Agrária, Questão

A questão agrária resulta de um conjunto de problemas gerados pelo processo de acumulação capitalista e pelo desenvolvimento da agricultura e da pecuária, em particular. Na América Latina, está relacionada com a estrutura fundiária intensamente concentrada e com os processos de expropriação e exclusão dos camponeses, nas diversas modalidades em que produzem suas condições de sobrevivência. A resistência a esses processos se expressa na luta pela terra, pela reforma agrária e por condições dignas de trabalho. Estabelece-se assim um confronto entre as necessidades de um capitalismo voltado para o consumo de luxo e a exportação e as necessidades da massa de trabalhadores do campo, resultando em enfrentamentos violentos que marcam a questão agrária no continente.

Portanto, a questão agrária é própria do desenvolvimento do capitalismo; nasce das desigualdades e contradições desse sistema, cujos principais fatores são os políticos, expressos no controle de preços, os de mercado e os de políticas agrícolas. Os grupos detentores do poder investem pesado em pesquisas, infraestrutura e tecnologias. As desigualdades geram o aumento e a concentração da riqueza e da terra, simultaneamente à intensificação da pobreza e da miséria.

Porém, o desenvolvimento do capitalismo gera suas próprias contradições: se por um lado expropria o camponês, por outro faz com que ele ressurja no processo de arrendamento da terra. Ao arrendar partes de sua propriedade, o fazendeiro possibilita a recriação do trabalho familiar, ou seja, do campesinato. O arrendamento – forma de exploração baseada na cobrança de parte da renda gerada pelo trabalho familiar na produção agropecuária – interessa ao fazendeiro, até mesmo porque lhe permite evitar que a terra fique ociosa e possa ser ocupada por camponeses sem terra.

O primeiro Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, realizado na cidade de Belo Horizonte, no Brasil, em 1961 (Reprodução/portaldoprofessor.mec.gov.br)

Esse conjunto de problemas que caracteriza a questão agrária pode ser amenizado, reduzido em escala e intensidade, mas é impossível solucioná-lo na sociedade capitalista, porque isso implicaria afetar profundamente o processo de acumulação de capital no campo, centrado na grande propriedade e na exportação. Por seu lado, o movimento camponês desenvolve suas mobilizações na luta pela ocupação de terras, com marchas, greves, ações concretas pela reforma agrária.

Em meados da década de 1990, o avanço das políticas neoliberais trouxe inovações para a questão agrária latino-americana. Com a globalização da economia, ampliou-se a hegemonia do modelo de desenvolvimento agropecuário, com seus padrões tecnológicos, caracterizando o denominado agronegócio. À medida que se restringia o protagonismo do Estado, grupos econômicos ruralistas passavam a produzir e impor políticas agrícolas, ampliando cada vez mais o controle que tinham dos mercados. Essa nova face da agricultura capitalista também mudou a forma de controle e exploração da terra. A produção e a produtividade de determinadas culturas aumentaram, graças à intensificação da mecanização e do uso de agrotóxicos, bem como à introdução e difusão do cultivo de plantas transgênicas. Ampliou-se, assim, a ocupação das áreas agricultáveis e as fronteiras agrícolas se estenderam.

Essas mudanças levaram a questão agrária para além do mundo rural. O aumento da produção e do controle político e territorial aconteceu simultaneamente com o aumento da exclusão, da pobreza e da miséria. Na segunda metade do século XX, o intenso êxodo rural provocou a diminuição da porcentagem da população rural da América Latina – de 43%, em 1970, para 23%, em 2005, de acordo com dados do Centro Latino-Americano e Caribenho de Demografia (Celade). A população urbana, por sua vez, passou de 158 milhões de pessoas, em 1970, para 420 milhões, em 2005. No campo, em números absolutos, a população manteve-se estável: em 1970 eram 117 milhões e, em 2005, 125 milhões. Todavia, como se extinguiu a tendência ao intenso êxodo rural, o desenvolvimento do campo não pode mais ser pensado somente como espaço de produção setorial. Precisa ser visto de uma perspectiva includente, com base no desenvolvimento territorial considerado como espaço de produção, moradia, trabalho e lazer. 

Formação do campesinato e resistência

Nas cidades latino-americanas multiplicaram-se os problemas resultantes do desemprego estrutural, com a exaustão ambiental, a marginalização da maioria da população urbana e o aumento do tráfico de drogas. A questão agrária e a urbana converteram-se em problemas territoriais interligados, de modo que o campo e a cidade precisam ser pensados como espaços de uma única luta, pela conquista da dignidade humana. Por tudo isso, a questão agrária compreende as dimensões econômica, ambiental, social, cultural e política. Para melhor compreendê-la, é fundamental conhecer a formação do campesinato.

Nas duas últimas décadas do século XX, eclodiram diversas lutas de resistência dos movimentos camponeses e indígenas da América Latina e do Caribe. Essas lutas representaram a perseverança registrada ao longo de cinco séculos de dominação e subalternidade, bem como as perspectivas de futuro desses povos e nações. Significaram também a recusa permanente ao modelo de desenvolvimento capitalista, que tem destruído continuamente seus territórios e suas culturas. Nos projetos de desenvolvimento da agricultura capitalista, não existe espaço político para a agricultura camponesa, com uma concepção de mundo tão diferente. Para justificar os fracassos do modelo de desenvolvimento capitalista, difundiu-se o discurso segundo o qual os camponeses e indígenas são atrasados e não conseguem se incorporar às sociedades modernas. A resistência de camponeses e indígenas ao produtivismo violento, que não respeita os tempos nem os espaços da natureza e das culturas dos povos, tornou-se uma das principais forças a distanciá-los do modelo do agronegócio.

A origem do campesinato latino-americano remete às civilizações ameríndias, anteriores à conquista europeia, porém foi no sistema capitalista que ele se configurou e se organizou. Há o campesinato indígena, com formas particulares de organização de trabalho e produção, de acordo com sua cultura. Outra vertente é formada pelo cruzamento entre povos indígenas, africanos, europeus e asiáticos. Assim, é possível falar em diferentes tipos de campesinato, indígena e não indígena. Ou, simplesmente, em um só campesinato latino-americano e caribenho, que se constituiu com o desenvolvimento do capitalismo, a partir do encontro entre povos de diversas partes do mundo.

A resistência e persistência do campe­si­nato em defesa de seus territórios e de seu modo de vida estiveram vinculadas à­ integração do modelo capitalista. Essa condição significou inclusão e exclusão em diferentes intensidades. A exclusão au­mentou no fim do século XX com a intensificação da desterritorialização do campesinato e dos povos indígenas pelo avanço das políticas neoliberais, interessadas em se apropriar dos recursos naturais desses territórios. Em sua política de exploração insustentável, o agronegócio tem destruído florestas e assoreado rios, exaurindo os recursos hídricos e criando problemas ambientais em escala mundial. Em diversos países latino-americanos, os territórios indígenas e camponeses são os mais preservados e, por esse motivo, disputados pela agropecuária capitalista. As lutas na selva de Chiapas e na floresta amazônica são alguns exemplos.

MC0001771.jpg
Trabalhadores e agricultores chilenos em uma manifestação da Unidade Popular, nos anos 1970 (Fundación Salvador Allende/memoriachilena.cl)

A diversificada organização dos territórios e das relações de trabalho de indígenas e camponeses estrutura-se sobre bases familiares e/ou comunitárias, e isso determina a produção em pequena escala, o que não significa produção baixa ou pequena. A produção camponesa, voltada para própria reprodução e para os mercados locais, regionais e nacionais, é responsável por uma proporção significativa dos alimentos consumidos em todos os países da América Latina. A exploração do trabalho e do território alheio para concentração de riqueza e de poder não faz parte do modo de vida camponês. Todavia, em muitas regiões do continente, há uma subordinação à produção capitalista, que impõe a “integração” com as agroindústrias e a participação parcial no sistema agroexportador.

O avanço das políticas neoliberais criou novos tipos de conflito. A territorialização do agronegócio tem intensificado a desterritorialização do campesinato e do latifúndio. Esses processos atendem à expansão da produção agroexportadora, visando aos mercados da América Latina e, principalmente, do denominado primeiro mundo. A “modernização” da agropecuária representada pelo agronegócio vem aumentando simultaneamente a produtividade e o desemprego. A mecanização e a informatização levaram a uma crescente ocupação de novos territórios e, ao mesmo tempo, diminuíram o número de pessoas necessárias para o trabalho. O desemprego estrutural e a diminuição do êxodo rural intensificaram a disputa pelos territórios, fazendo cada vez mais da questão agrária uma luta territorial. A garantia do território camponês é condição essencial para seu futuro. Todavia, é uma barreira para a territorialização do capitalismo, o que não retira a possibilidade de o capital monopolizar os territórios camponeses e indígenas, gerando permanentes conflitos.

Tanto a forma de organização quanto as opções de luta e de resistência dos movimentos camponeses e indígenas dependem das conjunturas políticas. No Brasil, uma dessas manifestações contra a exclusão e a expropriação, para a recriação do campesinato (mapa abaixo), é a ocupação de terras. Também são empreendidas marchas e organizados bloqueios de estradas para chamar a atenção da sociedade e pressionar o governo para aceitar a negociação de políticas públicas destinadas a amenizar a situação de pobreza e miséria. Essas formas de luta visam mudar a conjuntura político-econômica.

A recusa dos governos em debater essas questões e o aumento da violência contra os indígenas e camponeses têm levado à resistência armada, uma opção extrema que expressa o impasse entre os limites do capitalismo para resolver a questão agrária e a persistência camponesa em defender sua dignidade.

Diante dessa conjuntura, os camponeses e indígenas têm se organizado em movimentos políticos e criado articulações em escala nacional, latino-americana e mundial. Entre outros, servem como exemplo: Coordinadora Nacional de Organizaciones Campesinas (CNOC, Guatemala); Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST, Brasil); Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Bolívia (CSUTCB); Federación Nacional de Organizaciones Campesino-Indígenas y Negras (Fenocin, Equador); Coordinadora Nacional de Mujeres Trabajadoras Rurales e Indígenas (Conamuri, Paraguai). Os movimentos camponeses da América Latina formaram a Coordinadora Latinoamericana de Organizaciones del Campo (CLOC), e todas essas organizações participam também da Via Campesina – articulação mundial de movimentos camponeses.

Origens do agronegócio

Na segunda metade do século XX, o campo latino-americano sofreu profundas alterações causadas pelo modelo de desenvolvimento que gerou, ao mesmo tempo, mudanças e permanências. Com o avanço da industrialização da agropecuária, o tradicional sistema latifundiário, que durante séculos determinara a estrutura fundiária, passou por mudanças setoriais, técnicas e tecnológicas. A população rural conheceu um dos maiores êxodos de sua história. A territorialização das corporações norte-americanas e europeias ampliou seus domínios com a expansão de seus sistemas de produção. Esse conjunto de mudanças intensificou as formas de exploração do modelo agroexportador e aprofundou a expropriação dos camponeses e indígenas, gerando pobreza e miséria. As políticas de reforma agrária implantadas não conseguiram desconcentrar a estrutura fundiária.

O sistema latifundiário, que se caracteriza pelo controle de grandes extensões de terra, pela agropecuária extensiva, pela monocultura e pela intensa exploração de mão de obra, começou a ser substituído a partir de meados do século XX. A implantação de novas técnicas e tecnologias e o uso de insumos químicos aumentaram a produção e a produtividade. O desenvolvimento de novas variedades de cultivo facilitou a mecanização, dispensando em grande parte o trabalho manual. As famílias que viviam e trabalhavam nas grandes fazendas foram expulsas e se deslocaram para a periferia das cidades. Nas décadas de 1960 a 1980, esse processo acentuou a urbanização e a proletarização do campesinato e valorizou as terras, possibilitando a territorialização dos imóveis capitalistas sobre os de camponeses e indígenas – obrigados a vender suas terras ou sendo sumariamente expropriados. Assim aconteceu, por exemplo, com as terras de cultivo de café, no Brasil e na Colômbia, e de cana-de-açúcar, nas regiões Sudeste e Nordeste do Brasil.

Na década de 1990, com o avanço das políticas neoliberais, consolidou-se o processo de territorialização das empresas multinacionais norte-americanas e europeias, que expandiram seus domínios e aumentaram o controle sobre os principais produtos primários: soja, café, leite, frutas etc. Nessa fase, o controle político-territorial também foi ampliado. Em processos de compra ou de fusão com empresas nacionais, as corporações multinacionais passaram a controlar mercados, tecnologias e patentes, concentrando poder e conhecimento. Entre as grandes corporações que se estabeleceram na América Latina destacam-se: Nestlé (Suíça); Philip Morris, Cargil, Coca-Cola, Del Monte e United Fruit Company (Estados Unidos), Bunge (Holanda), Danone (França) e Parmalat (Itália). Ao atuar em diversos setores da economia, desfrutam de uma série de vantagens e adotam estratégias para assumir o controle político dos processos produtivos, dos mercados e das políticas econômicas.

Esses processos consolidaram o modelo de desenvolvimento da agricultura que ficou amplamente conhecido como agronegócio. Com uma argumentação que destacou suas supostas qualidades, o agronegócio exerceu um controle político extraordinário sobre o processo produtivo, subordinando todos os envolvidos. Nessa nova fase, os domínios territoriais ampliaram-se para controlar a água, recurso fundamental, por exemplo, para as indústrias de sucos de fruta. A liberalização do comércio mundial ganhou ainda mais incentivos com a criação do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), em 1947, com o objetivo de incrementar o fluxo comercial por meio da diminuição das tarifas alfandegárias.

AgenciaBrasil2608119269VC.jpg
Camponeses brasileiros em plenária do MST, em agosto de 2011 (Valter Campanato/ABr)

O crescente controle político dos territórios e de seus recursos, das relações sociais e do conhecimento não deixou outra saída para os movimentos camponeses e indígenas a não ser o enfrentamento direto com o agronegócio. Surgiram assim novas conflituosidades em toda a América Latina, com manifestações e ocupações de fábricas multinacionais, exigindo melhores preços e protestando contra o controle geral do processo produtivo. A privatização das sementes e sua consecutiva padronização diminuíram a diversidade das espécies. O controle desse produto e da pesquisa pelas corporações tornou a segurança alimentar extremamente vulnerável e aniquilou a soberania alimentar. Em 2005, dez grandes empresas controlavam a maior parte dos tipos de semente do mundo: Monsanto, Dupont/Pioneer, Land O’Lakes e Delta & Pine Land (Estados Unidos), Syngenta (Suíça), Groupe Limagrain (França), KWS AG e Bayer Crop Science (Alemanha), Sakata e Taikii (Japão) e DLF-Trifolium (Dinamarca).

Contradições e conflituosidade

A conflituosidade encontra-se na essência da questão agrária. A mídia global constantemente apresenta os conflitos como se fossem provocados pelos movimentos camponeses e indígenas. Todavia, eles são parte de um processo de exclusão. Para compreender esse processo, é fundamental considerar as contradições e os paradoxos que fazem emergir, na solução de conflitos, tanto o seu desenvolvimento quanto a criação de outros. A desigualdade gerada e gerida pelo capitalismo não produz apenas riqueza, pobreza e miséria. Ela também desenvolve o conflito, porque as pessoas não são objetos que compõem unidades de produção. São sujeitos históricos que resistem à exploração e à expropriação e querem compartilhar os resultados da produção de seu trabalho. Portanto, o desenvolvimento político-econômico é igualmente o desenvolvimento de conflitos.

O conflito é o estado de confronto entre forças opostas, com relações sociais distintas e em condições políticas de oposição, que buscam a superação por meio da negociação, da manifestação, da luta popular e do diálogo. Um conflito por terra é um confronto pela disputa de territórios entre classes sociais ou entre modelos de desenvolvimento. O conflito pode ser enfrentado pela conjugação de forças que disputam as ideologias e “esmagado” ou resolvido – a conflituosidade, não. Nenhuma força ou poder pode esmagá-la, chaciná-la, massacrá-la. Ela permanece fixada na estrutura da sociedade, em diferentes espaços, aguardando o tempo de volta das condições políticas de manifestação. Os acordos, pactos e tréguas definidos em negociações podem resolver ou adiar conflitos, mas não acabam com a conflituosidade, porque esta é produzida e alimentada dia após dia pelo desenvolvimento desigual do capitalismo.

A conflituosidade é uma propriedade dos conflitos em suas diversas formas: posse e renda da terra, produção capitalista e consequente concentração da estrutura fundiária com expropriação de camponeses e indígenas, por diversos meios e em diferentes escalas, com bases social, técnica, econômica ou política. As respostas são a luta pela terra, a reforma agrária e a resistência na terra com a perspectiva de superação da questão agrária. Esses processos não se referem apenas à questão da terra, mas também às formas de organização do trabalho e da produção, do abastecimento e da segurança alimentar; aos modelos de desenvolvimento da agropecuária e a seus padrões tecnológicos; às políticas agrícolas; às formas de inserção no mercado; aos tipos de mercado; à questão campo-cidade; à qualidade de vida e à dignidade humana.

A conflituosidade está na natureza do território, que é um espaço político por excelência. A criação do território está associada às relações de poder, de domínio e de controle político. Os territórios não são espaços apenas físicos, mas também sociais e culturais, em que se manifestam as relações e as ideias, transformando em território até mesmo as palavras. As ideias são produtoras de territórios com suas diferentes e contraditórias interpretações das relações sociais. Os paradigmas que procuram afirmar ou negar a questão agrária são territórios políticos. Por ser insuperável, a questão agrária carrega em si as possibilidades da transgressão e da insurgência e, pela mesma razão, as possibilidades de cooptação e conformismo. Essas propriedades de contradição da questão agrária compõem a conflituosidade. Elas estão presentes nas disputas paradigmáticas entre a questão agrária e o capitalismo agrário, que determinam os projetos de desenvolvimento.

AC_ProtestoEsplanadadosMinisteiros_0230042015.jpg
Manifestação de camponeses na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, em abril de 2015 (Antonio Cruz/ABr)

 A estrutura fundiária no continente

A estrutura fundiária da América Latina e do Caribe está entre as mais concentradas do mundo. Essa realidade é resultado do controle territorial dos imóveis rurais pelos setores ruralistas e pelas corporações multinacionais. De acordo com os dados disponíveis, os países com estruturas fundiárias mais concentradas são: Barbados, Paraguai, Venezuela, Peru e Brasil, conforme quadro a seguir.

Índice GINI* de países da América Latina

Pa ís

Ano

Índice

Argentina

1988

83

Barbados

1989

94

Brasil

1996

85

Colômbia

2001

80

Honduras

1993

66

Nicarágua

2001

72

Panamá

2001

52

Paraguai

1991

93

Peru

1994

86

Uruguai

2000

79

Venezuela

1997

88

Fonte: www.fao.org/ES/ESS/yearbook/vol.1

* O coeficiente GINI mede de 0 a 100 a desigualdade na distribuição da renda.

Na segunda metade do século XX, políticas de reforma agrária foram empreendidas por alguns países da América Latina e do Caribe: Venezuela, Colômbia, Chile, Peru, Nicarágua, Brasil e Cuba. No entanto, na maior parte deles, tais medidas não foram suficientes para promover a desconcentração fundiária. Embora a reforma agrária envolva políticas destinadas a minimizar a questão fundiária, o desenvolvimento do capitalismo gera intensas desigualdades que ocasionam a reconcentração. Por essa razão, as lutas pela terra e a reforma agrária tornam-se permanentes; essa questão existe há séculos nos países latino-americanos, gerando um estado de constante conflituosidade. Esse estado decorre da contradição gerada pelo processo de destruição, criação e recriação simultâneas do campesinato.

A conflituosidade e o desenvolvimento ocorrem de forma simultânea e, em consequência, promovem a transformação de territórios, modificam paisagens, criam comunidades, empresas e municípios, mudam sistemas agrários e bases técnicas, complementam mercados, refazem costumes e culturas, reinventam modos de vida e reeditam permanentemente o mapa da geografia agrária. A agricultura camponesa estabelecida, ou que se estabelece por meio de ocupações de terra ou como resultado de políticas de reforma agrária, fomenta conflitos e desenvolvimento, assim como a agricultura capitalista, na nova denominação de agronegócio, ao territorializar-se e expropriar o campesinato. Esse processo é responsável pelo crescimento da organização camponesa em diferentes escalas e de diversas formas na América Latina e no Caribe.

Um bom exemplo desse processo é o caso da soja, um dos produtos primários mais expressivos do agronegócio mundial. Na safra 2003-2004, foram produzidos 186 milhões de toneladas e, de acordo com as projeções, a previsão é de que se chegue a 300 milhões de toneladas em 2020. Na América Latina, a Argentina, o Brasil, o Paraguai e a Bolívia são os países com melhores perspectivas de expansão desse produto (mapas abaixo). O impacto social e territorial da soja vem provocando a desterritorialização de camponeses e indígenas, na medida em que o agronegócio se mostra extremamente agressivo para viabilizar a exploração da monocultura em grande escala.

No Brasil, aproximadamente 30% da soja é produzida pela agricultura camponesa, sendo parcialmente mecanizada e gerando mais empregos que os cultivos em larga escala. Em média, a agricultura camponesa produtora de soja gera três postos de trabalho para cada 24 hectares, enquanto a agricultura capitalista gera um emprego para cada 200 hectares. Os mapas abaixo ilustram essa situação. No primeiro, pode-se observar que a territorialização da soja no Brasil avança em direção à Amazônia. O segundo mostra que os principais espaços que estão sendo ocupados pela soja no Brasil, no Paraguai, na Argentina e na Bolívia correspondem a regiões da Amazônia, do Cerrado e do Chaco.

Paradigmas do capitalismo agrário

A compreensão e a explicação da questão agrária também são discutidas nas universidades, nos governos, nos movimentos camponeses e na sociedade. Como toda problemática política, a questão agrária possibilita leituras diversificadas, já que é pensada pelos interessados com base em paradigmas distintos, ou seja, de diferentes formas. Essas referências também se pautam por ideologias que constroem análises e influenciam na compreensão do problema. A tentativa de entender a questão agrária expõe um enorme desafio, pois é uma busca de solução para um problema que se alimenta de si mesmo. Essa compreensão é possível desde que analisada na sua essência, sem subterfúgios, reconhecendo e revelando seus limites em um campo de possibilidades que exige uma postura objetiva. Desde o final do século XIX, tem-se prognosticado o desaparecimento do campesinato. Todavia, o que se observa, na realidade, é um processo permanente de resistência. E, desde a década de 1990, dois paradigmas disputam a explicação da questão agrária: um procura afirmá-la, outro, negá-la.

De acordo com o paradigma da questão agrária, a destruição do campesinato pela sua diferenciação não determina seu fim. É fato que o capital, ao se apropriar da riqueza produzida pelo trabalho camponês, gera a diferenciação e a destruição do campesinato. Mas, igualmente, é fato que ao capital interessa a continuação desse processo para seu próprio desenvolvimento. Em diferentes condições, a apropriação da renda é mais interessante ao capital do que o assalariamento. Por essa razão, os capitalistas oferecem suas terras em arrendamento aos camponeses ou oferecem condições para que os camponeses produzam em seus próprios imóveis. Há três possibilidades de recriação do campesinato: o arrendamento, a compra e a ocupação da terra. E assim se desenvolve um constante processo de territorialização e de desterritorialização da agricultura camponesa ou de destruição e recriação do campesinato. O que é compreendido como fim também tem seu término na poderosa vantagem que o capital tem sobre a renda da terra, gerada pelo trabalho familiar ou comunitário.

Conforme o paradigma do capitalismo agrário, o fim do campesinato não significa o fim do trabalho familiar na agricultura – utiliza o conceito de agricultor familiar como eufemismo do conceito de camponês. Com base em uma lógica dualista, classifica o camponês como atrasado e o agricultor familiar como moderno. Essa lógica dualista é processual, pois para ser moderno o camponês precisa se metamorfosear em agricultor familiar. Esse processo de transformação do camponês em agricultor familiar sugere também uma mudança ideológica. O camponês metamorfoseado em agricultor familiar perde sua história de resistência, fruto de sua pertinácia, e se torna um sujeito conformado com o processo de diferenciação, que passa a ser um processo natural do capitalismo. Os limites dos espaços políticos de ação do então moderno agricultor familiar fecham-se nas dimensões da diferenciação gerada pela produção da renda da terra. Sua existência está condicionada à situação gerada pelo capital.

Para o paradigma do capitalismo agrário, as relações capitalistas são apresentadas como totalidade. As perspectivas são apenas as possibilidades de se tornar unidades do sistema. Assim, o campesinato metamorfoseado é mais uma unidade do sistema, que caminha segundo os preceitos do capital. Por esse motivo, os movimentos camponeses que se identificam com o paradigma do capitalismo agrário não têm dificuldade em aceitar políticas propostas com base na lógica do capital – por exemplo, o Banco da Terra, programa brasileiro de financiamento de imóveis rurais. A lógica do paradigma do capitalismo agrário cria um estado de mal-estar quando o assunto a ser discutido implica contestar o capitalismo, porque isso lhe atinge o âmago. Esse é o limite de sua ideologia. A desobediência só é permitida nos parâmetros estipulados pelo desenvolvimento do capitalismo. A partir desse ponto é subversão. A “integração plena” carrega mais que um estado de subordinação contestada: contém o sentido da obediência às regras do jogo comandado pelo capital. Nesse paradigma, o camponês só estará bem se estiver plenamente integrado ao capital.

O paradigma da questão agrária não se limita à lógica do capital, de modo que a perspectiva de enfrentamento do capitalismo se torna uma condição possível. Daí a ocupação de terra ser uma das formas de luta mais presente nos movimentos camponeses. Também está presente a compreen­são de uma economia da luta, em que a conquista da terra não deve ser transformada na condição única de produção de mercadorias, mas igualmente na produção da vida em sua plenitude, bem como do enfrentamento com o capital para a recriação continuada do campesinato. A economia política desse paradigma contempla o mercado e, ao mesmo tempo, usa essa condição para promover a luta pela terra e pela reforma agrária. Por essa razão, enfrenta desafios com a realidade comandada pelo capital, já que este quer o camponês apenas como produtor de mercadorias e jamais como produtor de conhecimentos avessos aos princípios do capital.

mst04.jpg
Encerramento do 6º congresso nacional do MST, em Brasília, em fevereiro de 2014 (Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr)

Mapas

 

Bibliografia

  • BURBACH, Roger; FLYNN, Patrícia. Agribusiness in the Americas. New York: Monthly Review Press, 1980.
  • CELADE. América Latina y Caribe: estimaciones y proyecciones de población. Santiago de Chile: Centro Latinoamericano y Caribenho de Demografía (Celade), 2004.
  • CHONCHOL, Jacques. Sistemas agrarios en América Latina: de la etapa prehispánica a la modernización conservadora. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1994.
  • DAVALOS, Pablo (Org.). Pueblos indígenas, Estado y democracia. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso), 2005.
  • DROSS, Jan Maarten. Managing the soy boom: two scenarios of soy production and expansion in South America. Amsterdam: AIDEnvironment, 2004.
  • FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000.
  • __________,Questão agrária: conflitualidade e desenvolvimento territorial. In: BUAINAIN, Antônio Márcio (Org.). Luta pela terra, reforma agrária e gestão de conflitos no Brasil. Campinas: Unicamp, 2005.
  • FERNANDES, Bernardo; SILVA, Anderson Antonio; GIRARDI, Eduardo Paulon. Questões da Via Campesina. In: Anais do VI Congresso Nacional de Geógrafos. Goiânia: Associação dos Geógrafos Brasileiros, 2004.
  • RUBIO, Blanca. Explotados y excluídos: los campesinos latinoamericanos en la fase agroexportadora neoliberal. México, D.F.: Plaza y Valdés, 2001.
  • SILVA, Anderson Antonio; FERNANDES, Bernardo Mançano. Movimentos socioterritoriais e espacialização da luta pela terra. In: Reforma agrária. São Paulo: Associação Brasileira de Reforma Agrária, 2005.
  • STÉDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo Mançano. Brava gente: la trajetória del MST y de la lucha por la tierra en el Brasil. 2. ed. Rosario: América Libre, 2005.
  • TEUBAL, Miguel; RODRÍGUEZ, Javier. Agro y alimentos en la globalización: una perspectiva crítica. Buenos Aires: La Colmena, 2002.