones El Caballito, 1998.
  • __________. La territorialidad de la dominación. Estados Unidos y América Latina. Chiapas, n. 12. México, D.F.: ERA-UNAM, 2001.
  • CECEÑA, Ana Esther (Coord.). Hegemonias e emancipações no século XXI. São Paulo: Clacso, 2005.
  • DINGES, John. Operación Cóndor. Santiago: Quebecor, 2004.
  • GALEANO, Eduardo. Las venas abiertas de América Latina. México, D.F.: Siglo XXI, 2004.
  • SELSER, Gregorio. Los marines: intervenciones norteamericanas en América Latina. Buenos Aires: Crisis, 1974.
  • __________. Cronología de las intervenciones extranjeras en América Latina. México, D.F.: UNAM, 1995, 1997. Tomos I e II.