Chile
Chile

Chile

Emir Sader (texto de atualização do verbete, 2006-2015)

Nome oficial

República de Chile

Localização

Ao sul da América do Sul, banhado a oeste pelo oceano Pacífico e ladeado a leste pela cordilheira dos Andes, ao norte pelo Peru e Bolívia e ao sul pela Argentina

Estado e Governo¹

República presidencialista

Idiomas¹

Espanhol (oficial), inglês, indígenas (inclui mapuche, aimará, quíchua, rapa nui), outras.

Moeda¹

Peso chileno

Capital¹

Santiago (6,472 milhões hab. em 2014)

Superfície¹

756.102 km²

População²

17,1 milhões (2010)

Densidade
demográfica²

23 hab./km² (2010)

Distribuição 
da população³

Urbana (88,59%) e 
rural (11,41%) (2010)

Analfabetismo

3,7% (2013)

Composição
étnica¹

Brancos e não-indígenas (88,9%), mapuche (9,1%), aimará (0,7%), outros grupos indígenas (1%, inclui rapa nui, likan antai, quíchua, colla, diaguita, kawesqar, yagan ou yamana), não especificado (0,3%) (2012)

Religiões¹

Católica romana (66,7%), evangélicas ou protestantes (16,4%), testemunhas de Jeová (1%), outras (3,4%), nenhuma (11,5%), não especificada (1,1%)

PIB (a preços
constantes de 2010)

US$ 252,54 bilhões (2013)

PIB per capita (a preços
constantes de 2010)

US$ 14.364,4 (2013)

Dívida externa

US$ 130,72 bilhões (2013)

IDH

0,822 (2013)

IDH no mundo 
e na AL

41° e 1°

Eleições

Presidente eleito diretamente para mandato de 4 anos, sem direito a reeleição imediata. O mesmo nomeia seu Ministério. Legislativo bicameral, composto de Senado e Câmara de Deputados. Nova legislação eleitoral promulgada em abril de 2015 altera o processo eleitoral e a composição do legislativo a partir da próxima eleição em 2017. O Senado passará a ser composto por 50 senadores, eleitos de forma proporcional em 15 distritos plurinominais, com mandatos de oito anos e renovação de metade dos assentos a cada 4 anos. A Câmara será composta de 155 deputados eleitos direta e proporcionalmente em 28 distritos eleitorais plurinominais para mandatos de 4 anos. 

Fontes:
¹ CIA. World Factobook
² ONU. World Population Prospects: The 2012 Revision Database
³ ONU. World Urbanization Prospects, the 2014 Revision
⁴  CEPALSTAT
⁵  ONU/PNUD. Human Development Report, 2014

 

Chile, uma louca geografia – esse é o título de um livro de 1940, escrito por Benjamín Subercaseaux, outorgando a essa desmesura o caráter de virtude. Quem há de negar que merece ser chamado de “uma louca geografia” um país com 4.300 km, colado à cordilheira dos Andes, em alguns traços aferrado a ela, composto ao norte por um imenso deserto, ao centro por um largo vale, mais além por um sul chuvoso, salpicado de lagos, vulcões e, ainda mais adiante, por um extremo sul que é um dédalo sinuo­so de canais que terminam no estreito de Magalhães? Das imagens, representações ou metáforas que os chilenos constroem sobre seu país, esta é uma das poucas que não é pura retórica, que não é fruto da irrefreável tendência idea­lizadora.

De muitos outros enunciados, há que se desconfiar: não existe a chamada longa tradição democrática, que permitia às elites chilenas sentirem-se civilizadas em um continente de costumes políticos bárbaros; nem é verdade que o Chile haja alcançado, nos braços do neoliberalismo, o caráter de um capitalismo moderno; tampouco é certo que seja um povo hospitaleiro com o estrangeiro ou solidário com os seus, ainda que há trinta anos o fosse em maior medida. Atualmente, está colonizado pelo individualismo burguês e pela mercantilização generalizada.

O país e seu povo

Desde a linha da Concórdia, que representa o limite com o Peru, até o polo Sul, o Chile tem 8.000 km de extensão. Sua superfície total é de 2.006.096 km², dos quais 756.096 km² correspondem à superfície sul-americana e insular e 1.250.000 km² à superfície antártica.

Do total da superfície sul-americana e insular, o Chile apresenta 16.560 km² de solos agrícolas, 129.300 km² de terrenos destinados à pecuária e 84.200 km² de solos florestais. Os não produtivos somam 526.036 km².

O censo de 1835 contabilizou uma população de 1.103.036 indivíduos, quase a terça parte dos 3.220.531 habitantes existentes em 1907. Em 1940, a população chegou a 5.023.539; em 1960 a 7.374.115; e em 1970 a 8.884.768. O censo de 1982 registrou a presença de 11.329.736 pessoas­ e o de 1992, de 13.348.401. Segundo dados de 2010, o país contava com 17 milhões de habitantes.

Quanto ao gênero, o censo de 2002 registrou a presença de 7.447.695 homens e 7.668.740 mulheres. Do total de habitantes do país, 85,5% pessoas viviam nas zonas urbanas e somente 11,4% nas zonas rurais. Em 1920, a população rural alcançava os 53,6%, modificando-se essa situação a partir do censo de 1940.

Contrariando o mito sobre a prosperidade trazida pelo neoliberalismo, nos últimos anos a população enfrentou dificuldades. O período 2000-2003 fez parte da fase final de uma crise iniciada em 1997, que diminuiu o ritmo de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e aumentou de maneira significativa o desemprego.

O crescimento médio entre 2000 e 2003 foi de 3,4% e o de desemprego chegou a 8,9%. A taxa de inflação permaneceu baixa, alcançando 2,8% nesse período.

No ano de 2003, em relação aos imediatamente anteriores, manteve-se a estrutura geral de participação no PIB das diversas classes de atividade econômica. A indústria manufatureira conservou-se no topo com 17,1%, seguida por serviços financeiros com 13,5%. Mas o maior crescimento com respeito ao ano de 2002 veio do setor mineiro (+5,4) e a maior queda, do setor pesqueiro (–9,2%). Isso significa que nas exportações o cobre representou em 2003 mais de 40,2% do total dos bens e serviços exportados, enquanto em 2002 havia representado 34,6%.

Em 2003, o total da população empregada era de 5.550.300 indivíduos e a força de trabalho chegava a 6.065.600 pessoas. Os setores líderes de emprego eram os serviços sociais e pessoais e, em seguida, o comércio. Em 2003, o primeiro setor absorveu 27,45% da população ocupada, enquanto o segundo respondeu por 18,97%.

Ainda em 2003, a dívida externa chilena subiu para US$ 43.396.000. O setor público representa apenas 21,5% da dívida e, dentro dessa magnitude, os créditos de longo prazo respondem por 84,5%. O quadro abaixo, registra outros indicadores econômicos e sociais do período, entre os quais, as variações no índice de preços ao consumidor.

Variação dos indicadores socioeconômicos (2000-2003)

Indicadores

2000

2001

2002

2003

Taxa de crescimento do PIB

4,5

3,4

2,2

3,3

Taxa
desemprego

9,2

9,0

9,0

8,5

Variações IPC

4,5

2,6

2,8

1,1

Fonte: Síntese Estatística do Chile. Banco Central.

 

Rumos de uma República autoritária

O Chile tem uma tendência mítica, em especial na esfera política. Não obstante, não é imaginação idealizadora afirmar que construiu seu Estado com muita precocidade em relação a outros países da América Latina. A independência foi plenamente alcançada em 1818, e, depois de um período de titubeios e ensaios constitucionais de corte liberal e federalista, os grupos autoritários e conservadores se impuseram. Enquanto a Argentina e o Uruguai estavam esfacelados por guerras civis, o Brasil vegetava sob o regime imperial e o México ainda vivia o governo personalista de Santa Anna, os chilenos criaram um modelo político estável, articulado em torno de princípios e regras impostas como universais, que só foi rompido em 1891.

Dessa capacidade de criar precocemente a instituição estatal com sucessão regulada e pacífica no poder surgiu o mito chileno de uma longa tradição democrática, que teria vivido seu momento inaugural em 1830, quando as armas entronizaram os setores conservadores no poder, cujo princípio de unidade era seu antiliberalismo e cuja noção era a da autoridade efetiva, que impôs ordem não só de cima para baixo, como também entre os grupos dominantes. Essa efetividade política em um país com um desenvolvimento econômico precário e, até o término da Guerra do Pacífico (1879-1883), com escassas riquezas, é a chave do desenvolvimento político chileno do século XIX.

Com efeito, em 1830, criou-se uma ordem política de longa duração. Mas não se tratava de uma democracia, e sim de uma República, porque não cumpria com as mais importantes regras procedimentais que expressavam a soberania popular. O poder tinha caráter não hereditário, como é próprio da República; os presidentes eram eleitos, assim como os parlamentares, porém o controle dos comícios por parte dos governos e dos latifundiários nas localidades camponesas foi quase absoluto, até a crise do regime em 1891.

Ao contrário de outros países de América Latina, não existia, no Chile, a figura do ditador, mas o regime estava longe de ser liberal. Inspirada nas concepções centralizadoras de Diego Portales (1793-1837), a Constituição de 1833 construiu um Estado forte, dotado de amplos poderes para manter a ordem política.

E, apesar de tudo isso, a estabilidade política foi ameaçada primeiro em 1851, como consequência das resistências despertadas pela candidatura de Manuel Montt, e depois em 1859, ao término do mandato presidencial. Em 1851, ocorreram sucessivos levantes armados, dos quais participaram militares e civis; os mais importantes foram em Concepción e La Serena. Nessa última cidade, a rebelião tomou o aspecto de um experimento liberal avançado, cuja base de classes era uma incipiente burguesia mineira, alimentada ideologicamente por alguns intelectuais. A experiência de 1859, encabeçada por figuras importantes e politicamente radicais da burguesia mineira, teve seu centro em Copiapó, então a capital mineira do Chile.

Essas revoltas eram expressão de uma diversificação econômica e ideológica das classes dirigentes e de sua diferenciação política. Em 1842, constituiu-se a Sociedade da Igualdade, que reagrupou em um clube político os setores liberais dizimados depois da guerra civil de 1830 e os incipientes grupos mais radicalizados. Em meados da década de 1840, começou a formar-se o Partido Liberal, criado em meio às pugnas da sucessão presidencial. Na década de 1850, o Partido Conservador se fragmentou em dois grupos, divididos pela lealdade à Igreja ou ao Estado. O grupo católico ultramontano constituiu o Partido Conservador, e o setor estatista, o Partido Nacional. Na década de 1870, o Partido Radical terminou por adquirir sua fisionomia de organização nacional. Doutrinariamente ligado à maçonaria, era uma expressão de elites provinciais, de profissionais, de outros setores da classe média, e também de agricultores das zonas de colonização surgidas depois da ocupação da região Araucana.

Com o governo de José Joaquín Pérez (1861-1871), cuja indicação representou a busca de uma solução consensual entre os grupos políticos que representavam os setores dominantes, começou um processo de diversificação do poder. Inauguraram-se as administrações de cinco anos e houve uma mudança de clima político, uma transição para uma maior participação parlamentar, portanto, para governos um pouco menos autoritários e, a partir de 1871, para governos autoritários com ideo­logia liberal. Tais governos lutaram para debilitar as prerrogativas civis da Igreja, o que ocorreu especialmente durante a administração de Domingo Santa María (1881-1886), na qual se aprovaram a lei do matrimônio civil e a dos cemitérios laicos. Essas reformas desataram lutas apaixonadas, as quais, não obstante, não desfizeram a paz civil. Tampouco se desfez a concepção centralizadora e absorvente da figura presidencial. Em 1891, vítima da derrota em uma guerra civil, o presidente liberal José Manuel Balmaceda se suicidou, defendendo o conceito portaliano de Estado forte.

O Palácio de La Moneda, sede da Presidência da República do Chile (Kyle Simourd/Wikimedia Commons)

Conflitos e parlamentarismo

Em 1879, o Chile se envolveu em uma guerra comercial com o Peru e a Bolívia, em torno da ocupação dos territórios salitreiros. Mais além da retórica patriótica que todos os países constroem para justificar as incursões guerreiras, foi um confronto ligado à expansão capitalista do Chile, que tinha a ordem política e o aparelho de Estado necessários para assegurar o domínio inglês do salitre, porém carecia do controle territorial da matéria-prima.

O triunfo nesse conflito marcou em alguns pontos importantes o desenvolvimento econômico e político chileno. Primeiro, porque permitiu o período ambivalente do auge salitreiro, associado a importantes mudanças do regime político. Segundo, porque criou nas relações entre o Chile e a Bolívia uma ferida que não cicatriza.

A vitória chilena na Guerra do Pacífico permitiu ao país o controle dos territórios salitreiros. O Estado facilitou a passagem da propriedade dessas possessões ao capital estrangeiro, especialmente ao inglês. Em troca desse repasse, criou um imposto sobre as exportações, o que introduziu uma profunda mudança no poder econômico do aparato estatal. À diferença da Argentina, país no qual a fase produtiva dos bens agrícolas exportados estava em mãos nacionais ou de estrangeiros avizinhados – e nas fases posteriores estavam estrangeirizadas –, no Chile a totalidade do processo (com exceção dos trâmites aduaneiros ou portuários e dos serviços jurídicos) estava sob controle estrangeiro. Portanto, no principal canal de distribuição de uma parte importante do excedente salitreiro, era o Estado que atuava como arrecadador dos impostos.

Comparando a situação com a da Argentina, a relação de propriedade dos bens exportáveis permitia aos grandes proprietários agrários desempenhar um papel de decisão na circulação do excedente na economia argentina. No Chile, quem cumpria esse papel era o Estado. Foi por esse motivo que a figura do presidente concentrador e com um projeto de desenvolvimento, o ideal portaliano, teve de dar lugar a um presidente quase sem atribuições. Essa modificação levou a uma metamorfose do regime político, ainda que sem mudanças na Constituição de 1833. A guerra civil de 1891 conduziu à instalação de um parlamentarismo sui generis, em relação aos clássicos existentes na Europa. O presidente continuou a ser eleito em votações populares indiretas; não havia possibilidade de adiantar eleições parlamentares, realizadas a intervalos fixos, e durante longo tempo tampouco houve a possibilidade de encerramento dos debates, o que permitia a uma fração ou a um fragmento parlamentar realizar uma efetiva obstrução. Isso deu margem a uma situação de poder atomizado, repartido entre as direções partidárias e os parlamentares: uma situação totalmente contrária à da presidência centralizadora.

Esse fenômeno, que foi designado como de troca da noção de Estado entre os grupos dominantes, instalou um estado de compromisso oligárquico. As decisões deviam ser consensuais entre todas as frações significativas dos numerosos partidos existentes. Qualquer uma, com a intervenção de um número pequeno de votantes, poderia bloquear uma decisão legislativa.

No entanto, esses governos com baixa eficácia e governabilidade tiveram a virtude de permitir a participação de todos os grupos nas decisões dos investimentos do fundo acumulado com a cobrança dos impostos salitreiros. Esse tipo de administração por consenso, da elite dirigente, pode funcionar adequadamente quando existe auge econômico. Mas desde o fim da Primeira Guerra Mundial apareceu um horizonte de término do crescimento baseado no salitre, pois o fertilizante natural foi substituído pelo sintético, produto da tecnologia alemã.

Alessandri e as intervenções militares

Esse horizonte de mudança se vinculou à aparição – em um universo de políticos hábeis no jogo parlamentar, mas sem conexão com os governados e nenhum carisma de massas – de uma figura, saída do grupo dirigente, que propôs um programa de reformas e estabeleceu relações empáticas com os eleitores. Foi Arturo Alessandri que inaugurou, em 1920, as formas de fazer política que se afirmariam de 1932 em diante. Os projetos desse primeiro líder da política eleitoral de massas do século XX incluíam­ a volta ao presidencialismo mediante a elaboração de uma nova Constituição e a legalização das relações entre capital e trabalhadores por meio de um Código do Trabalho. A modificação do modelo de desenvolvimento primário exportador e a ênfase industrializadora não receberam prioridade.

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Arturo Alessandri conversa com uma trabalhadora durante sua visita a uma fábrica de roupa, cerca de 1920 (Biblioteca del Congreso de Chile)

Em 1924, um golpe militar instigado pelos grupos direitistas mais recalcitrantes levou Alessandri a renunciar. O poder efetivo ficou com o coronel Carlos Ibáñez, líder do Exército: abria-se a caixa de Pandora das intervenções militares. Em março de 1925, Alessandri retomou seu mandato até as eleições de outubro. Seu ministro da Guerra e da Marinha era o poderoso coronel Ibáñez, que controlou o poder no governo de Emiliano Figueroa (1925-1927) e se elegeu presidente em 1927.

O intervencionismo militar na política chilena só terminaria em 1932, com o retorno de Alessandri à presidência, após o natural fracasso de uma tentativa de “República socialista” proclamada por Eugenio Matte Hurtado e Marmaduque Grove. O rumo intervencionista de Ibáñez e a incursão dos “jovens turcos” ligados a Grove permitiram a elaboração de um consenso quanto à retirada das Forças Armadas aos quartéis, que contou com o apoio da direita. Os militares tentariam mobilizar-se no período de 1952-1958, no segundo governo presidencial de Ibáñez, mas basicamente se mantiveram em segundo plano.

É interessante que a liderança militar, em especial durante o regime autoritário de Ibáñez (1927-1931), tenha tido maior preocupação industrializadora que a elite civil. Em que pese a crise do modelo primário exportador baseado no salitre já haver se manifestado, não se viram, por parte dessa elite, tentativas sérias de recondução do modelo de desenvolvimento. O segundo governo de Alessandri (1932-1938) reordenou a economia em seus aspectos financeiros (pagamento da dívida externa), porém não se lançou em políticas industrializadoras de magnitude.

A dureza da política de Gustavo Ross, ministro da Fazenda de Alessandri, em relação aos assalariados teve um efeito político fundamental: a ruptura da aliança da direita, basicamente do Partido Liberal com o Partido Radical. Essa era uma organização intermediária, cujo leque de votos ia desde os latifundiários do sul até os profissionais, o amplo espectro da classe média, funcionários públicos em geral – e em especial da educação –, empregados particulares e também operários especializados. Para essa organização, era indispensável uma política flexível com os trabalhadores, da qual careceu o governo. O Partido Radical ficou em uma situação de disponibilidade política.

Essa separação entre a direita e o partido intermediário dominante impediu o acesso dos conservadores às posições dominantes no sistema político. Os setores direitistas não voltariam a conseguir uma posição de governo direto até as eleições de 1958.

A Frente Popular

Enquanto a direita se desarticulava, a esquerda unia forças, com a formação, em 1936, de uma Frente Popular impulsionada pelo Partido Comunista do Chile (PCC). Há que se levar em consideração que, até 1933, o PCC seguia a consigna de luta “classe contra classe” da III Internacional; na América Latina, essa política rechaçava as alianças com partidos não operários, e, na Europa, com os partidos operários socialdemocratas. Os comunistas deixaram para trás essas posições em 1933. No mesmo ano, foi fundado o Partido Socialista, constituí­do pela maior parte dos quadros da breve República socialista de Matte Hurtado e Grove, com um programa antioligárquico e anticapitalista. Não obstante, esses grupamentos conseguiram colocar-se de acordo para um pacto que dava preferência ao Partido Radical às eleições de 1938.

Paralelamente, os partidos Liberal e Conservador, da direita, insistiram em apresentar um candidato próprio, Gustavo Ross, com um maximizador programa burguês. Ross recebeu o apoio formal do presidente, mas tanto Alessandri quanto os jovens conservadores (parte dos quais deixaram essa organização em 1938 para formar a Falange Nacional, inspirada na doutrina social católica) buscavam um nome capaz de mobilizar maior consenso. Os dirigentes liberais e conservadores e o próprio Ross preferiram desconsiderar as advertências, seguros de que a votação de seus adversários se dispersaria entre Pedro Aguirre Cerda, candidato da Frente Popular, e Carlos Ibáñez, que havia lançado uma candidatura populista com um discurso antipartidarista, porém com conteú­do de esquerda.

Não obstante, um evento de difícil previsão mudou todo o panorama político. Um pequeno núcleo de jovens nazistas, acusado de ser conivente com Ibáñez, tentou um golpe de Estado sem participação militar. Refugiados no edifício do Seguro Operário, foram massacrados por ordem assumida pelo presidente Alessandri. Carlos Ibáñez, recolhido ao cárcere em consequên­cia dos acontecimentos, chamou votos ao candidato da Frente Popular, decisão a que se uniram os chefes do partido nazista. Aguirre Cerda ganhou a eleição por 3 mil votos, entre 300 mil votantes. Um acontecimento imprevisível no momento da tomada de decisões mudou o destino do processo político, abrindo novos caminhos: o pacto de centro-esquerda, que durou de 1938 até 1947 e elegeu três presidentes.

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Moais, também conhecidas como ‘cabeças de Páscoa’, no Parque Nacional Rapa Nui, na Ilha de Páscoa (TravelingOtter/Wikimedia Commons)

A esquerda e o início da modernização capitalista

Por que em um país emparedado entre a cordilheira e o mar, longe do continente onde operava a ameaça fascista, as “frentes populares” duraram, sob esse nome ou outros, até depois da Segunda Guerra Mundial? A resposta é que a coalizão de centro-esquerda assumiu as tarefas pendentes da modernização capitalista, enfrentando a posição defensiva da direita, que concedeu, por exemplo, somente apoio condicional às medidas propostas pelo governo de Aguirre Cerda, que buscavam o incentivo do Estado a uma política de industrialização substitutiva das importações, cujo instrumento seria a Corporação de Fomento da Produção (CORFO), criada em 1939. Conservadores e liberais exigiram a limitação do respaldo dos partidos de esquerda ao sindicalismo camponês para apoiar um projeto que iria permitir um avanço até a modernização capitalista, requerendo desenvolvimento industrial. Essa atitude não levava em conta que a industrialização para o mercado interno projetada para o Chile requeria a incorporação dos trabalhadores agrícolas ao regime de pleno assalariado, com pagamento em dinheiro e capacidade de negociação por meio de sindicatos. A defesa do campo por parte dos parlamentares direitistas revelava o papel ideológico conservador da não separação de interesses entre os proprietários agrários e a burguesia urbana; modelo de organização que existiu no Chile e não, por exemplo, na Argentina, onde esses interesses eram nitidamente diferenciados.

Como consequência dessa fusão entre interesses oligárquicos e burgueses não se pôde alcançar a tempo, no Chile, a constituição plena do mercado interno. Sua formação ficou postergada para a década de 1960, momento em que se favoreceu a legalização do sindicalismo agrário.

Por motivos similares, as coalizões de centro-esquerda não enfrentaram as reformas do sistema eleitoral. A possibilidade de compra de votos e de mobilização forçada de votantes rurais permitia uma sobrerrepresentação da direita no Parlamento. Esse mecanismo compensava a perda da direção governamental e evitava que se visse como não equitativo o sistema de oportunidades políticas, em que pesem os vinte anos de afastamento da direita do cargo presidencial.

A eficácia das coalizões de centro-esquerda se esgotou quando se produziu um giro na política internacional. A eleição presidencial chilena foi realizada em setembro de 1946, num momento em que já haviam sido lançadas as bombas atômicas no Japão, e quando já se começava a viver as pressões da nova etapa – a Guerra Fria.

Nessa ocasião, o vitorioso candidato radical Gabriel González Videla foi apoiado por um dos sócios da coalizão de esquerda, o Partido Comunista, enquanto os socialistas, divididos em várias facções, lançaram um candidato próprio, Bernardo Ibáñez. A direita apresentou dois candidatos, cujos votos, somados, superaram os do vencedor.

Os comunistas mostraram-se suficiente­mente flexíveis para participar de um gabi­nete com membros do Partido Liberal. Mas, nas eleições municipais de 1947, obti­veram o primeiro lugar entre todos os par­tidos, ao mesmo tempo que apoia­vam –­ apesar da sua participação governamental – as reivindicações dos trabalhadores. Quebrou-se o delicado equilíbrio de colaboração entre dois partidos inimigos, cujas propostas de futuro eram o socialismo e o capitalismo, associados aos blocos antagônicos da Guerra Fria. Surtiu efeito a exigência norte-americana da saída dos comunistas do gabinete, como condição da assinatura do Tratado de Assistência Militar. Os comunistas passaram dos ministérios à ilegalidade, mediante uma lei votada pela quase totalidade de seus ex-aliados radicais, pelos membros do Partido Liberal e por uma fração do Partido Socialista; o voto contrário, em defesa do PCC, veio dos falangistas (que se converteriam em democrata-cristãos em 1958), de um senador conservador, da maioria socialista e dos próprios comunistas. O vistoso sistema democrático chileno revelou sua fragilidade, mostrando que o pluralismo aberto não era compatível, naquele momento, com a nova etapa da Guerra Fria.

A esquerda entre 1950 e 1960

Acostumada desde 1938 a políticas participativas e a trabalhar em um sistema com oportunidades de poder, a esquerda chilena tomou duas direções distintas na década de 1950. O Partido Socialista Popular (PSP), dissidência organizada em 1947, decidiu apoiar Carlos Ibáñez, que assumiu uma postura populista, bastante influenciada pelo exemplo de Juan Domingo Perón. Um setor dirigido por Salvador Allende Gossens separou-se do PSP, reaproximando-se do Partido Socialista do Chile, para apoiar junto aos comunistas, nas eleições de 1952, um candidato alternativo – o próprio Allende, debutante em eleições presidenciais.

Em 1953, no governo de Ibáñez e sob o império da legislação anticomunista, foi criada a Central Única de Trabalhadores (CUT), da qual participaram dirigentes de diversos partidos, inclusive radicais, falangistas e comunistas ilegais. A direção foi assumida por Clotario Blest, uma espécie de anarquista cristão, muito crítico da ação dos partidos, para o qual a tarefa do sindicalismo era levar adiante a revolução socialista. Essa nova central se pronunciou desde o início pelo socialismo e contra o capitalismo.

No PCC, a ilegalidade incentivou a formação de uma fração, dirigida por Luis Reinoso, hostil à participação eleitoral e favorável à ação direta. O grupo foi marginalizado sob acusações de cumplicidade com o imperialismo e adesão a políticas de orientação trotskista. Apesar das divergências e perseguições, o partido reafirmou as mudanças legais como forma de recuperar seus direitos políticos, o que alcançou em 1958 com a formação do Bloco de Saneamento Democrático. Os comunistas chilenos não mudaram sua política depois que vieram à tona as denúncias sobre a atuação de Stalin, no 20 o Congresso do PC soviético, e aprofundaram sua política da “frente de libertação nacional”.

Os socialistas, ao contrário, desde sua saída do governo de Ibáñez, em 1953, começaram a desenvolver a linha alternativa designada como “frente de trabalhadores”. Foi a linha oficial do partido depois da reunificação das facções socialistas, em 1957.

Apesar dessas diferenças, que se aprofundaram nos anos 60, a Frente de Ação Popular (FRAP), formada nesse período entre socialistas e comunistas, continuou atuando até sua substituição pela Unidade Popular, organização criada em 1969.

A democracia cristã e a nova modernização capitalista

Em 1958, Allende quase obteve o triunfo em sua segunda incursão presidencial. Mas Jorge Alessandri assumiu o governo e foi o primeiro presidente de direita em duas décadas. Ele se propôs a liberalizar a economia, continuando com as receitas que havia aplicado a missão Klein Saks, durante o governo de Ibáñez.

Para eliminar os riscos de partidarismo e corporativismo, o presidente decidiu instalar um governo de técnicos, que pusesse a política econômica acima da defesa dos interesses de alguma fração burguesa. O objetivo era incentivar a modernização da indústria para que pudesse competir no exterior. Desse modo, e não mediante o aumento da demanda interna, seriam resolvidos os problemas de mercado.

Mas esse projeto tecnocrático falhou por não levar em consideração as reais tendências de curto prazo do empresariado chileno, cuja conduta diferia bastante da racionalidade prevista nos modelos teóricos. Uma parte significativa desses atores preferiu especular com o dólar ou dedicar-se ao consumo conspícuo, em vez de participar do projeto industrializador de longo prazo.

A derrubada dessa política obrigou o governo de Jorge Alessandri a buscar um pacto defensivo com os radicais, destinado basicamente a criar condições para impedir o triunfo de Allende nas eleições presidenciais de 1964. Tratava-se de uma coalizão preventiva que assegurava a liderança a um postulante radical.

Esse pacto falhou pelos efeitos de uma contingência política impossível de contemplar nos cálculos. A morte de um deputado socialista de um distrito rural exigiu a realização de uma eleição complementar. A medição de forças, realizada em um distrito pouco significativo, desencadeou uma modificação completa do cenário eleitoral. O triunfo do candidato socialista gerou na direita uma conduta de pânico que a levou a desistir da aliança prévia com o Partido Radical para apoiar, sem condições, o candidato democrata-cristão, Eduardo Frei Montalva.

O líder da Democracia Cristã (DC) tinha uma plataforma programática, inspirada nas recomendações da nova política norte-americana (Aliança para o Progresso), na qual a superação do estancamento do desenvolvimento capitalista chileno requeria reformas estruturais; entre elas, a agrária e o estímulo da sindicalização dos camponeses para favorecer sua incorporação ao mercado interno. O objetivo estratégico dessa modernização reformista era captar massas populares por meio de uma organização a partir do topo. A DC tinha como horizonte de futuro uma concepção alternativa, que opunha o comunitarismo ao coletivismo socialista e ao liberalismo capitalista, e era uma organização que gerava constantemente uma ala esquerda.

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O presidente chileno Salvador Allende durante discurso no 6º Congresso da CUT, em 9 de dezembro de 1971 (Biblioteca del Congreso de Chile)

O governo de Frei cumpriu as tarefas de modernização capitalista por meio de um impulso à indústria e, especialmente, mediante a participação do capital estrangeiro, porém também cumpriu as principais tarefas reformistas: as mudanças na posse da terra, a sindicalização camponesa, a organização da população e a ampliação da duração da escolaridade. Não obstante, os esforços para dar novo impulso à economia chilena tiveram êxito limitado. A análise das estatísticas econômicas mostra claros sinais de estancamento de 1966 em diante (quadro abaixo). A alta registrada nesse ano foi o efeito de uma injeção sobre a demanda interna produzida pela alta de salários, típico do primeiro ano de um novo governo.

Ao fazer reformas, a DC pôs em xeque a própria reprodução de seu poder, pois gerou o isolamento com aquelas tendências do eleitorado que haviam permitido seu triunfo de 1964 e seu crescimento eleitoral impressionante de 1965 (42,5% do eleitorado em um sistema de partidos múltiplos). Perdeu sua carta de trunfo como partido intermediário – o uso da votação da direita, que voltou a canalizar-se por um dispositivo partidário autônomo – o Partido Nacional (PN).

O ressentimento entre os dirigentes políticos do PN e da DC teve um efeito político decisivo. A direita desconsiderou o perigo de Allende e por esse motivo constituiu-se um campo de três forças para as eleições presidenciais. Nesse campo, as possibilidades do candidato direitista e do democrata-cristão estavam reciprocamente ligadas.

O justo triunfo de Allende nas eleições de 4 de setembro de 1970 seguramente não teria ocorrido, com um pacto entre a direita e o partido intermediário, como aconteceu em 1964. A DC não era uma organização disponível para apoiar a um postulante da direita, e no PN as correntes mais realistas não conseguiram apoio para um candidato democrata-cristão. A vitória de Allende não se deveu a um crescimento de sua votação com respeito a 1964, mas à repartição da votação restante entre dois candidatos.

A Unidade Popular

No início da década de 1970, momento da vitória da Unidade Popular, a esquerda chilena estava influenciada por uma nova tendência de análise do desenvolvimento capitalista, chamada teoria da dependência. Um dos objetivos dessa teoria foi erodir os fundamentos históricos das “frentes de libertação nacional”, cujo pressuposto era a permanência, nos países subdesenvolvidos da América Latina, de uma zona de modernização constituída pela existência de componentes feudais ou semifeudais.

A teoria da dependência, elaborada em suas partes fundamentais pelo economista formado em Chicago Andre Gunder Frank e os pesquisadores brasileiros do Centro de Estudos Sociais (CESO) da Universidade de Chile (UC) Theotônio dos Santos, Ruy Mauro Marini e Vania Bambirra, estava sintetizada no seguinte enunciado teórico: nos países periféricos, o subdesenvolvimento é um estado do capitalismo e não uma fase.

Portanto, o capitalismo não era concebido em países desse tipo (entre os quais se incluía o Chile) como uma fórmula viável para alcançar o caráter de sociedades desenvolvidas e deveria ser substituído pelo socialismo. Essa tese deslocava a clássica postura do Partido Comunista sobre a necessidade de uma fase revolucionária intermediária, com ênfase em medidas antioligárquicas e anti-imperialistas. E isso se constituiu no argumento decisivo para incorporar ao Programa da Unidade Popular medidas de socialização da produção e não só de melhoramento da distribuição.

Ademais, o Chile havia aperfeiçoado, no fim dos anos 1950, suas instituições políticas; entre 1964-1970 havia vivido um perío­do de aprofundamento da democracia social, em especial pela organização dos camponeses. A ideia da excepcionalidade política do Chile (em conjunto com o Uruguai) era aceita pelo próprio Ernesto Che Guevara, ao fazer um balanço sobre os caminhos da revolução na América Latina.

A formulação e o desenvolvimento da Unidade Popular, concebida como experiência de trânsito institucional ao socialismo, não se entendem sem a confiança no Estado democrático burguês de direito. Na prática, essa expectativa aparecia apoiada pelos fatos. As Forças Armadas não se converteram em um obstáculo para a ascensão de Allende ao governo; houve inclusive uma despropositada tentativa golpista de ultradireita, que terminou com o assassinato do comandante em chefe do Exército, general René Schneider.

Pela mesma razão, porém, a única possibilidade de êxito dessa experiência era adequar as reformas às relações de força no Estado. O governo adotou o caminho das nacionalizações, que punham em xeque o sistema no ponto medular da produção capitalista e não só da distribuição. Dessa maneira, “revolucionou” a esfera econômica, sem passar pela destruição do Estado burguês; por esse motivo não teve outro caminho senão formar uma grande aliança majoritária entre o Estado e as massas. De outra maneira, a confiança no Estado burguês de direito se converteria em ilusão.

Como esse bloco majoritário não foi construído, a Unidade Popular pendeu do fio do constitucionalismo militar. A situação global, na qual essa dependência era um fator decisivo, agravou as divisões entre os partidos do pacto e as leituras opostas sobre as estratégias de poder.

Desde a mudança forçada do general Carlos Prats, em agosto de 1973, vivia-se a sensação da fatalidade do golpe, que chegou como e quando era esperado, e superou qualquer previsão sobre seu estilo e sua ferocidade.

Violência e revolução burguesa no Chile

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O bombardeio do Palacio de La Moneda no golpe de Estado, em 11 de setembro de 1973 (Biblioteca del Congreso de Chile)

A violência foi anterior ao projeto revolucionário. Seu símbolo foi o bombardeio do Palácio Presidencial La Moneda. Com esse ato, desnecessário do ponto de vista militar, quis-se mostrar que se procedia à destruição do Estado democrático burguês de direito, o qual havia se mostrado inútil para combater o marxismo. Anunciando-o, precedeu ao fechamento do Parlamento e à destruição dos registros eleitorais.

Entre setembro de 1973 e abril de 1975, viveu-se uma etapa de terrorismo e restabelecimento das condições do antigo modelo de industrialização substitutiva, sustentada pelo aporte das divisas da mineração e com alguns traços de liberalização; por exemplo, o término das fixações centralizadas de preços. Com ou sem projeto de transformação do capitalismo previamente existente, o terrorismo de Estado foi uma constante da ditadura.

A partir de abril de 1975, iniciou-se a “revolução capitalista”, que conteve um programa de choque, destinado a resolver situações conjunturais de inflação alta e medidas a longo prazo para a crise da balança de pagamentos. Entre elas estavam as privatizações, a diminuição das atribuições do Estado e o rápido começo da abertura ao exterior. A partir de 1980, foram-lhes agregadas a privatização da previdência social, a diminuição drástica da capacidade de negociação dos sindicatos, a municipalização da educação básica e média, a criação de um setor privado da saúde e a municipalização dos prontos-socorros.

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Cartaz do plebiscito de 1988 (Biblioteca del Congreso Nacional de Chile)
A coroação jurídico-institucional desse processo foi a aprovação, por um plebiscito sem resguardos, da Constituição de 1980. Ela é a expressão de que o regime neoliberal necessita de uma democracia semirrepresentativa (senadores designados, papel do Tribunal Constitucional e sistema eleitoral binominal) e de uma elasticidade nula à mudança (garantia de alto quorum).

A instauração, de 1975 até 1990, de um sistema de mercado apoiado no terror, sem o contrapeso de uma sociedade civil ativa, em especial de sindicatos com capacidade de freio e, ademais, sem partidos, sem oposições políticas e com um mínimo de capacidade de proteção dos débeis e marginalizados, criou um capitalismo caracterizado pela desenfreada concentração da propriedade e da renda. Constituiu-se uma sociedade desigual assentada sobre bases sólidas, na qual as iniquidades tendem a se reproduzir.

A ditadura militar chilena não foi a única do Cone Sul a recorrer à violência e ao terror. Ela assassinou, torturou, fez desaparecer opositores no Chile e no estrangeiro, exilou, censurou e encarcerou sem julgamento. Foi uma ditadura que utilizou todas as armas da coação. Mas também foi uma ditadura que construiu uma aliança de classes para revolucionar o capitalismo chileno, fazendo-o passar da fase da exportação do cobre e da industrialização substitutiva com mercado protegido para uma fase distinta, a da exportação de matérias-primas múltiplas e bens com pouco valor agregado, e da importação em larga escala de bens e serviços. Uma economia pequena, totalmente inserida na globalização. 

Essa aliança de classes, cuja cabeça política foram as Forças Armadas e em particular o general Augusto Pinochet, incorporou os grupos empresariais e teve como intelectuais orgânicos, no campo econômico, os economistas neoliberais, e, no político, os seguidores de Jaime Guzmán, que encabeçou a luta pela constitucionalização da ditadura militar, que culminou em 1980, e criou um regime político de longa duração, capaz de sobreviver à ditadura militar e de encaminhar a política chilena até muito depois da saída de Pinochet do governo.

Ao contrário dos militares argentinos, que tiveram de se retirar depois de uma derrubada provocada pela derrota militar na Guerra das Malvinas, ou dos militares uruguaios que se viram forçados a uma negociação com os civis, os militares chilenos impuseram as regras da transição e o regime político dentro do qual esta se desenvolveu. Além disso, foram assentando solidamente uma sociedade capitalista de mercado, que gera até os dias atuais um consenso político transversal, o qual compromete a coalizão de direita (a Aliança pelo Chile) e também a coalizão de centro-esquerda, denominada Concertación de Partidos por la Democracia (Acordo de Partidos pela Democracia). Os opositores radicais têm entre o eleitorado um apoio que jamais ultrapassou os 10% e não dispõem de participação no Parlamento.

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Concentração massiva de adeptos da opção NO, durante a campanha para o plesbiscito de 1988 (Biblioteca del Congreso de Chile)
 

Concertación: transição e mudanças culturais

Transição significa deixar algo para trás para ir até um lugar diferentee. A transição chilena, porém, não deixou para trás a sociedade de mercado criada pela ditadura, e o lugar para o qual vai a democracia é uma forma minguada, de baixa intensidade. Seria o caso de se falar em semitransição?

Na realidade, a sociedade de mercado não só não intervém para transformá-la, como também se aprofunda e, ademais, legitima-se. A Concertación atuou sem questionar as finalidades que a ditadura havia imposto. Procedeu como se o capitalismo neoliberal e sua democracia semirrepresentativa fossem os espaços naturais da convivência social. Sua tarefa foi aperfeiçoar o modelo básico e seguir adiante, governando pelos principais enunciados da ideologia neoliberal: os mercados se autorregulam e o Estado deve evitar intrometer-se em excesso, os empresários são os sujeitos da história, pois criam emprego e inovação tecnológica; o conflito é negativo e há que evitá-lo, em especial, quando põe em discussão as finalidades sobre as quais a ordem se sustenta.

As duas grandes promessas da Concertación ou não foram cumpridas ou a realização dependeu menos desse bloco político do que de outros fatores intervenientes. Essas promessas foram: crescimento com equidade e verdade com justiça.

Crescimento com equidade não é possível se a política macroeconômica gira em torno dos mesmos eixos dos tempos da ditadura e se a estratégia social consiste no “jorro”, na acumulação que o crescimento produziria automaticamente. Não se pode esperar que essa modalidade equitativa do crescimento seja promovida por um Estado que, nas atuais relações de força, tem afinidade eletiva com o empresariado e tende a favorecer de maneira sistemática o capital. Esse Estado de classe, plenamente capitalista, deve ser pressionado em nome da responsabilidade social. E, para que isso ocorra, é preciso melhorar as condições de negociação do movimento sindical, de modo que esse movimento possa propor com força suas demandas distributivas.

O Chile se caracterizou, de 1938 em diante, por uma tendência “estadolátrica” dos setores progressistas. O imaginário social imperante era o de um Estado paternal. Sua arbitragem era conveniente nas questões sociais porque, dado um campo de forças povoado de partidos de esquerda, mais partidos intermediários com tendências à mudança se inclinavam pela justiça social. De fato, perdeu-se de vista que isso ocorria não por um atributo natural do Estado, senão por uma relação de forças. Nessa forma de considerar o Estado, o estatismo desempenhava o papel dos socialismos reais, de modo que não era tão contraditória a existência de uma esquerda marxista que criticava o Estado burguês, mas buscava a proteção do Estado burguês de compromisso, que na realidade existia no Chile.

Não mais existe, porém, esse imaginário social construído sobre indícios de defasagem entre o Estado e a lógica do capital, os quais efetivamente apareciam na fase anterior do desenvolvimento capitalista. Atualmente, o Estado opera como articulador dos processos de reprodução do sistema, e se equivocaram de maneira sistemática os que acreditaram que esses processos põem a repartição, não por cima da proteção dos lucros do capital, mas, ao menos, em algum lugar importante. Por esse motivo, não é de se estranhar a colocação do Chile no ranking dos países com a pior distribuição de renda do mundo. Pois não existem organizações sindicais fortes que reclamem por uma distribuição centralizada pelo Estado. Uma das condições de uma melhor distribuição da renda é que entre o mercado e o Estado existam, por exemplo, os sindicatos.

O tema dos direitos humanos fazia parte também das promessas básicas, enunciadas no lema “verdade e justiça”. No entanto, existem indícios discursivos de que a Concertación pensava que sua simples existência purificava o país. No momento simbólico em que o Chile se autorrepresentou na Feira Internacional de Sevilha, sua primeira aparição diante do mundo depois que Pinochet deixou a presidência de fato, trasladou-se, da Antártica até as calorosas planícies béticas, um gigantesco iceberg . São possíveis múltiplas leituras interpretativas dessa operação. Mostrar capacidade tecnológica; ressaltar o caráter de país frio, distante da sesta e do trópico. Mas há outra menos visível, e que constitui, talvez, o propósito inconsciente: a purificação do Chile. No iceberg desapareceram os traços do passado e o sangue das vítimas. Bastou a chegada da Concertación­ para que se extinguissem as marcas.

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A presidente Michelle Bachelet durante a inauguração do Museu da Memória e dos Direitos Humanos, espaço para reflexão sobre as violações a dignidade humana durante a ditadura militar no Chile, em Santiago, em 2010 (Juan Carlos Caceres/Museu da Memória)
 

Moderação e possibilismo

Se houvesse que se buscar alguma sustentação para uma interpretação desse tipo, seria possível encontrá-la no caráter do primeiro ato que o governo do democrata-cristão Patricio Aylwin Azócar (1990-1994), o primeiro a ser eleito pela Concertación, organizou a propósito dos direitos humanos: o Informe da Comissão de Verdade e Reconciliação, conhecido como Comissão Rettig. Foi uma instância pluralista que atribuiu convicção sobre mais de 2 mil assassinados ou desaparecidos, reconhecendo, portanto, a existência de práticas de terror e elaborando a lista dos mártires, registrados no grande afresco do Cemitério Geral. Colocou-se como verdade o caráter genocida da ditadura e também restabeleceu-se a dignidade dos indivíduos, acusados, pelos aparatos de publicidade públicos e privados do regime militar, de haver abandonado lares ou fugido sem motivo.

Mas a Comissão realizou uma classificação restrita das vítimas, deixando de fora o fenômeno da tortura em larga escala, e conformou-se em estabelecer os fatos sem apontar culpados. Constituiu um esforço de arranjo sem dimensão punitiva, salvando a situação por meio de um conhecimento genérico da verdade.

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Demonstração popular em lembrança dos desaparecidos da ditadura chilena, em 11 de setembro de 2004, 31 anos após o golpe militar (Uri Rosenheck/Wikimedia Commons)
O avanço na tentativa de fazer justiça proveio dos juízes ou dos processos contra o general Manuel Contreras, a propósito do assassinato do ex-chanceler chileno Orlando Letelier, ou das petições de acusação a Pinochet, apresentadas por Gladys Marín, presidente do Partido Comunista. De fato, o que mudou de forma radical a situação judicial do ditador foi sua detenção em Londres por petição do juiz espanhol Baltasar Garzón.

Nessa ocasião, o governo chileno participou ativamente pela volta de Pinochet ao país, tratando o assunto como razão de Estado e questionando o direito dos tribunais dos países estrangeiros no julgamento de crimes contra a humanidade realizados em seu território. Durante os julgamentos contra Pinochet, o governo manteve a neutralidade, negando-se a declarações de caráter ético-político.

O dilema da política chilena consiste em elucidar como o crescimento econômico combinado com enormes desigualdades produz um alinhamento político moderado do eleitorado, que reparte seus votos entre duas coalizões que se adaptaram à lógica do modelo, deixando pouco espaço político para a esquerda tradicional anticapitalista.

A grande transformação pós-ditatorial do sistema de partidos foi o surgimento de uma esquerda moderada, que não existia entre 1932 e 1973. Essa opção, representada pelo Partido Socialista e pelo Partido pela Democracia (PPD), participou do governo desde 1990 até 2006 e conseguiu uma votação significativa, socializada no “possibilismo” político. Essas pessoas continuam se identificando com a memória histórica e simbólica da esquerda, porém votam por uma coalizão que no governo mantém as políticas centrais do modelo neoliberal.

Cultura mercantil

Em um traço político essencial, a sociedade chilena atual é diferente da que existiu durante os anos1960 e até meados da década seguinte, em que se desenvolveram leituras classistas que conduziam à ideia de um conflito irredutível, de uma contradição que requeria uma “superação” do tipo de sociedade. Atualmente, esse tipo de leitura não existe. A crítica não compromete a esfera da produção, mas a da distribuição. Também se transformou a valorização do conflito, não só eliminando seu caráter irredutível, mas, inclusive, pondo em questão sua eficácia. A sociedade polarizada deu passagem à sociedade consensual, pelo menos no nível das elites políticas com o poder. Essas mudanças da cultura política têm como base modificações muito mais gerais nas orientações e nos sentidos de vida, na definição dos desejos e nas racionalidades.

No Chile pós-Pinochet, foi se fortalecendo a cultura mercantil, que é própria das sociedades capitalistas e que havia se moldado na ditadura, com a implantação do neoliberalismo como ideologia de poder.

Esse tipo de matriz cultural tem como eixo o culto ao dinheiro e ao que este provê, a possibilidade do consumo. Alcançar as condições de superação do estado da reprodução material limitada, isto é, obter bem-estar e conforto se converte no sentido principal da vida. Produz-se uma privatização das aspirações e, portanto, uma despolitização. A política é o reino do público, porém ela só existe se houver uma sociedade disposta à autorreflexão sobre os fins e objetivos da vida social. Necessita-se, para que isso ocorra, de uma sociedade de cidadãos, distinta daquela na qual há uma transformação para o privado e para aspirações individualistas.

Em uma sociedade como a chilena, em que a desigualdade de renda é tão marcada, a possibilidade de que a classe média, os pobres e os setores trabalhadores pudessem visualizar a possibilidade de um certo conforto material e se somassem ao mundo daqueles que podem satisfazer desejos de consumo requereu a instalação de um dispositivo de facilidade de crédito. As grandes lojas outorgam em larga escala cartões de crédito para pessoas que recebem baixos salários. Eles são extraordinariamente funcionais para o processo de acumulação do setor, pois fornecem às lojas a possibilidade de ganhar de forma dupla, pela marca do comércio e pela marca financeira. Mas, por sua vez, criam em trabalhadores de escassos recursos, ou em camadas médias sufocadas pelos gastos de escolaridade, a possibilidade de realizar necessidades e desejos de consumo e de integrar-se simbolicamente, apesar do baixo nível dos salários das categorias sociais a que pertencem. Na prática, o manejo de um conjunto de cartões de lojas permite níveis de endividamento altos, de até três ou quatro vezes o valor do salário, com soluções flexíveis destinadas a evitar que o devedor se veja obrigado a cortar a cadeia de pagamento, à custa de encargos financeiros que se fazem invisíveis ou suportáveis por seu escalonamento temporal. Esse sistema maciço de facilitação do consumo tem uma importância decisiva na própria reprodução do sistema por seus efeitos na dinâmica da demanda interna.

Ademais, esse dispositivo de crédito parece ser uma das explicações da governabilidade política chilena, pois opera compensando os baixos níveis salariais e permitindo que o trabalhador “honrado” não se sinta obrigado a postergar, de maneira total, suas aspirações de consumo. Mediante esse subterfúgio, produz efeitos de integração simbólica na modernidade do Chile, pois a modernidade, ao alcance do assalariado comum, são os shoppings com suas grandes lojas, nas quais se pode ter acesso aos produtos mais exóticos e às marcas mais prestigiadas colocados ao alcance de todos, pelo acesso ao crédito.

Vista aérea da cidade Santiago, capital do Chile (Alobos/Creative Commons)

Modernidade: mito ou realidade?

A modernidade na qual o Chile vive imaginariamente é a fortaleza de seu capitalismo neoliberal, que lhe permitiu integrar-se em nível mundial, firmar tratados de livre-comércio com os países líderes, exportar uma parte significativa de seu produto e ser considerado uma economia exemplar, ainda que em pequena escala. Os líderes políticos no poder, sejam da Aliança pelo Chile ou da Concertación, e os líderes ou as agências externas de avaliação econômica lhe conferem o título de moderno.

Mas se a modernidade capitalista for medida pela capacidade de exportar produtos de alto valor agregado ou pela existência de indústrias com tecnologia de ponta, o Chile está longe de ter alcançado a meta. Nem sequer se pode dizer que sua estratégia de desenvolvimento aponte nessa direção.

Tampouco o Chile é moderno se o adjetivo se vincula à equidade, pois apresenta uma das piores distribuições de renda do mundo e o investimento em educação nos colégios privados é dez vezes maior do que o investido nas escolas municipais. Esse último dado revela que o sistema educacional é um mecanismo reprodutor das desigualdades.

Esse imaginário de modernidade, porém, faz parte dos mecanismos ideológicos por meio dos quais o modelo neoliberal consegue instituir sua dominação e gerar conformismo. Em sua forma forte, essa representação vê o Chile como um país já moderno; em sua forma débil, o vê caminhando pela senda que conduz à modernidade. Em qualquer caso, é sufocada a necessidade de pensar em um futuro alternativo.

Enquanto muitos países da América Latina, em especial do sul, buscam superar as formas de pensar a política e a ordem social do neoliberalismo, o Chile parece estar despertando. O êxito da ditadura pinocheísta pode ser medido nessa sujeição às categorias neoliberais e a essa concepção do mundo.

(atualização) 2005 - 2015

por Emir Sader

O primeiro governo Michele Bachelet

Em 2006, Michele Bachelet foi eleita presidente do Chile. Era a primeira vez que o mandato teria quatro anos; era a primeira vez que uma mulher conquistava o posto mais alto da República; era a quarta vez consecutiva que um representante da Concertación, a coalizão de centro-esquerda, vencia as eleições; e era a segunda vez consecutiva de um filiado do Partido Socialista no poder. Bachelet poderia ser lembrada por tudo isso. Seu governo, no entanto, ficou marcado por reações distintas a dois grandes acontecimentos: frente à primeira onda de manifestações estudantis que sacudiram o país; e diante dos efeitos da crise econômica que jogou o mundo numa profunda e prolongada recessão a partir de 2008.

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O presidente Sebastián Piñera em encontro com o Primeiro Ministro do Reino Unido, David Cameron, em Londres, em outubro de 2010 (Gobierno de Chile)
Quem protagonizou as manifestações estudantis foram os secundaristas. E o aumento das taxas de inscrição para o vestibular foi o mote que os levou às ruas. Mas a insatisfação era maior. Vinha da estrutura herdada e intocada dos anos Pinochet, que privatizara o ensino. Desde então, o custo da educação crescia, enquanto a qualidade viajava na direção oposta. As manifestações ganharam corpo à medida que a repressão policial aumentava e o governo se recusava ao diálogo. No auge da crise, o ministro da Educação acabou substituído e o governo resolveu ouvir os manifestantes. As negociações se prolongaram por meses e, ao final, os estudantes saíram vitoriosos, com as suas principais reivindicações atendidas. Mas a imagem do governo acabou arranhada depois do episódio.

Para combater a crise econômica internacional, Bachelet se valeu de um fundo de reserva obtido graças às exportações de cobre, cuja cotação aumentara nos primeiros anos de seu mandato. Com dinheiro em caixa, o governo lançou um pacote de estímulos fiscais e de medidas para proteger as camadas sociais mais vulneráveis. Os serviços de saúde, por exemplo, se tornaram gratuitos para cidadãos a partir dos 60 anos, assim como a cobertura previdenciária. No plano trabalhista, o governo manteve a correção salarial sempre acima da inflação. E ainda houve caixa para enfrentar a destruição provocada pelo terremoto de fevereiro de 2010, que matou mais de quinhentas pessoas e chegou a destruir cidades inteiras na costa central do país.

Bachelet iniciou o governo com grande popularidade, que foi minguando conforme mostrava inabilidade para lidar com protestos como o dos estudantes, principalmente. No entanto, a sua avaliação voltaria a subir quando enfrentou prontamente os efeitos da crise econômica mundial. Ela chegou a ser a governante mais bem avaliada desde a redemocratização do país. Mesmo assim, não conseguiu eleger seu sucessor.

Assim, a oposição lançou a candidatura de Sebastien Piñera, empresário de sucesso, sócio, entre outras empresas, da companhia aérea Lan Chile. Para enfrentá-lo, a Concertación convocou o ex-presidente Eduardo Frei, cujo forte nunca foi o carisma. Piñera venceu no segundo turno, em janeiro de 2010, com 51,6% dos votos. Dessa forma, a direita chilena reconquistava a presidência depois de vinte anos de governos de centro-esquerda.

O governo Sebastien Piñera

No dia 11 de março, por volta do meio-dia, quando Bachelet transmitia o cargo a Sebastien Piñera no Congresso Nacional, em Santiago, a terra voltou a tremer. Um terremoto de magnitude 6,9 sacudiu o centro do país e se fez sentir na capital, numa espécie de prenúncio das convulsões que Piñera enfrentaria ao longo de seu governo. De saída, ele teve de negociar a questão da fronteira marítima com o Peru; lidar com uma greve dos índios mapuches; encarar o espetáculo de mídia que se transformou o resgate de trabalhadores presos dentro de uma mina que havia desabado; e dar conta de grandes protestos no sul do país, reclamando do aumento do preço do gás natural.

No segundo ano de seu mandato, em 2011, as grandes mobilizações estudantis pelo ensino universitário gratuito pararam o país e foram determinantes para o destino do governo. O avassalador processo de privatizações da ditadura de Pinochet havia extinguido o caráter gratuito das universidades públicas. Gerações de jovens tinham convivido com esse fenômeno, até que as mobilizações estudantis colocaram o tema na pauta nacional.  O movimento teve amplo apoio da população. Afinal, boa parte da classe média havia se endividado para pagar a graduação dos filhos e não conseguia mais honrar os seus compromissos.

No entanto, em nenhum momento o governo foi capaz de responder às reivindicações estudantis. A popularidade de Piñera foi derretendo, até bater na pior avaliação entre todos os mandatários eleitos depois da Era Pinochet.

Manifestações estudantis em Santiago, em 2011 (Simenon/Creative Commons)

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Manifestações estudantis em Santiago, em 2011 (Simenon/Creative Commons)

O segundo governo Bachelet

Diante desse cenário, o nome de Michele Bachelet surgiu como uma aposta segura para o retorno da Concertación ao poder. Ungida candidata, ela apresentou um plano de arrecadação de recursos para bancar a volta da gratuidade às universidades públicas. Os recursos viriam de um projeto de reforma tributária. Ela também se comprometeu a realizar uma reforma eleitoral para corrigir as distorções do sistema herdado dos tempos de Pinochet.

À frente da Nueva Mayoría, uma coalizão ainda mais ampla que a Concertación, Bachelet foi eleita com 62% dos votos, em novembro de 2013, batendo a candidata da situação, Evelyn Matthey, ex-ministra do Trabalho de Piñera. Pela primeira vez, o voto não foi obrigatório e apenas 30% do eleitorado chileno compareceu às urnas.

Depois, eleita com maioria absoluta no Parlamento, Bachelet conseguiu aprovar seu projeto de reforma tributária, que elevou os impostos do grande empresariado. Este reagiu imediatamente, contribuindo para a diminuição do ritmo de crescimento da economia. No final de 2014, o PIB chileno havia caído de 4% para 1,7%.

Em seguida, a presidente encaminhou ao Congresso o projeto de restabelecimento da gratuidade das universidades públicas, sua principal promessa de campanha, que foi aprovado. O Legislativo também aprovou outra iniciativa do governo, a reforma eleitoral, que acabou com as distorções representativas do sistema binominal em vigor desde 1989. Assim, as eleições parlamentares de 2017 serão as primeiras dentro das novas regras. E o Congresso também deve votar a reforma trabalhista, que, entre outros avanços, impede a substituição de trabalhadores em caso de greve e fortalece a negociação coletiva. Outro ato presidencial foi a anulação da lei de anistia decretada pelo ditador Augusto Pinochet.

Os primeiros meses de governo de Michele Bachelet foram conturbados em razão de um terremoto, desta vez na região de Arica, mais ao norte, e de um grande incêndio na região de Valparaíso, no centro do país. Além disso, houve um atentado a bomba no metrô da capital, Santiago, que deixou catorze feridos. O ato foi reivindicado por um grupo anarquista.

No plano internacional, o Tribunal de Haya decidiu a favor do Peru o contencioso envolvendo a fronteira marítima entre os dois países. Problema maior, porém, pode representar a petição que a Bolívia apresentou ao mesmo tribunal, reivindicado sua saída para o Pacífico. Uma vitória boliviana significaria uma séria perda territorial para o Chile. Já no plano regional, Bachelet baixou o perfil da participação chilena na Aliança do Pacífico, bloco continental que reúne Chile, Peru, Colômbia e México, aproximando-se mais do Mercosul e intensificando a presença do país na União das Nações Sul-Americanas (Unasul).      

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O presidente Sebastian Piñera em visita a mina San José, exibe bilhete dos 33 mineiros, afirmando que estavam vivos: “Estamos bien en el refugio los 33” (Gobierno de Chile)

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O primeiro socorrista, Manuel_González, se prepara para entrar na cápsula para a descida de 2 mil pés até os mineiros presos na Mina San Jose, em Copiapo no Chile, em 13 de outubro de 2010 (Gobierno de Chile)

800px-Mina_San_José_-_Luis_Urzúa_-_Gobierno_de_Chile.jpg
O líder dos mineiros presos na Mina San José, Luis Urzúa, último a ser erigido para a liberdade comemora com o presidente Piñera, em 13 de outubro de 2010 (Gobierno de Chile)

 

Dados Estatísticos 

Indicadores demográficos do Chile

1950

1960

1970

1980

1990

2000

2010

2020*

População 
(em mil habitantes)

6.082

7.649

9.579

11.192

13.214

15.454

17.151

18.645

• Sexo masculino (%)

49,53

49,45

49,36

49,33

49,40

49,47

49,46

... 

• Sexo feminino (%)

50,47

50,55

50,64

50,67

50,60

50,53

50,54

... 

Densidade demográfica 
(hab./km²
)

8

10

13

15

17

20

23

25

Taxa bruta de natalidade 
(por mil habitantes)**

36,09

37,66

27,34

23,38

21,90

15,75

14,0*

12,6 

Taxa de crescimento
populacional**

2,14

2,47

1,70

1,60

1,78

1,11

1,29*

0,96 

Expectativa de vida 
(anos)**

54,81

58,05

63,58

70,76

74,46

77,86

79,8*

82,0 

População entre 
0 e 14 anos de idade (%)

36,72

39,51

39,71

33,07

29,96

27,78

22,14

19,6 

População com 
mais de 65 anos (%)

4,26

4,81

5,08

5,59

6,12

7,25

9,18

12,3 

• População urbana (%)¹

58,42

67,84

75,23

81,24

83,27

86,07

88,59

90,30 

• População rural (%)¹

41,58

32,16

24,77

18,76

16,73

13,93

11,41

9,7 

Participação na população
latino-americana (%)***

3,62

3,47

3,33

3,07

2,97

2,94

2,88

2,82 

Participação na 
população mundial (%)

0,241

0,253

0,260

0,252

0,248

0,252

0,248

0,242 

Fontes: ONU. World Population Prospects: The 2012 Revision Population Database
¹ Dados sobre a população urbana e rural retirados de ONU. World  Urbanization Prospects, the 2014 Revision  

* Projeção. | ** Estimativas por quinquênios. | *** Inclui o Caribe.

Obs.: Informações sobre fontes primárias e metodologia de apuração (incluindo eventuais mudanças) são encontradas na base de dados indicada.

Indicadores socioeconômicos do Chile

1960

1970

1980

1990

2000

2010

2020*

PIB (em milhões de US$ 
a preços constantes de 2010)

80.233,2

149,160,5

217.556,2

...

• Participação no PIB 
latino-americano (%)

3,031

4,166

4,374

...

PIB per capita (em US$
a preços constantes 2010)

6.071,6

9.651,0

12.686,2

...

Exportações anuais 
(em milhões de US$)

4.705,0

8.372,7

19.210,2

71.108,5

...

• Exportação de produtos
manufaturados (%)

4,3

9,1

11,3

16,2

12,6

...

• Exportação de produtos
primários (%)

95,7

90,9

88,7

83,8

87,4

...

Importações anuais 
(em milhões de US$)

5.469,0

7.089,2

17.091,4

55.372,1

...

Exportações-importações 
(em milhões US$)

-764,0

1.283,5

2.118,9

15.736,5

...

Investimentos estrangeiros diretos líquidos 
(em milhões de US$)

213,0

653,7

873,4

6.264,4

...

População Economicamente
Ativa (PEA)

...

...

3.600.282

4.817.926

6.215.204

7.765.918

9.093.433

• PEA do sexo masculino (%)

...

...

74,82

70,62

65,22

62,14

59,50

• PEA do sexo feminino (%)

...

...

25,18

29,38

34,78

37,86

40,50

Taxa anual de desemprego urbano

8,70

10,80

...

Gastos públicos em
 educação (% do PIB)

4,44

2,36

3,71

4,18

...

Gastos públicos em
saúde (% do PIB)²

...

...

3,33

3,42

...

Dívida externa total 
(em milhões de US$)

11.207,0

18.576,0

37.177,0

86.737,8

...

Analfabetismo acima 
de 15 anos (%)

...

...

5,20

3,90

...

...

• Analfabetismo masculino (%)

...

...

4,90

3,70

...

...

• Analfabetismo feminino (%)

...

...

5,40

4,00

...

...

Matrículas no
ciclo primário¹

1.752.005

1.754.075

1.593.486

1.798.515

1.546.543

...

Matrículas no
ciclo secundário¹

590.130

969.693

1.177.511

1.391.283

1.518.224

...

Matrículas no
ciclo terciário¹

78.430

145.497

452.177

987.643

...

Professores

...

...

205.462

...

Médicos**

4.621

4.401

4.128

6.085

18.236

23.523

...

Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH)³

0,739

0,785

0,843

 

Fontes: CEPALSTAT
¹ UNESCO Institute for Statistics
² Calculado a partir dos dados do Global Health Observatoryda Organização Mundial da Saúde
³ Fonte: UNDP. Countries Profiles

* Projeção. | ** De 1960 e 1990 os dados se referem apenas ao Ministério da Saúde, de 2000 em diante contabilizam-se os médicos inscritos no Colégio Médico e que trabalham no país

Obs.: Informações sobre fontes primárias e metodologia de apuração (incluindo eventuais mudanças) são encontradas na base de dados ou no documento indicados.

 

Crescimento e estancamento (1961-1969)

Participação no PIB (%)

Anos

Crescimento 
do PIB (%)

Mineração

Indústria

Comércio

1961

4,8

9,9

7,4

10,2

1962

4,7

7,9

9,4

2,0

1963

6,3

1,1

3,9

3,0

1964

2,2

6,2

5,1

2,4

1965

0,8

-8,7

4,4

-5,4

1966

11,2

4,2

12,6

17,6

1967

3,2

2,4

2,9

3,7

1968

3,6

4,4

3,2

2,3

1969

3,7

2,4

2,7

6,0

Fonte: Banco Central, Indicadores Econômicos e Sociais, 1960-1988.

 

Evolução da distribuição de renda (1987-1996)

Decil

1987

1990

1992

1994

1996

I

1,5

1,6

1,7

1,5

1,4

II

2,8

2,8

2,9

2,8

2,7

III

3,6

3,7

3,8

3,6

3,6

IV

4,3

4,5

4,7

4,6

4,6

V

5,4

5,4

5,6

5,6

5,5

VI

6,3

6,9

6,6

6,4

6,4

VII

8,1

7,8

8,0

8,0

8,1

VIII

10,9

10,3

10,4

10,5

11,0

IX

15,9

15,1

14,7

15,3

15,4

X

41,3

41,8

41,6

41,6

41,3

Fonte: Mideplan, pobreza e distribuição de renda 
no Chile, 1997.

Mapas

chile-1.png

chile-2.png

 

Bibliografia

  • GARCÉS, Joan. Allende y la experiencia chilena, Santiago: Ensayo, 1990.
  • GARRETON, Manoel Antonio. Reconstruir la política. Santiago: Andante, 1997.
  • MOULIAN, Tomas. Chile actual: Anatomía de un mito. Santiago: LOM, 1997. (Serie Punto de Fuga, Colección sin Norte)
  • Conversación interrumpida con Allende. Santiago: LOM, 1997. (Serie Punto de Fuga, Colección sin Norte)
  • OLAVE CASTILLO, Patrícia. El proyecto neoliberal en Chile y la construcción de una nueva economía. México, D.F.: El Caballito, 1997.
  • OSÓRIO, Jaime. Raíces de la democracia en Chile. México, D.F.: Era, 1990.
  • RIESCO, Manuel. Desarrollo del capitalismo en Chile bajo Pinochet. Santiago: ICAL, 1989.
  • SALAZAR, Gabriel. Historia de la acumulación capitalista en Chile. Santiago: LOM, 2003.
  • SALAZAR, Gabriel; PINTO, Julio. Historia contemporánea de Chile I e II. Santiago: LOM, 1999.
  • SILVA GALDAMES, Osvaldo. Historia contemporánea de Chile. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1995.