A estratégia de transferir os serviços sociais para um setor que não seja nem “estatal” nem do “mercado” – denominado Terceiro Setor – está inscrita no marco dos programas de alívio da pobreza e da focalização das ações sociais na América Latina. São estratégias apoiadas e estimuladas pelos organismos internacionais e multilaterais de financiamento, bem como pelos governos dos países da região.
Assim como não foi possível constituir na América Latina “Estados de bem-estar social” na sua plena concepção, nem construir um “mercado livre e competitivo”, inexistente sem o beneplácito estatal, o Terceiro Setor também assume contornos muito pouco definidos nos países latino-americanos. Seria tão amplo que nele caberiam desde as “empresas socialmente responsáveis” até as associações de bairro. Seu principal atributo é ser “não governamental”.
Terceirização
Com efeito, nas duas últimas décadas, concomitantemente ao desmonte dos aparatos estatais, e dos sociais, proliferaram esses tipos de instituição: as chamadas Organizações Não Governamentais (ONGs), heterogêneas do ponto de vista das suas origens, dos seus propósitos, do seu financiamento, das suas formas de organização e de seus participantes. A rigor, o aspecto financiamento é aquele que mais as unifica, na medida em que a maioria dessas organizações, apesar de “não governamentais”, é financiada com recursos públicos.
De acordo com as estratégias apontadas anteriormente para “mitigar” os problemas sociais, boa parte das ONGs na América Latina assumiu um papel substitutivo ao Estado (ou aos governos) na prestação de serviços sociais. Existem casos-limite, como o do Peru, onde até as ações de saúde pública foram assumidas por esse tipo de organização. Consequências dessa escolha política já são visíveis há algum tempo: a deterioração das condições de saúde da população e a baixíssima cobertura de vacinação. Outros países mantêm serviços estatais considerados “essenciais”, transferindo aqueles que podem assumir um caráter mais “competitivo” e “eficiente” para organizações do Terceiro Setor, tal como propunha a Reforma do Estado no Brasil no governo Fernando Henrique Cardoso, em meados dos anos 1990. Essa estratégia continua sendo claramente proposta e apoiada por organismos como o Banco Mundial. A tese central é de que, diante da “ineficiência” ou “incapacidade” estatal/governamental em assumir suas tarefas – aspecto reforçado por políticas dirigidas ao desfinanciamento e desmonte desse setor, que efetivamente provocaram uma piora nos seus serviços, muitas vezes já precários –, qualquer coisa “não governamental” seria por definição melhor, sobretudo com base em cálculos de rendimento custo/benefício. Misturada a essa tese, e em consonância com a premissa da “autoajuda”, está a suposição de que a qualidade das ações vindas da “própria comunidade” seria superior àquela vinda de “burocratas de fora”.
Com isso vale ressaltar que, junto à estratégia de transferência para entidades do Terceiro Setor ou “comunitárias”, perpetrou-se uma gigantesca terceirização de todos os serviços sociais na América Latina (bem como de todos os serviços públicos privatizados), precarizando as relações de trabalho e desmontando toda e qualquer possibilidade de criar quadros estáveis e capacitados no setor público.
Retorno a um sistema pré-moderno?
Outra premissa muito cara a essa estratégia é a de que os problemas sociais se resolvem no âmbito “local”, justificando a descentralização irrestrita e sem critério de todo e qualquer programa social. Outra ficção vem associada a essa ideia: a de que o espaço “local” seria por definição mais “democrático”, na medida em que as pessoas estariam mais “próximas” dos serviços, supondo maior transparência e controle social.
A pergunta que não quer calar, sobretudo diante das evidências que já se acumulam nas experiências latino-americanas, é se efetivamente as múltiplas redes do Terceiro Setor têm sido capazes de implementar políticas públicas e, sobretudo, resolutivas diante dos gigantescos problemas sociais da região.
Quando o Estado é omisso ou ausente, e quanto mais carente é a “comunidade” em que estão atuando, as ONGs assumem responsabilidades que não deveriam ser delas. Devido ao caráter privado de suas ações, e a sua limitada abrangência ou capacidade de cobertura, o impacto de sua intervenção tem sido muito limitado em relação à transformação das condições gerais de vida de grandes parcelas da população. Finalmente, vale lembrar que a associação das pessoas em “grupos não governamentais” também não é nenhuma novidade histórica. A “novidade” é que eles comecem a assumir funções que outrora pertenciam à esfera estatal. Nas palavras de Immanuel Wallerstein, há um retorno ao sistema pré-moderno, de acordo com o qual devemos, no âmbito do privado, providenciar nossa própria segurança e bem-estar. Uma vez que é difícil assumir todas as tarefas que isso implica, submetemo-nos a “grupos” construídos de diversas maneiras e com diversos rótulos, e esses grupos representam algo bem diferente de nações construídas nos dois últimos séculos. Seus membros não são cidadãos, porque suas fronteiras não são definidas juridicamente, mas miticamente, e podem servir não para incluir, mas para rejeitar.