Inspirado na tradição brechtiana, o trabalho da Companhia do Latão – grupo teatral de São Paulo, Brasil – se desenvolve desde 1996. Com O nome do sujeito (1998), escrita pelos dramaturgos e diretores Sérgio de Carvalho e Márcio Marciano a partir de improvisações dos atores, teve início o exame da vida nacional segundo os recortes determinados por uma reflexão dialética aliada a um trabalho baseado na produção coletiva dos materiais mais tarde traduzidos em dramaturgia.
A investigação cênica e literária desenvolvida pelo grupo trata de aspectos essenciais da nossa sociabilidade e da nossa herança social e cultural, com destaque evidente para o teatro, abordando as formas de dominação e exploração do país e do trabalho: nos tempos coloniais (Auto dos bons tratos, 2002); durante o segundo império (O nome do sujeito); nos tempos de capital financeirizado (A comédia do trabalho, 2000); e de industrialização radical da vida, inclusive da imaginação (O mercado do gozo, 2003). Tais preocupações necessariamente envolvem a avaliação e a exposição crítica das formas pelas quais a nossa história tem sido pensada e configurada na teoria e na arte (Equívocos colecionados, exercício de 2004, põe esse aspecto em plano formal, e a peça Visões siamesas, do mesmo ano, explora o tema em chave que inclui técnicas brechtianas e estratégias literárias de Machado de Assis).
A companhia tem clara consciência das determinações gerais e específicas do teatro no Brasil: sendo o teatro parte inseparável do show business e arena de cultivo metódico da nossa geleia ideológica, é um front como outro qualquer da luta de classes, pautado por regras mercadológicas ferozes, mesmo quando filtradas pela intervenção do poder de Estado, válidas até mesmo para os que as questionam.
Radicalmente experimentais, a cena e o texto da Companhia do Latão traduzem o empenho em levar às últimas consequências a superação dos limites formais do repertório brasileiro. Vale a pena destacar algumas de suas conquistas a cada espetáculo: a eliminação da cena e do texto dos que seriam os protagonistas de um ponto de vista dramático (O nome do sujeito); a refuncionalização do clichê clássico da comédia (gêmeos) para tratar de banqueiros nacionais (A comédia do trabalho); o processo jurídico e histórico como formalização da cena (Auto dos bons tratos); a exposição crítica dos processos de manipulação e alienação da indústria cultural (O mercado do gozo); a ruptura com a lógica do tempo e da narrativa linear para dialogar com os nossos mortos (Equívocos colecionados); e a retomada da narrativa clássica, incorporando o experimento anterior, para examinar o processo social e psicológico da produção de imagens compensatórias para uma experiência histórica defraudada (Visões siamesas).
Desde o início, o desenvolvimento desse repertório foi confrontado por pesquisas e experimentos que dialogaram com a experiência alemã do teatro épico e dialético. Nesse diálogo, a companhia encenou ou apresentou leituras encenadas das seguintes obras: A santa Joana dos matadouros, de Brecht, em 1998; Ensaio para Danton, de Büchner, e João Fausto, de Hanns Eisler, em 1999; e Os dias da Comuna, de Brecht, em 2001. O diálogo foi marcado pelo intercâmbio com diretores alemães que fazem parte desse campo de forças teatrais, como é o caso de Alexander Stillmark e do teórico Hans-Thies Lehman, entre outros com os quais a companhia trabalhou. A revista Vintém, da qual já foram editados cinco números, permite acompanhar a trajetória do grupo. Contém amostra dos materiais produzidos pelo intercâmbio e apresenta uma parte importante das reflexões produzidas por seus integrantes. A Companhia do Latão – dirigida por seu fundador, Sérgio de Carvalho, em parceria com Márcio Marciano, e integrada pelos atores Ney Piacentini e Helena Albergaria, entre outros colaboradores – tornou-se uma referência para o teatro de São Paulo no que se refere à conjugação de pesquisa estética avançada e politização da cena.