Focalização versus universalização

No âmbito dos programas de alívio da pobreza que prevaleceram na América Latina nas décadas de 1980 e sobretudo de 1990, foram questionados o “acesso segmentado” que caracterizaria os serviços sociais estatais, bem como o “universalismo apenas aparente” das políticas sociais. Exigiu-se também superar o “tradicionalismo”, que dificultaria a reorientação da política social. E não caberia ampliar o programa já existente, que não teria contribuído para a redução da pobreza. Dessa forma, foi estabelecida uma série de princípios que reorientaram as políticas sociais. O primeiro deles foi a focalização. Partindo do pressuposto de que a escassez de recursos era um obstáculo para a prática de políticas universalistas, a focalização fundamentava-se na necessidade de concentrar as ações sociais nos mais pobres.

Política social e ajuste estrutural

A adoção da focalização das prestações sociais identificaria, com a maior precisão possível em cada caso, o conjunto dos beneficiários potenciais, com o objetivo de provocar um impacto per capita elevado mediante transferências monetárias – o chamado “subsídio à demanda”, preconizado pelo Banco Mundial –, ou a entrega de bens e serviços.

A fim de que os serviços chegassem realmente aos supostos beneficiários, seria preciso: redefinir a oferta de serviços sociais, superando os entraves “burocráticos” e propondo alternativas para alterar a forma em que se realizariam a oferta e a recepção dos serviços e bens; facilitar a demanda por prestações sociais, proporcionando informações sobre os serviços existentes, utilizando, de preferência, os meios de comunicação de massas; reduzir os custos diretos ou indiretos para os usuários, capazes de desestimular a solicitação pelo serviço (tais como os custos de material escolar, roupa, merenda, transporte, no caso da educação) e, ao contrário, fornecer algum tipo de subsídio aos usuários, estimulando-os; considerar as “estratégias de sobrevivência” das famílias, ou seja, o desenho de políticas sociais deveria atentar para a forma de atuação e de repartição dos bens no seio da família.

A perspectiva segundo a qual os grupos ou pessoas que não estivessem em condições de satisfazer suas necessidades mais urgentes deveriam ser atendidos preferencialmente assumiu maior ênfase após a crise econômica dos anos 1980. Para que se pudesse gerar essa reorientação da ação governamental, colocou-se como necessária, previamente, a existência de um Estado mais flexível, mas que mantivesse a sua autoridade. Suas funções principais seriam as de “compensação” e “concertação social”.

Apesar dessas declarações de intenção, o que se verificou durante grande parte da década de 1980, marcada pela crise econômica e pela queda do gasto social, foi que a política social assumiu um caráter compensatório e de emergência devido aos efeitos negativos que os programas de ajuste econômico tiveram para a população socialmente vulnerável. Nesse contexto, o desenho da política social subordinou-se à política econômica de ajuste, priorizando a busca de mecanismos para otimizar o decrescente gasto social, focalizando seu destino e revisando a estrutura dos subsídios. Implementaram-se fundos sociais de emergência para compensar a queda da renda dos grupos mais pobres. Promoveram-se ações de “autoajuda” e os trabalhos comunitários cobraram relevância nas estratégias de luta contra a pobreza. Essas posições eram defendidas principalmente pelo Banco Mundial, grande financiador de programas focalizados na pobreza.

Agravamento da desigualdade social

A Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) destacava nesse período a necessidade de redefinir a relação entre política econômica e política social. Tratava-se de resgatar essa última como parte fundamental de uma política de desenvolvimento integral, na qual o social abandonasse o caráter compensatório a fim de assumir um papel de protagonista nos esforços para levar a efeito uma transformação que conduzisse a sociedades mais equitativas. A política econômica e a política social deveriam articular-se para dar início a um tipo de desenvolvimento integral, que harmonizasse a transformação produtiva com a justiça social.

No âmbito dos governos, no entanto, persistia uma dissociação entre esse ideário, muitas vezes expresso em documentos oficiais, e a atuação concreta com base em políticas econômicas e sociais. Quanto ao papel do Estado em matéria social, a maioria dos governos latino-americanos propunha a necessidade de sua reorganização, em especial a descentralização de suas funções, transferindo-as a instâncias locais de caráter privado. Essas medidas, embora na aparência não significassem um debilitamento da presença do Estado no plano das políticas de desenvolvimento social, produziram uma dispersão de esforços e de recursos em direções “competitivas”. A pretexto da busca do aumento de sua eficiência e eficácia, tenderam a diminuir a cobertura universal da população e a promover atendimentos distintos, de caráter discricionário, que consagravam ou agravavam a desigualdade. Nesse sentido, qualquer que fosse a avaliação “micro” das propostas e políticas concretas, estas estiveram longe de contribuir para um “desenvolvimento social mais equilibrado”, conforme preconizado pela CEPAL e pela retórica de alguns governos latino-americanos. Desqualificado como “utópico” ou “irrealizável”, o princípio da universalidade foi subordinado às chamadas “restrições” econômicas. As prioridades e políticas sociais foram reduzidas a algo tópico e residual, por meio de inovações gerenciais, quase sempre associadas a estratégias do tipo “autoajuda”, que resultaram na redução da oferta de serviços e benefícios públicos.

O alegado caráter “imprescindível” dessas políticas, no entanto, ainda está para ser demonstrado, sobretudo nos países da América Latina. Suas consequências, principalmente as sociais, mas também as econômicas, nem sequer vêm satisfazendo aos princípios e às metas preconizados pelos próprios mentores dessas políticas. Seu caráter supostamente neutro, tão propalado por seus propositores (sobretudo os organismos internacionais) e defendido pelos governantes que adotam essas políticas, tampouco se sustenta. O desastre social na América Latina já não pode ser escondido. O problema continua sendo a repetição “requentada” dos diagnósticos e, sobretudo, das “prescrições” para as nossas questões. A focalização é ainda hegemônica em todas as estratégias sociais dos governos latino-americanos de diversos matizes políticos.