Performance e Teatro

Numerosas propostas da cena latino-americana atual abrem suas fronteiras genéricas e de linguagem, refutam noções canônicas da dramaturgia e da própria teatralidade, e revisam os mecanismos de comunicação com os espectadores, lançando-se em experiências fronteiriças, ligadas ao que se chamou “performance” (ainda que do termo, movediço e ambíguo, se encontrem quase infinitas definições).

Apesar de, como aponta o estudioso mexicano Antonio Prieto, os estudos da teatralidade (da teatrologia à etnocenologia) nos últimos tempos gozarem de relativa difusão e aceitação na América Latina em geral, o mesmo não ocorre com os estudos das performances, confinados à academia primeiro-mundista.

É útil distinguir duas grandes acepções. A primeira parte dos estudos da performance e da academia norte-americana, liderada por Richard Schechner na Tisch School, na Universidade de Nova York, e favorece o enfoque teórico a partir da análise histórica, designando qualquer prática de representação, o que inclui tanto processos como resultados. Compreende todo ato vital que transmite saber social, memória e sentido de identidade por meio de ações reiteradas – “twice-behaved behavior”. Essa acepção foi aplicada por muitos pesquisadores ao estudo de figuras e fenômenos da cena latino-americana e caribenha e se difundiu em revistas especializadas.

Uma variante é a que propõe o crítico teatral porto-riquenho de origem norte-americana Lowell Fiet:

Teatro é performance, mas performance nem sempre é teatro. Minha preferência seria inverter esta equação para que “teatro” seja o termo “guarda-chuva” e “performance” seja uma forma teatral especializada […] não obstante, já é demasiado tarde para deter o fluxo histórico em torno do conceito: por ora, performance representa uma supraestrutura conceitual sob a qual a “arte do teatro”, assim como a “arte da performance” são só partes de um sem-número de práticas comunicativas, sociais, culturais e artísticas que constituem o campo da performance.

Interação

Do outro lado, está a vertente que na América Latina assume performance como arte-ação ou arte conceitual. Para muitos, trata-se de um campo privativo dos artistas visuais que o praticam como uma forma de ultrapassar seus marcos tradicionais em busca de uma maior presença e interação com o público; para outros, trata-se de uma alternativa interessante para experimentar e explorar o limiar.

Enquanto muitos festivais latino-americanos de teatro se atêm à ortodoxia disciplinar e só abrem fronteiras à dança e às suas formas contemporâneas de diálogo com o teatro, existem também eventos dedicados exclusivamente à performance – a Mostra Internacional de Performance, no Ex Teresa Arte Atual, Cidade do México, desde inícios dos anos 1990 –, alguns festivais e eventos estimularam a interação, ao apresentar artistas de ambas as manifestações em espaços comuns e dialogantes. Entre eles, os encontros transdisciplinares anuais do Instituto Hemisférico de Performance e Política, realizados desde 2000; a temporada de Teatro Latino-americano e Caribenho Maio Teatral, Casa de las Américas, Havana; o IV Festival Internacional de Teatro de Santo Domingo (2001), que incluiu o ciclo de performance e conferências “Dias hábeis, táticas celulares para a nova economia política do sentido”, ou o Festival Internacional de Teatro Latino de Los Angeles (primeira edição, 2002), que acolheu a XXXI Oficina da Eitalc, ambos dedicados ao tema teatro e performance, com um seminário intitulado “Diálogo nas fronteiras das textualidades representacionais”.

Manifestações essenciais desse cruzamento não são novas. A pesquisadora mexicana Josefina Alcázar, que vê a performance como herdeira de múltiplas linhas, como os hapennings, fluxos, o teatro pessoal e os efêmeros pânicos – criados por Alejandro Jodorowsky, Fernando Arrabal e Roland Topor nos anos 60 – fazem referência a um levantamento situacionista de Jodorowsky, Tonadas, no II Festival de Teatro Latino-americano, da Casa de las Américas, em Havana, 1966.

Há outras evidências. Na prática do Teatro Escambray, inserido no núcleo rural da serra homônima, durante a criação de El juicio, de Gilda Hernández, o público elegia oito representantes dentre as pessoas de maior prestígio da comunidade para julgar um antigo colaborador dos bandos contrarrevolucionários. Ao implicar-se no jogo teatral, interrogar as testemunhas e analisar o exposto, deviam decidir se o camponês julgado devia permanecer na região ou ser levado para fora dela. A perspectiva de obra aberta, que transforma essencialmente o discurso com um parênteses estrutural, condiciona uma postura nova dos espectadores e atores; e para estes ainda, de risco frente ao improviso, suficientemente flexível para provocar a imprescindível participação, incorporar elementos aleatórios e controlar os pressupostos éticos e dramáticos.

Histórias e memórias

Ao celebrar seus trinta anos de existência, o grupo peruano Yuyachkani criou Hecho en el Perú, vitrinas para un museo de la memoria, instalação nutrida de várias fontes: o trabalho de cada um dos atores vinculado a suas histórias pessoais; a experiência em ações de rua anteriores, nas quais os atores não representam exatamente um papel; e o intercâmbio com artistas conceituais como Guillermo Gómez-Peña. Hecho en el Perú escolhe um espaço de galeria em que, em seis vitrines alinhadas de três em três e pelas quais perambulam os espectadores, seis atores mostram ícones da sociedade e da cultura peruanas. Os atores-ativistas não representam; eles apresentam, pesquisam in situ sobre a presença, a projeção de uma ideia, mais que de uma personagem e um novo tipo de relação com o público.

Nayra (La memoria), dirigida por Santiago García com La Candelaria, da Colômbia, não parte de um texto nem segue um argumento, mas cruza simultânea e sincronicamente passagens de personagens que invocam diversos tipos de fé, enunciam postulados da ciência e que, ao mover-se em um espaço entre circular e octogonal – reconstrução da maloca indígena – propõem uma fecunda renovação de seu discurso. É, ao mesmo tempo, a criação mais coletiva empreendida e o processo mais respeitoso com as propostas individuais. Cada ator construiu sua instalação, recriou mitos e deu forma a ícones pessoais e coletivos, na fugacidade dos intercâmbios. Nayra revela uma vocação de transgredir limites, de não apelar diretamente à razão, mas de intervir no inconsciente ou na sensorialidade, na memória atávica, a partir do efeito desconcertante do fragmento e da força da presença.