Fernandes, Florestan

Fernandes, Florestan

São Paulo (Brasil), 1920 - 1995

Considerado por muitos o mais importante sociólogo brasileiro, Florestan Fernandes era filho de uma imigrante portuguesa pobre e analfabeta, que trabalhava como lavadeira, e não chegou a conhecer o pai, morto logo após o seu nascimento. Começou a trabalhar aos seis anos, como ajudante de barbeiro, e foi obrigado a interromper os estudos na terceira série primária, para seguir trabalhando. Aos dezessete anos, foi incentivado a retomar os estudos por professores do Ginásio Riachuelo, que conseguiram para ele um emprego diurno. Inscreveu-se então num curso supletivo e, em 1941, ingressou no curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).

Para acompanhar as aulas, em larga medida ministradas por professores estrangeiros, sobretudo franceses, em sua língua original, precisou desenvolver grande disciplina intelectual. Em 1942, foi convidado por Roger Bastide a publicar na revista Sociologia um trabalho sobre folclore em São Paulo. A partir de 1943 passou a colaborar regularmente com os jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo. Em 1944, Fernando Azevedo o convidou a ser seu segundo assistente na cadeira de Sociologia II. Em 1945, ingressou na pós-graduação de Sociologia e Antropologia da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. Vinculou, então, os fundamentos teóricos da sociologia aos pensadores clássicos e a uma rigorosa preocupação com a pesquisa empírica para interpretar a realidade brasileira. Essa preocupação manifestou-se não apenas em seus trabalhos sobre folclore, mas também em seu estudo sobre a organização social dos tupinambás, com o qual obteve o título de mestre em 1947 e o prêmio Fábio Prado em 1948, publicando o trabalho no mesmo ano. Desdobraria suas reflexões sobre os tupinambás na análise da função social da guerra nessa sociedade, que lhe outorgaria, em 1951, o título de doutor na USP.

Rigor na pesquisa

Transferido para a ca­deira de Sociologia I, em substituição a Roger Bastide, montou uma equipe de pesquisa – da qual participavam Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Luiz Pereira, Leôncio Martins Rodrigues, Sedi Hirano, Gabriel Cohn e Lourdes Sola, entre outros –­ para a criação de uma sociologia brasi­leira baseada na rigorosa pesquisa empírica. Animado por esse propósito, publicou Apon­tamentos sobre os problemas de indução na sociologia (1952), Fundamentos empíricos da explicação sociológica (1958) e Ensaios de sociologia geral e aplicada (1959).

Mais do que criar uma escola de pensamento sociológico, Florestan formou um grupo capaz de combinar a pesquisa empírica sistemática das condições sociais do Brasil com os marcos teóricos clássicos do pensamento sociológico (de Comte, Durkheim, Marx e Weber a Mannheim). Para ele, não cabia aos sociólogos das re­gi­ões subdesenvolvidas competir com os dos grandes centros, mas assimilar seus resultados e concentrar os próprios esforços na investigação empírica dos problemas fundamentais de suas regiões, gerando especializações na teoria sociológica relativa ao capitalismo subdesenvolvido e ao Brasil. Essa preocupação constituiu a base de sua sociologia militante, dedicada ao desenvolvimento teórico e à solução dos problemas sociais e dilemas teóricos do país. Uma das condições que estabeleceu para o funcionamento do grupo de pesquisa que dirigiu foi a recusa ao financiamento internacional. Isso seria importante para garantir a autonomia e a criatividade do pensamento.

As pesquisas que realizou ou coordenou sobre negros no Brasil, ou sobre a mentalidade do empresariado industrial, fizeram com que abandonasse progressivamente as ilusões de que a burguesia industrial brasileira pudesse realizar uma revolução nacional-democrática similar à realizada nos países centrais. Fazem parte desse perío­do de transição obras como A sociologia numa era de transformação social (1963), A integração do negro à sociedade de classes (1964) – tese para professor catedrático em Sociologia I – e Sociedade de classes e subdesenvolvimento (1968).

Em 1969, Florestan teve seus direitos políticos cassados pelo Ato Institucional número 5 (AI-5) e foi compulsoriamente afastado da USP. Conseguiu sair do país graças às manifestações de solidariedade do exterior, sobretudo da Universidade de Toronto, do governo do Canadá e de militantes. Tornou-se professor titular da Universidade de Toronto, mas retornou ao Brasil em 1972.

Nesse período, escreveu uma obra fundamental, A revolução burguesa no Brasil (1974), na qual optou por uma abordagem própria da dependência, mesclando os conceitos de classes e estamentos. Para ele, as origens estamentais latino-americanas, oriundas de suas raízes coloniais, teriam se fundido com a sociedade de classes e impedido as burguesias latino-americanas de liderar o estabelecimento de uma ordem social competitiva, capaz de lhes proporcionar legitimidade interna ou soberania e poder internacional.

Analisando o caso brasileiro, Florestan declarou que a revolução burguesa restringiu a competição ao campo econômico e combinou-se com a reciclagem do patrimonialismo e mandonismos locais. O processo teria produzido uma burguesia compósita, que cederia o dinamismo tecnológico interno ao capital estrangeiro e aceitaria um papel subordinado na acumulação de capital, compensando as restrições econômicas derivadas da subordinação com a superexploração do trabalho. O golpe de 1964 seria um momento-chave desse percurso.

Em 1978, foi contratado pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, após breve passagem como professor-visitante em Yale. Em 1979, deu um curso livre sobre a Revolução Cubana a convite dos alunos e das entidades estudantis, na volta simbólica à USP, da qual, em 1985, tornou-se professor emérito. Jamais solicitou sua reintegração aos quadros da USP, da qual não pedira para sair.

Análises do autoritarismo brasileiro

A partir de meados dos anos 1970, aprofundou seus escritos sobre o modelo político brasileiro e latino-americano à luz da crise do poder militar e da redemocratização. Assinalou então as várias formas políticas adquiridas pela modernização conservadora: contrarrevolução, distensão, democracia relativa e conciliação conservadora. Expressivas de sua produção desse período são obras como Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional (1976), Apontamentos sobre a teoria do autoritarismo (1979), Poder e contrapoder na América Latina (1981), Ditadura em questão (1982), Nova República (1985) e Que tipo de República? (1986).

Em 1986, ingressou no Partido dos Trabalhadores (PT), elegendo-se deputado constituinte. Foi reeleito para a Câmara Federal em 1990. De junho de 1989 a agosto de 1995, manteve uma coluna semanal no jornal Folha de S.Paulo. Escreveu também obras como Pensamento e ação: o PT e os rumos do socialismo (1989) e Em busca do socialismo (1995).

Com a saúde deteriorada – em 1975, devido a uma cirurgia, recebera uma transfusão de sangue contaminado e contraíra hepatite C, doença que evoluiu para uma cirrose hepática –, recusou os privilégios oferecidos pelo governo Fernando Henrique Cardoso para tratamento nos Estados Unidos. Em fevereiro de 1995, após sentir-se mal, com uma hemorragia interna, foi encontrado pelo filho esperando atendimento na fila de um hospital público. Questionado a esse respeito, Florestan argumentou que fora para o hospital público porque era servidor público e que não preferia as filas, mas havia outras pessoas na sua frente. Internado no Hospital das Clínicas, em São Paulo, para submeter-se a um transplante de fígado, faleceu em 10 de agosto de 1995, por falência múltipla dos órgãos em decorrência da cirurgia.