Freire, Paulo

Freire, Paulo

Recife, 1921 - São Paulo (Brasil), 1997

O educador brasileiro foi, sem dúvida, o pedagogo latino-americano que mais influenciou o pensamento e as ações político-pedagógicas populares dos países do Terceiro Mundo no século XX. Embora suas contribuições mais importantes e difundidas tenham se centrado na educação popular e alfabetização de adultos, suas contribuições também enriqueceram a pedagogia escolar e a teoria social da escolarização. De fato, sua obra intelec­tual e política não somente ocupa um lugar proeminente na tradição social crítica da educação, mas também tem lugar no pensamento filosófico, político e social latino-americano, sendo uma de suas expressões mais notórias e inovadoras.

Paulo Reglus Neves Freire nasceu em 19 de setembro de 1921 no Recife. Casou-se com Elza Maria Costa Oliveira, professora primária, com a qual teve cinco filhos. Recém-casado, Freire trabalhou como professor de português no colégio secundário Oswaldo Cruz, onde ele já havia estudado. Embora aspirasse a ser educador, graduou-se em direito na Universidade Federal de Pernambuco, por ser a única carreira universitária da região relacionada com as ciências humanas. Depois de trabalhar como advogado por curto período, regressou ao magistério, vestindo roupa de luto como protesto e tristeza pela Segunda Guerra Mundial.

Em 1947, tornou-se diretor do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social da Indústria (SESI), órgão recém-criado pela Confederação Nacional de Indústrias (CNI). Junto a outros educadores, liderados por Raquel Castro, fundou, nos anos 1950, o Instituto Capibaribe, instituição privada reconhecida no Recife por seu alto nível de ensino e formação científica e ética. Em 1958, participou do II Congresso Nacional de Educação de Adultos no Rio de Janeiro.

Em 1959, obteve o título de doutor em filosofia e história da Educação, defendendo a tese “Educação e atualidade brasileira”, e foi nomeado professor de filosofia e história da educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Simultaneamente, foi eleito um dos primeiros quinze membros do Conselho Estatal de Educação de Pernambuco, por ser uma das pessoas de mais “notório saber e experiência em matéria de educação e cultura”. Em 1961, foi designado diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade do Recife. Teve suas primeiras experiências como professor de educação superior na Escola de Serviço Social da mesma universidade.

Alfabetização como leitura do mundo

Usando uma linguagem muito peculiar e sugestiva, com uma filosofia de educação absolutamente inovadora, Paulo Freire propunha que a alfabetização e a educação de adultos fossem articuladas em um projeto de liberação política e cultural mais amplo e, por isso, dirigidas à “leitura do mundo” e à tomada de consciên­cia crítica do cotidiano opressivo vivido pelos setores populares. Lutou para que a educação popular se convertesse numa ação político-cultural pela emancipação dos oprimidos, estimulando a cooperação, a decisão autônoma, a participação política e a responsabilidade social e ética dos educandos.

A teoria pedagógico-política freiriana deve ser compreendida no contexto em que surgiu e, por isso mesmo, como uma política de democratização radical do saber. Nos anos 1960, no Nordeste do Brasil, a metade de seus milhões de habitantes era marginalizada e analfabeta. Como Freire afirmava, viviam numa “cultura do silêncio”, submetidos pela “pedagogia do opressor”. Era preciso “dar-lhes a palavra” ou, melhor, que eles mesmos a tomassem, a recriassem e a usassem para escrever sua própria história.

Com base nessa autêntica filosofia política e antropológica da educação, Freire foi desenvolvendo, em diversas experiências durante a década de 1960, o “método de alfabetização” fundado no princípio de que o processo educativo deve partir da realidade que rodeia o educando e da aliança entre teoria e prática pedagógicas. Esquematicamente, o método consiste em:

1) observação e questionamento antropológicos por parte dos educadores, com o objetivo de obter “sintonia cultural” com o universo verbal e de sentido em que vivem os educandos;

2) busca das palavras “geradoras”, com ênfase na riqueza silábica e no sentido vivencial, de experiência, das palavras;

3) codificação das palavras em imagens visuais que estimulem a transição da “cultura do silêncio” para a consciência cultural e política crítica;

4) “problematização” do cenário cultural e político concreto;

5) “problematização” das palavras geradoras por meio de um diálogo nos “círculos de cultura”;

6) decodificação crítica e criativa do mundo para que os participantes se assumam como sujeitos construtores de seu próprio destino.

As primeiras experiências aconteceram em 1963, com trezentos trabalhadores rurais que foram alfabetizados em 45 dias. No ano seguinte, o então presidente do Brasil, João Goulart, convidou-o para reorganizar a alfabetização de adultos em âmbito nacional. Estava prevista a instalação de 20 mil círculos de cultura, para 2 milhões de analfabetos. Quando Freire estava ativamente envolvido com os trabalhos do Programa Nacional de Alfabetização, foi deflagrado o golpe militar de 31 de março de 1964, liderado pelo general Humberto de Alencar Castelo Branco. Antes de ser forçosamente exilado, passou 75 dias na prisão, considerado um perigoso pedagogo político, acusado de “subversivo e ignorante”.

Experiência no exílio consolida teoria

Refugiado na embaixada da Bolívia, depois de passar alguns dias naquele país, viajou para o Chile, onde passou a trabalhar para várias organizações internacionais. Participou da reforma educacional conduzida pelo governo democrata-cristão de Eduardo Frei Montalva com o apoio da Frente de Ação Popular de Esquerda. O governo chileno necessitava de novos profissionais e técnicos para consolidar as mudanças iniciadas principalmente no setor agrário. Freire foi convidado para trabalhar na formação desses novos técnicos. No Chile, encontrou um espaço político, social e educativo muito dinâmico, rico e desafiador, que lhe permitiu revisar e reformular seu método, sistematizando-o­ teoricamente. A experiência durou até 1968 e foi fundamental para consolidar sua obra político-pedagógica.

Resultados desse rico processo foram seus livros Educação como prática da liberdade, traduzido para o espanhol em 1969, e Pedagogia do oprimido, publicado em espanhol no mesmo ano. Essas obras, sobretudo a última, tiveram em sua concepção grande influência de reflexões filosóficas e sociológicas de várias vertentes, entre as quais a fenomenologia, o existencialismo, o cristianismo, o personalismo, o marxismo e o hegelianismo. No centro de suas leituras heterodoxas, que incluíam Freud, Jung, Adler, Frantz Fanon e Fromm, mas sempre dialogando com a prática educativa libertadora, Freire começou a desenvolver conceitualmente uma “psicologia da opressão”, uma “pedagogia para a libertação” e a “consciência crítica” dos setores oprimidos e colonizados. Termos cunhados por Freire nessa época, como “educação bancária”, “alfabetização como conscientização” e “educação libertadora”, instalaram-se definitivamente na linguagem educativa crítica.

Logo depois de deixar o Chile e de passar um ano trabalhando e estudando na Universidade de Harvard (EUA), mudou-se para Genebra, onde completou dezesseis anos de exílio. De lá viajou como “conselheiro andante” do Departamento de Educação do Conselho Mundial das Igrejas por terras da África, Ásia, Oceania e América, com exceção do Brasil. Assessorou, nesse período, governos e organizações de vários países africanos, recém-liberados da colonização europeia, ajudando-os a implantar seus sistemas educacionais, baseados no princípio da autodeterminação.

Sobre essas experiências, Freire escreveu outra de suas obras mais importantes: Cartas à Guiné-Bissau. Manteve diálogo direto com Amílcar Cabral e Julius Nyerere, enquanto sua obra ganhava influências, também heterodoxas, de Gramsci, Kosik, Habermas e Henri Giroux. Freire regressou aos Estados Unidos, vinculando-se ativamente à pedagogia crítica norte-americana.

Regresso traz vivência administrativa

Em agosto de 1979, voltou para o Brasil, amparado pela anistia política. Depois de tantos anos de ausência, e procurando “reaprender” o Brasil, realizou incessantes viagens pelo país, proferindo conferências, publicando artigos, notas, opiniões e livros e estabelecendo diálogo com os estudantes e professores. Foi professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Recebeu dezenas de títulos de doutor honoris causa de universidades de todo o mundo, além de numerosos prêmios, incluindo o da Paz da Unesco, em 1987.

Desde seu regresso, além de comprometer-se intensamente com a atividade acadêmica, manteve uma vigorosa militância política durante a transição democrática nos movimentos sociais e no Partido dos Trabalhadores (PT). Freire demonstrou mais uma vez seu compromisso social, político e pedagógico com as maiorias excluídas quando assumiu a Secretaria de Educação do Município de São Paulo, durante a administração da então petista Luíza Erundina (1989 e 1992).

A experiência de governo contribuiu para que Paulo Freire repensasse e aprofundasse seu pensamento político-pedagógico, sobretudo no que dizia respeito à tensão existente entre as tradições políticas e culturais da educação pública e da educação popular, sempre presente na América Latina. Nas suas últimas obras, sobretudo em Pedagogia da esperança , Professora sim, tia não. Cartas a quem ousa ensinar e Pedagogia da Autonomia – saberes necessário à prática educativa , Freire manifestou claramente, com a linguagem simples e coloquial que o caracterizou sempre, a transferência de suas preocupações políticas e educativas para o campo da administração escolar pública.

Morreu em 2 de maio de 1997, aos 75 anos, deixando ao mundo um extraordinário legado intelectual e ético, baseado na riqueza de sua obra e na dignidade com que soube construir sua vida em coerência com seu pensamento. Foi nomeado patrono da educação brasileira por lei sancionada em 13 de abril de 2012.